O Sonhar em tempos de capitalismo 24/7
Em afã de acumulação, corporações tentam tornar “produtivo” o tempo de sono. Mas novas pesquisas resgatam conhecimento ancestral e sugerem: de Zhuangzi aos refugiados, os sonhos tecem utopias coletivas que a aridez do real não cataloga
Publicado 25/04/2025 às 18:50 - Atualizado 25/04/2025 às 18:56

Por Leo Kim, em Noema | Tradução: Antonio Martins
Certa noite, no século IV A.C., o antigo filósofo chinês Zhuangzi adormeceu. Enquanto dormia, sonhou que era uma borboleta. Passou o dia esvoaçando, fazendo o que bem entendia, longe das preocupações e desejos de seu eu humano e ainda mais distante de qualquer conhecimento de que era Zhuangzi. Como todos os sonhos agradáveis, porém, este também chegou ao fim. Ao acordar, viu que era novamente o grande erudito. Mas um pensamento o perturbou: teria Zhuangzi sonhado que era uma borboleta, ou era uma borboleta que sonhava ser Zhuangzi?
A mudança estava no ar, na noite em que Zhuangzi sonhou. Os anos finais da Dinastia Zhou haviam aberto um vácuo de poder. Os embates entre os governantes que disputavam o poder abalaram os alicerces que antes organizavam o mundo. A convulsão política foi acompanhada por uma turbulência intelectual paralela. Como escreveu o estudioso de literatura chinesa Achim Mittag, enquanto as pessoas buscavam navegar por “um mundo em turbulência e uma crise fundamental que despedaçou as normas e valores associados à realeza Zhou”, uma miríade de movimentos intelectuais brotou, cada um tentando dar sentido a um mundo em fluxo. O fenômeno foi tão significativo que ganhou o apelido de baijia — as Cem Escolas.
Adormecido em um mundo que se debatia contra mudanças sem precedentes, onde o futuro era assustadoramente incerto e o caminho para ele indeterminado, Zhuangzi sonhou com a própria natureza da transformação. Em vez de descartá-lo como uma fantasia frívola, usou o sonho para compreender seu meio, para entender a identidade que existe na diferença e as diferenças que se fundem na identidade. Cultivou o sonho até torná-lo uma percepção metafísica que veio a ocupar o cerne do Taoismo filosófico, guiando outros em sua busca por harmonia em meio a mudanças abruptas.
De muitas maneiras, nós, no Ocidente moderno, nos encontramos em um momento similar de incerteza — embora muitas vezes seja a êxtase, mais que a transformação, o que nos perturba. Acordamos para um mundo povoado por estruturas aparentemente intratáveis que operam em escalas que mal compreendemos: mudanças climáticas, fluxos internacionais de informação e capital, a consolidação da influência corporativa, oceanos de lixo e atmosferas de nanoplásticos, e a crescente pobreza da vida natural.
Um dos fãs mais eloquentes de Zhuangzi, David Holz, é o fundador da Midjourney, empresa de imagens IA que supostamente valerá quase US$ 200 bilhões até 2032. Holz atribuiu ao sonho da borboleta a inspiração para a “consciência coletiva” da humanidade e afirma ter nomeado a empresa com outra citação de Zhuangzi, pois a frase “mid-journey” [“meio da jornada”] capturaria a ideia de que viemos de um “passado rico e belo” e avançamos rumo a um “futuro selvagem e inimaginável”.
A ironia de os insights metafísicos de Zhuangzi virarem material de branding para um sistema de IA limitado por seu conjunto de dados treinados ilustra como a cultura moderna e as tecnologias emergentes estão remodelando nossa relação com o sonhar. Projetado como preditivo, não criativo, o sistema de Holz está sempre à espreita para roubar sonhos humanos. A empresa está envolvida, aliás, em uma ação judicial por alimentar seu gerador de imagens com obras de artistas sem permissão.
Hoje, os sonhos são cada vez mais reduzidos a commodities a ser consumidas — menos um veículo de qualquer verdade superior e mais algo a ser fabricado, otimizado, empacotado e vendido. Num momento dominado por um sentimento de impotência, quando nada além dos limites existentes de nosso mundo parece factível, parece-me particularmente crucial resistir a essas manobras. Afinal, só depois de nos reencantarmos com as possibilidades de nossos próprios sonhos é que podemos começar a sonhar com uma sociedade melhor.
