Por que ler Marcuse no século XXI

Ele afirmou a possibilidade de utopias concretas. Por isso, sua obra choca-se com o realismo capitalista e a ideia de que toda dissidência é vã, pois será capturada. Suas três apostas de transformação: a erótica, a estética e uma singular revolução

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Por Amador Fernandez-Savater, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

“É a voz, a beleza, a calma de outro mundo aqui na terra” (Herbert Marcuse)

Herbert Marcuse foi talvez o filósofo mais popular e influente nas décadas de 60 e 70 do século passado, no calor dos movimentos contraculturais e da chamada Nova Esquerda. Por que sua leitura diminuiu hoje?

Arriscamos o seguinte: o declínio do interesse por Marcuse é paralelo ao declínio da capacidade utópica das sociedades. Ou seja, ao triunfo do que hoje se chama “realismo capitalista” e que vem repetir o seguinte: o que há é o que há .

No próprio pensamento crítico prevalece um certo chafurdar na impotência: goza-se com a descrição infindável de nossa submissão aos dispositivos de poder e de como toda tentativa de libertação é redirecionada para o interior do sistema (“tá vendo? Já te disse”).

A posição de vítima perante o mundo é hoje hegemônica: a crítica vitimista não quer realmente mudar nada, mas simplesmente tem a satisfação de “incomodar” os culpados do que está acontecendo, como se isso não tivesse nada a ver conosco.

Nada disso encontraremos ao ler Marcuse, um pensador empenhado ao longo de sua vida em localizar “rotas de fuga” que nos permitissem desbloquear situações aparentemente sem saída.

Ele denominou esses caminhos, retomando o termo de seu colega Ernst Bloch, de “utopias concretas”. As utopias concretas não são especulações sobre o futuro, nem planos ou sistemas ideais, mas sim “potenciais” já inscritos no presente e prenhes de outros futuros possíveis, mas que o estado de coisas reprime e sufoca.

Para Marcuse, teorizar é abrir o ouvido para esses potenciais e ajudar a desdobrá-los com o pensamento: acompanhá-los com nomes e conceitos, garantir seu contágio pela palavra, discutir seus problemas estratégicos entre os envolvidos.

Ele encontrou esses potenciais no reino das pulsões, da estética e dos movimentos políticos de seu tempo.

Erótica

Cem anos após as descobertas de Freud, assombra a quantidade de sociologias supostamente críticas que se desenvolvem como se a vida dos seres humanos passasse inteiramente no âmbito do explícito e transparente, do racional e consciente, do mero pertencimento à classe social e seus interesses.

Marcuse pensa não só a partir de Marx, mas também de Freud. Ele aceita que o ser humano é antes de tudo um animal desejante constituído estruturalmente por duas pulsões – vida e morte, Eros e Thanatos –, aberto à sociedade e à história, ou seja, cujos objetos e canais mudam a cada época.

Somente com essa ligação entre o psíquico e o social podemos penetrar no segredo da “servidão voluntária”: por que o ser humano luta por sua escravidão como se fosse sua salvação? As revoluções não são derrotadas apenas por fora, mas também por dentro. Elas conhecem, diz Marcuse, seu próprio “termidor psíquico”.

O que o filósofo alemão encontra na socialização sob o sistema capitalista é um “excesso de repressão” que acarreta uma severa mutilação da sensualidade e do princípio do prazer. O corpo e suas pulsões são vistos com desconfiança pela tradição ocidental em geral, como aquilo que deve ser reprimido para fabricar humanos que girem, essencialmente, em torno da necessidade de trabalhar.

Se essa “repressão excedente” já teve uma razão de ser, por razões de luta pela existência, certamente não é mais assim. Há uma abundância material que não só poderia ser melhor distribuída, como também servir de base para o desejo de uma vida diferente, cujos valores centrais não eram produtividade, desempenho e competição.

Segundo Marcuse, entre os principais objetivos dos movimentos políticos está, portanto, a reativação da sensualidade e do prazer como formas de se relacionar com o mundo. Como isso soa para nós hoje? É uma proclamação hedonista como costumamos ouvir de uma política neoliberal como Isabel Díaz Ayuso [figura política da direita espanhola]?

Nada a ver. Nossas sociedades estão viciadas no gozo do consumo: formas de vício e compulsão, satisfações substitutas e compensatórias de uma vida mutilada. Todas as grandes indústrias de nosso mundo – do turismo aos narcóticos, passando pela bebida, sexo ou esportes – são negócios, não de prazer, mas de tranqüilizantes, alívio e desafogamento. Por um momento, eles tampam o poço sem fundo da insatisfação.