Historicamente, a interpretação de sonhos era um processo colaborativo que se baseava tanto nos relatos do sonhador quanto no conhecimento coletivo. Nas culturas aborígenes australianas, os sonhos eram e são um meio para os indivíduos adquirirem conhecimento. O mais importante é que isso raramente ocorre em solidão. Como a estudiosa de religiões Elizabeth den Boer observou, os “guias na trilha para a compreensão são os anciãos e especialistas religiosos da comunidade”, e sem esses guias — como quando “não iniciados sonham com Ancestrais ou conceitos conectados” — os sonhos podem facilmente virar pesadelos.
Em grande parte, essa sensibilidade colaborativa vinha da crença de que os sonhos eram coletivos desde o início. Embora o sujeito adormecido os recebesse, acreditava-se que os próprios sonhos viviam e vinham de outro lugar. Na Summa Theologiae, Tomás de Aquino distinguiu entre sonhos que emergem de dentro — muitas vezes moldados por preocupações individuais ou disposições corporais — e os que vêm de fora, resultantes do “ar circundante”, “uma impressão de um corpo celeste” ou de Deus e seus anjos. A mente aqui é uma membrana porosa, moldada e formada pelo universo ao seu redor, sempre em diálogo com o mundo.
Como os sonhos iluminavam essa conexão com o mundo, eram reverenciados por sua capacidade de ajudar as pessoas a navegar uma relação muitas vezes difícil. Em sua discussão sobre epistemologia nativo-americana, o filósofo Joel Alvarez observou que os sonhos eram vistos como orientados para a ação: “[V]isões ou sonhos são, para muitos povos originários americanos, ‘uma fonte primária de conhecimento revelado’ onde o indivíduo obtém conhecimento do que deve fazer no mundo real.” Às vezes, esses sonhos eram a realidade, apenas uma versão dela que havia sido esquecida ou rompida. Certas tradições indígenas, por exemplo, consideram os sonhos um espaço onde os humanos podem experimentar a relação íntima com o mundo animal que existia antes que a humanidade míope cortasse essa conexão primordial.
Mas não era apenas sabedoria que as pessoas buscavam nos sonhos. Como observou Sidarta Ribeiro em seu livro O Oráculo da Noite, operadores astutos frequentemente se engajavam na “manipulação política descarada de narrativas oníricas” para estabelecer autoridade. Sonhos oportunamente anunciados podem ter o efeito de legitimar regimes e transformar mortais em mitos. Ribeiro sugeriu que o relato de Plutarco sobre o sonho fortuito de Júlio César antes de cruzar o Rubicão foi um desses produtos de manipulação narrativa. No suposto sonho, César pratica incesto materno, sinal posteriormente interpretado por seus defensores como significando que estava predestinado a conquistar Roma, sua terra-mãe.
Mas mesmo nesse ato de manipulação, há um reconhecimento implícito de que, embora os sonhos sejam experienciados pelo sonhador, eles invocam o coletivo, pois contêm o poder de moldar uma comunidade. Eles transcendem o indivíduo e inspiram ação mais ampla, guiando o sonhador ao revelar algo verdadeiro sobre sua relação com o mundo desperto.
Um dos sonhos mais influentes do Iluminismo não foi uma revelação, mas uma ilusão a ser superada. Nas Meditações, René Descartes escreveu que estava sentado junto à lareira, envolto em um roupão de inverno. Podia sentir o calor do fogo, a textura do papel sob seus dedos. Mas, após refletir, de repente ele faz uma pergunta: “Não sou um ser humano, e portanto no hábito de dormir à noite, quando em meus sonhos tenho todas as mesmas experiências que esses loucos têm quando estão acordados?” Seria possível que tudo o que ele imaginava com tão vívidos detalhes fosse um sonho?
Se Zhuangzi via seu sonho da borboleta como um caminho para compreender a abertura do eu, Descartes teve a reação oposta. Confrontado com a possibilidade desestabilizadora de que poderia estar sonhando mesmo quando se sentia acordado, ele buscou terreno firme. A saída para a espiral de dúvida veio na forma de um eu fortificado que prometia segurança e autossuficiência. Você pode estar sonhando, argumentou, mas sempre pode ter certeza de que é você — e não outro — quem está sonhando; seus pensamentos são seus independentemente de serem fantasia ou não. Isso o levou ao infame axioma que fundamentaria nossa ideia da mente humana pelos séculos seguintes: “Cogito ergo sum” — “Penso, logo existo”.
Essa segurança, porém, teve um preço. O eu outrora poroso foi isolado do mundo ao redor, certo de quase nada além de sua própria existência. Em sua biografia de Descartes, Desmond Clarke o chamou de “solitário recluso, rabugento e hipersensível”. Descartes concebeu a mente em termos similares: isolada, solitária e apartada. Apesar dessas tendências antissociais — ou precisamente por causa delas —, esse cogito solitário revelou-se o companheiro perfeito para uma cultura mais ampla obcecada pelo que o filósofo e antropólogo Bruno Latour chamou de “purificação”: classificar e organizar o mundo em caixas discretas e legíveis que o libertassem de todo seu hibridismo ambíguo.
O tema dos sonhos foi relegado às margens enquanto os acólitos do Iluminismo privilegiavam a capacidade racional sobre as características “menos desenvolvidas” da mente. Quando Sigmund Freud ajudou a reintroduzir os sonhos no discurso, na primeira metade do século XX, continuou a ver a própria mente como um reino fechado: as visões não eram expressões de verdades externas, mas produtos do eu mais primitivo do indivíduo, um “fragmento da vida mental infantil que foi superado” e banido para os recônditos do pensamento. Menos uma janela para o mundo e mais um reflexo do eu num espelho distorcido — que podia, no espírito da modernidade, ser usado para classificação e diagnóstico por um profissional treinado.
E assim nossa marcha confiante rumo à modernidade foi gradualmente despojando os sonhos de seu status privilegiado. Onde antes carregavam revelações profundas, agora não passavam de desejos distorcidos e ocultos, emergindo de mentes solitárias e inquietas. Nesse admirável mundo novo, os sonhos eram no máximo instrumentos diagnósticos, e na maioria das vezes baboseiras sem sentido — muito longe dos condutos de verdade que já foram considerados.
Por todos os aspectos, vivemos hoje num mundo relativamente sem sonhos. A quantidade de sono noturno em muitos países caiu 1 a 2 horas em comparação com um século atrás. O norte-americano médio dorme apenas cerca de 6,5 horas por noite. Para as forças do capitalismo contemporâneo, isso ainda é muito — horas demais passadas sem desejar, sem capacidade de trabalhar, gastar ou consumir.
O crítico de arte e teórico social Jonathan Crary chamou esse tempo insômico de era do “capitalismo 24/7”. Ele argumenta que as maciças desregulamentações do final do século XX criaram um sistema onde “deixou de haver qualquer necessidade interna de descanso e recuperação como componentes do crescimento econômico e lucratividade”. Ao contrário da lógica binária rígida do tempo fabril, nossa economia cada vez mais digitalizada e em rede gerou uma forma de capitalismo sempre-ativo “definido por um princípio de funcionamento contínuo” — onde o dinheiro está sempre circulando, o trabalho sempre em curso e o lucro sempre possível. É o mesmo mundo onde empresas de software vendem ferramentas para monitorar funcionários remotos e banqueiros morrem por trabalhar 100 horas semanais.
Numa economia mantida à tona pela circulação constante, escreve Crary, “a enorme porção de nossas vidas que passamos dormindo, livres de um pântano de necessidades simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo”. Diferente de outras “necessidades irredutíveis da vida humana”, o sono tem se mostrado notoriamente difícil de monetizar. Para adentrar o santuário interior do dormir, os tecnocapitalistas começaram a cobiçar nossos sonhos como via de lucratividade.
Em 2021, a cervejaria Coors lançou um anúncio que apresentava um estudo onde participantes assistiam a um vídeo projetado para incubar sonhos sobre a cerveja antes de dormir. Ao entrarem em sono REM, os pesquisadores os acordavam para ver o que estavam sonhando: cachoeiras, neve, montanhas e, claro, “algo relacionado à Coors”. Onde antes os sonhos vinham de deuses e ancestrais, o anúncio essencialmente proclamava que agora podiam vir de conglomerados como a Molson Coors Brewing Company — empresas que aspiravam à mesma onipotência. O vídeo foi disponibilizado para quem quisesse sonhar com a bebida, embora o site hospedeiro tenha sido retirado do ar, provavelmente devido às críticas após o lançamento.
Isso não impediu muitas empresas de tentar lucrar com nossos sonhos de formas mais sutis. A startup Prophetic, por exemplo, desenvolve atualmente um “halo” que as pessoas podem usar na cama para induzir sonhos lúcidos. Como escreveu Claire L. Evans, a iniciativa envolve “treinar modelos de aprendizado de máquina com dados de eletroencefalograma e ressonância magnética de sonhos lúcidos” e transmitir “suas descobertas via ultrassom transcraniano focalizado diretamente para cérebros dispostos”. O objetivo dessa tecnologia de lucidez, segundo artigo da Fortune, é “dar às pessoas controle sobre seus sonhos, para que possam usar esse tempo produtivamente. Um CEO poderia praticar para uma reunião de diretoria, um atleta ensaiar jogadas, um web designer criar novos i”. Nem mesmo o sono poderá nos arrancar do mandato de produção constante.