O princípio de realidade continua a ser comandado por mandatos: ontem, o mandato do superego de autoridade, religião ou moral que diz “não faça!”; hoje, o superego imperativo de desempenho, produtividade e competência que diz “faça!”. Ambos, como em tantos mandatos, igualmente mortificantes. Daí a necessidade de impulsos compensatórios.

A liberação da sensualidade e do prazer, a força de Eros, nada tem a ver com aumentar as oportunidades de consumo ou encontros sexuais (que, muitas vezes, são a mesma coisa), mas sim com a ativação de uma relação amorosa com o mundo: trabalho criativo e não alienante, tempo livre autônomo, relação de cuidado com o entorno natural e social.

Só a derrota política dos projetos coletivos dos anos 60 e 70 explicam porque hoje a libertação de Eros se reduz a um problema de escolhas pessoais e privadas: poliamor, crítica à monogamia, multiplicação de parceiros sexuais etc. Para os movimentos contraculturais tratava-se de “fazer amor” com o trabalho, a cidade e o cosmos. Reinventar a relação com a realidade inteira a partir de um vínculo sensível. O que Marcuse chamou de “sublimação criadora”, diferente da sublimação repressiva ou compensatória.

Mas o corpo pulsional não é apenas Eros, mas também Thanatos: energia destrutiva, agressividade, instinto de morte. Marcuse aceita essa dualidade freudiana de princípios pulsionais e conclui: só Eros é capa de sujeitar Thanatos, só a força de Eros é capaz de colocar Thanatos para trabalhar a seu serviço, como energia agressiva de defesa ou resistência.

Uma sociedade que reprime Eros está condenada a ver a lógica e a paixão do sacrifício reproduzidas em todos os lados: da natureza, dos vínculos sociais e da própria vida. Só a reativação das energias eróticas pode privar os fascismos de ontem ou de hoje do combustível afetivo de que necessitam. O desejo é o campo de batalha.

Política é terapia social: reativação e retreinamento das capacidades eróticas e desejantes do ser humano.

Estético

Como estabelecer uma outra relação com o mundo? Não por mandatos ou imperativos do que “deve ser feito”, ainda que sejam racionais ou ideológicos, tampouco por impulsos agressivos de dominação e controle. A resposta de Marcuse é a sensibilidade.

A transformação social consiste em passar de uma cultura de conquista da realidade (pela força ou pela razão instrumental) para uma cultura de acolhimento ao mundo (pela sensibilidade). Uma ativação individual e coletiva da capacidade de receber. A receptividade criativa contra a produtividade repressiva, obrigatória, como uma nova forma de habitar.

O órgão dessa receptividade, explica Marcuse seguindo Kant e Schiller, são os sentidos. Às vezes eles são passivos e ativos: eles registram as impressões que o mundo nos deixa e dão a elas uma forma não coercitiva. A percepção é uma questão política: o que vemos e a experiência associada a essa visão.

Para Marcuse, a estética também é organizada como uma área da arte e da ficção. Este escopo deve ser autônomo. Ou seja, arte e ficção não são e não devem ser qualquer “reflexo” da realidade, mas sim propor “formas” que a estilizem e intensifiquem. A arte é política por causa de sua capacidade de quebrar nossa representação estereotipada do mundo e propor outra através das formas que ela cria.

A arte emancipa não porque confirma o que já sentimos ou pensamos, mas sim pela sua capacidade de nos dar algo novo para ver e algo novo para pensar. A experiência política da arte é a expansão de nossos sentidos, não a confirmação de nossas ideias. A redução da natureza política da arte à sua mensagem ou conteúdo é uma mutilação de suas virtudes emancipatórias.

Marcuse debate com o marxismo de sua época. Isso reduz a obra de arte às suas determinações sociais: ele julga o autor por sua origem econômica e social, os personagens como expressão de determinações estruturais, etc. Porém, para Marcuse a potência da arte sempre vai além de seu contexto, dá forma a anseios e tragédias que fazem parte do próprio humano, dirige-se a qualquer um.

Hoje se busca reduzir a arte e a ficção a significado e mensagem a partir de lógicas identitárias que não são apenas de classe, mas também de gênero ou raça, mas o problema é o mesmo: celebrar ou condenar as ficções conforme reflitam ou se adequem a valores ou conteúdos julgados corretos, independentemente da configuração material da obra, onde de fato reside seu poder emancipador.

Por fim, a forma artística, essa apresentação estilizada e intensificada da realidade, é subversiva porque mantém viva a promessa de felicidade: a ânsia de uma vida não dividida entre o prazer e a realidade, entre a razão e a sensibilidade, entre o corpo e a ideia. Um anseio que, para Marcuse, está enraizado nas memórias de infância que sempre carregamos conosco — como uma ferida aberta.

Política é estética social: ruptura da percepção estereotipada, enriquecimento e ampliação dos sentidos.