Crary observa que essa mercantilização exige a “suposição pervasiva de que os sonhos são objetificáveis, que são entidades discretas que, com o desenvolvimento de tecnologia aplicável, poderiam ser gravados”. Para transformar sonhos em veículos de lucro, em outras palavras, precisamos antes concebê-los como tipos específicos de objetos passíveis de mercantilização.
Subjacente a esse modo de pensar está um matrimônio estranho de atitudes antigas e novas. Por um lado, a ideia da mente como sistema fechado — e dos sonhos como emanações neutras dessa mente — permite que essas tecnologias sejam enquadradas como produtos de autossuperação e autocontrole. Essas empresas estariam apenas ajudando você a conectar-se e manipular o que já é seu, uma linha de raciocínio que deixaria Descartes orgulhoso. Como disse enfaticamente o CEO da Prophetic: “Controle é o que queremos”.
Na prática, porém, essas tecnologias dependem menos do autocontrole introspectivo que da abertura da mente ao mundo exterior. Pois toda a premissa por trás dessas tecnologias mediadoras é sua capacidade de interferir efetivamente na formação e conteúdo dos sonhos a partir de fora. Assim, enquanto as empresas proclamam que sonhos são fenômenos privados em seu marketing, seus produtos dependem da natureza porosa do sonhar.
Nas últimas décadas, muitas pessoas terceirizaram voluntariamente seu gosto para algoritmos sofisticados, suas memórias e savoir-faire a dispositivos externos, e até se perguntaram se os algoritmos nos conhecem melhor que nós mesmos. As tecnologias oníricas seguem o mesmo manual: sob o pretexto de autogestão, convencem-nos a abdicar de mais uma parte de nós mesmos em favor de aparatos externos, para que sejamos direcionados à produtividade e ao entretenimento corporativos. Desafiar essa transformação exige não apenas rejeitar certas tecnologias em desenvolvimento, mas também reconsiderar o que os sonhos realmente são.
Há um conceito nas culturas aborígenes australianas frequentemente traduzido para a expressão inglesa “Dreamtime” ou “The Dreaming” [“Tempo do Sonho” ou “O Sonhar”]. É um termo complexo de definir por sua multivalência — ao mesmo tempo plano atemporal da criação, conjunto de práticas culturais e guia para a conduta na vida. Como disse Mussolini Harvey, do povo Yanyuwa: “Os Sonhos fizeram nossa Lei ou narnu-Yuwa. Esta Lei é nosso modo de viver, nossas regras. Esta Lei são nossas cerimônias, nossas canções, nossas histórias”.
Nesse sentido pleno, o Sonhar não se refere simplesmente a um “além” que alcançamos ao dormir ou morrer. É imanente ao mundo — ou mais precisamente, desafia a própria distinção entre aquém e além que organiza a metafísica ocidental desde Platão. Além disso, remete a algo maior que os sonhos literais de qualquer indivíduo. Eis por que há debate sobre a precisão dessa tradução, feita originalmente no século XIX por antropólogos brancos. Teme-se que reduza a riqueza do conceito, ao confundi-lo com nossa noção relativamente empobrecida de sonho.
Talvez isso possa incentivar uma reavaliação dos limites de nossa própria linguagem — mostrando como os sonhos podem ser tecidos em uma cosmovisão que transcende o individualismo que não apenas define nossa cultura moderna, mas permitiu a mercantilização privatizada desses sonhos. Sem repetir a apropriação ocidental preguiçosa de uma “autenticidade” perdida, esses quadros metafisicamente ricos ainda podem servir como catalisadores que iluminam um caminho para além das incógnitas de visões de mundo limitadas, rumo a novos territórios.
Não é como se o mundo moderno já não operasse com crenças amplamente compartilhadas que são verdadeiras apenas porque as consideramos assim. “O mundo dos fantasmas e espíritos é tão real quanto o dos mercados”, escreveu o antropólogo Ganath Obeysekere. Na cultura ocidental, abstrações como o sistema financeiro internacional e fantasmas como o consumidor racional são tão reais quanto a carne. O que torna esses espectros reais não é sua autoevidência material, mas uma fé coletiva que lhes dá o poder de guiar comportamentos e mediar relações. Os sonhos podem cumprir uma função organizadora igualmente poderosa.