Revolução

Marcuse sempre se preocupou, como mostra cada intervenção e cada entrevista, com as questões políticas mais básicas: abolição da pobreza, direitos civis e sociais, progresso material, etc. Para ele, as lutas do desejo (as revoluções culturais) não negam, mas radicalizam e ampliam as lutas de interesse. É a abundância que busca o desenvolvimento científico e técnico aquilo que habilita e dá lugar ao projeto utópico.

A transformação social é “um esforço a mais”: não apenas melhora a distribuição da riqueza, mas também o nascimento de outra concepção de riqueza ou bem viver. O socialismo, enquanto sociedade qualitativamente diferente da capitalista, é a criação de uma “segunda natureza”: outra relação com a linguagem, o corpo, o trabalho, a vida e a morte. A configuração de seres fisiologica e psicologicamente diferentes.

Entre os movimentos de sua época que manifestavam potencialidades utópicas, há dois que ressoam fortemente no presente: o ambientalismo e o feminismo.

O que Marcuse diz sobre o ambientalismo que pode inspirar o hoje? Ele enfatiza que o ambientalismo não deve se preocupar apenas com a “natureza exterior”, mas também com a “interior”. Enquanto a sociedade capitalista busca o domínio repressivo tanto das pulsões quanto do mundo físico, a transformação social deve cuidar e proteger ambos. Um depende do outro.

O ambientalismo também é uma questão de sensibilidade: seu desafio é transformar a percepção social de modo que o mundo não apareça diante de nós como um objeto de posse e conquista, mas como “um cosmos com potencialidades próprias”. O que significa isto?

As coisas do mundo são forças em si mesmas, têm sua medida inerente e sua própria “verdade”. Os sentidos, se os refinarmos para isso, podem descobrir essas possibilidades imanentes e trabalhar a partir delas. Iremos então relacionar-nos com o mundo como um artesão com o seu material: sem forçar, mas ouvindo as suas próprias inclinações.

Não para conquistar, não para dominar, não para violar, mas para ouvir e desenvolver qualidades imanentes à existência. A natureza, segundo Marcuse, também está esperando a revolução: a atualização das possibilidades que contém e que só uma nova sensibilidade pode detectar e despertar. Os seres humanos e a natureza podem se encontrar novamente na dimensão estética.

E em relação ao feminismo, o que Marcuse diz? A partir de uma observação cuidadosa e afetada dos movimentos de mulheres de seu tempo, Marcuse pensa a política revolucionária como uma política em chave feminina. Ele encontra nas imagens femininas tradicionais o germe dessa nova sensibilidade baseada no Eros. O cuidado protetor da vida, a escuta atenta das necessidades físicas e materiais, a receptividade criativa ao invés da produtividade, da competição, da guerra.

Mas não seriam essas imagens do feminino construídas a partir de um olhar masculino? É a discussão que Marcuse mantém com suas companheiras feministas da época.

Sim, é verdade, responde ele, mas “a imagem projetada pelos homens se volta contra os criadores de imagens”. Ao invés de rejeitar as qualidades historicamente atribuídas às mulheres, Marcuse se compromete a vê-las e valorizá-las como poderes, empunhando-as como ferramentas de transformação, socializando-as e universalizando-as como valores.

A política é a antropologia social: o surgimento de um novo tipo de ser humano, capaz de estabelecer uma outra relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo.

Lucidez e utopia

Ingênuo Marcuse? Certamente sim. Mas com aquela “ingenuidade” de quem persegue o que seu tempo julga “impossível” e que é a única força que sempre fez o mundo progredir em termos de liberdade e igualdade. Muitas coisas em seu pensamento devem ser discutidas, todas devem ser atualizadas, mas certamente podemos nos inspirar em seu “ouvido utópico”: a capacidade de captar as tendências atuais que podem transformar a realidade e interpretá-las.

A mudança social não depende de esforços titânicos e heroicos, nem de modificações radicais e violentas, mas de disposições mais humildes e simples: escutar as potencialidades de libertação que se expressam em ínfimos detalhes e muitas vezes passam despercebidas. A utopia não é ativa, a concepção e execução de ideais e programas na verdade é passiva: sensibilidade, aceitação e atenção ao que já está acontecendo.

Algo dentro das coisas que nos cercam se move e temos que responder a isso. O que se agita não é “mensagem” – significado, ideologia, identidade, conteúdo –, mas energia, potencial, possibilidade. Ainda não tem forma. Cabe a nós construí-lo. Para que a força passe, aconteça e possa mudar o mundo.

As obras de Herbert Marcuse consultadas: Eros e civilização (1955), Contra-revolução e revolta (1973), Um ensaio sobre a libertação (1969), A dimensão estética (1976), Psicanálise e política (1969).

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