Entre 1980 e 81, o cineasta Mohammad Malas entrevistou mais de 400 pessoas em campos de refugiados palestinos no Líbano sobre suas visões noturnas. O vasto arquivo de filmagens foi editado em um documentário de 45 minutos com seus depoimentos, O Sonho. Numa cena, uma criança fala de um sonho onde levou um tiro no peito ao correr por um bosque de oliveiras. Noutra, uma mulher sonha em articular um golpe de Estado. Outros sonham com edifícios desabando e prisão, com martírio e vitória da paz. Todos sonham, de um modo ou outro, com deslocamento, lar e retorno.
À maneira que só os sonhos permitem, suas histórias revelam a posição absurda e paradoxal — entre esperança e desespero, entre algum lugar e lugar nenhum, vida e morte — à qual foram submetidos como refugiados. À medida que o filme avança, torna-se impossível descartar qualquer desses sonhos como ilusões de uma mente isolada. Eles passam a coalescer num relato sobre uma topografia compartilhada de sentimentos, tão inegavelmente real quanto um leito de rio ou cordilheira. É uma manobra profunda, dado que esses refugiados foram frequentemente alvo de campanhas de desumanização, espoliados de qualquer direito sobre suas vidas interiores. Contra esse esvaziamento, Malas usou os sonhos para confrontar o espectador com a profundidade total e complexa de sujeitos que temem, esperam e lamentam — revelando assim sua humanidade, exatamente o que lhes era negado pelas epistemologias dominantes e representações midiáticas que recorrem a caricaturas fáceis.
Ao trazer à luz os sonhos, traumas e o mundo dos refugiados, Malas articulou uma exigência ética. A poeta basalt i.h. os chamou de “sonhos que exigem algo de nós”. A materialização de traumas coletivos e territórios ocultos da experiência nos impele a considerar para onde ir a partir daqui; os sonhos se tornam um meio por onde começam a fluir o reconhecimento e a obrigação.
Essa consciência da capacidade inter-relacional dos sonhos inspira pesquisadores que investigam as possibilidades terapêuticas de práticas oníricas intersubjetivas. Enquanto uma abordagem diagnóstica vê os sonhos como veículos para classificar e categorizar — por exemplo, identificar distúrbios cerebrais —, um grupo pequeno mas crescente de psicólogos e terapeutas busca desvendar como os sonhos podem abrir vias para conexão em vez de controle.
No cerne desse trabalho está a noção renovada de que os sonhos existem primordialmente como parte de um processo compartilhado. Ao escrever sobre sonhos, o psicólogo clínico Robi Friedman não se refere apenas ao ato de sonhar, mas a um “ciclo onírico” holístico no qual uma “preocupação coletiva” se manifesta em sonhos pessoais, é interpelada por uma narrativa interna e depois tornada pública novamente numa “elaboração relacional compartilhada”. Esse ciclo reconhece tanto a origem dos sonhos na esfera coletiva quanto seu potencial de retornar a ela e reformulá-la.
Esse ciclo ganha vida em práticas como o compartilhamento de sonhos, que permitem a grupos usá-los para reestruturar e fortalecer seus relacionamentos. Um estudo experimental, por exemplo, descobriu que compartilhar sonhos em casais aumentava mais a intimidade que descrever eventos cotidianos. Paralelamente, formações sociais como grupos de sonhos têm sido exploradas como recursos para tudo — desde cura até colaboração criativa. Mark Blagrove, professor de psicologia na Swansea University, escreveu que, embora a ciência historicamente visse os benefícios dos sonhos como fruto de “processos neurais durante o sono, independentemente de serem relembrados”, agora começa-se a desenvolver a ideia de que “a função dos sonhos reside em seu uso no estado desperto”. É no processo de tornarem-se comunitários que os sonhos realizam seu pleno potencial.
Assim como Malas, esses pesquisadores revisitam a ideia de que os sonhos vêm e pertencem a um coletivo — que são atos sociais que atravessam as fronteiras do eu. Ao fazê-lo, abrem a possibilidade de estarmos sempre entrelaçados com as pessoas, lugares e ideias que compõem nosso mundo. Os sonhos se tornam veias através das quais podemos engajar o mundo de modos ainda não descobertos — e até conduzi-lo a algo melhor.
Se os sonhos, ao fim, tiram seu poder da capacidade de nos guiar na vida desperta, como alguns praticantes ancestrais já sabiam, eles podem inspirar ou invocar. Mas cabe a nossos eus despertos transformar um sonho, mesmo coletivo, numa realidade compartilhada.
Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras