As brechas
Democracia liberal parece esgotada. Em crise, a dominação ocidental torna-se mais agressiva – e ameaça o planeta. Quais os caminhos para alternativas? Nossa Retrospectiva relata outro ano em busca de saídas e convida a um 2026 decisivo
Publicado 23/12/2025 às 20:54 - Atualizado 23/12/2025 às 21:48

No ano em que se fecha o primeiro quarto do século XXI, o que resta da democracia liberal? O sonho iluminista, segundo o qual as sociedades deveriam ser capazes de enxergar a si mesmas, e potentes para construir o futuro coletivo, nunca pareceu tão distante. O capitalismo está em crise, mas em seus estertores destroçou as alavancas que poderiam impulsionar mudanças. Não parece haver caminhos reais para frear a concentração de riqueza e poder, os genocídios, a devastação do ambiente natural ou a crise de perspectivas. A esperança agora se concentra nas brechas – os flancos vulneráveis que o sistema de tempos em tempos expõe, ao se revirar sobre si mesmo. Será possível, nesses momentos, colhê-lo em contrapé?
Uma dessas brechas aflorou em janeiro de 2025. Um torpedo disparado da China – o Deep Seek – mostrou pela primeira vez que o transatlântico das big techs norte-americanas tem casco mais frágil do que se pensava. O tiro foi certeiro, por três motivos. O alvo é estratégico. Nada expressa tanto quanto estas corporações as ameaças que nos cercam: captura do conhecimento comum, vigilância em massa, recolonização, fake news e manipulação da democracia, esgotamento dos mananciais hídricos, pressão sobre as populações vulneráveis, volta acelerada aos combustíveis fósseis. Como se tudo isso não bastasse, apoio explícito aos movimentos de ultradireita.
O prazer de assistir ao estrondo foi maior porque o míssil que produziu o rombo tinha como combustível o Comum. Para dominar a inteligência artificial, Washington renegou a própria pregação em favor do “livre” comércio e bloqueou o acesso dos “adversários” aos chips de última geração. Este ato de força bruta foi vencido com a inteligência dos códigos abertos. Ao estabelecerem a cooperação (e não o controle corporativo), como princípio para o desenvolvimento da IA, os chineses mobilizaram muito mais cérebros. Isso lhes permitiu produzir modelos tão ou mais eficientes que os norte-americanos (o Deep Seek é apenas um dos exemplos), utilizando uma pequena fração do recursos financeiros e naturais mobilizados pelas big techs. Sua opção política permite, ademais, que as descobertas e inovações sejam replicadas, adaptadas e aperfeiçoadas em parcerias com o Sul Global (para as quais o Brasil ainda não despertou…)
Por fim, o saudável desacato produziu efeitos de longo prazo. Compreende-se agora que o esforço descomunal de construção de data centers e outras estruturas físicas, realizado pelas big techs, está comprometido por incertezas de diversas ordens. Ninguém sabe se haverá água e energia para abastecê-los. Os modelos devoram cada vez mais dados – inclusive os dados artificiais produzidos por eles próprios… – o que gera riscos de entropia e colapso funcional. Mais importante do que tudo: teme-se que os gastos trilionários jamais se pagarão (a China oferece os mesmos serviços a custo muito mais baixo). Caso as expectativas se frustrem, a gigantesca bolha de IA, para a qual converge há anos cerca de metade de todo o investimento de capitais nos EUA, se romperá. As consequências financeiras e econômicas serão provavelmente catastróficas. Mas os desdobramentos políticos são incertos. Após a grande crise de 2008, afloraram e cresceram — diante da ausência de respostas à esquerda — um neoliberalismo ainda mais embrutecido e sua cria — o “neo-”fascismo.
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Em 2025 abriu-se, para o Brasil, uma segunda brecha. Situa-se precisamente no terreno decisivo da política. Em meados de junho, o governo Lula 3 semi-despertou. Talvez por não ver horizonte além das instituições e seus limites, o presidente havia se recolhido a um papel figurativo nos primeiros trinta meses de mandato. Seus senhores foram, nesse período, os rentistas e a maioria conservadora que controla o Legislativo.
O país paga há quatro décadas, a 0,1% de sua população, os juros mais altos do planeta. Esta minoria ínfima, que mal encheria um show em estádio de futebol, recebe por ano 1 trilhão de reais. São quatro vezes o orçamento do SUS, presente em 5,7 mil municípios e encarregado de atender — com médic@s, enfermeir@s, equipes de Saúde da Família, exames, imagens, cirurgias, emergências, reabilitações, transplantes, vacinas e vigilância sanitária — 210 milhões de brasileiros. Para viver como seus congêneres no mundo rico, os muito ricos do Brasil sugam, por meio dos juros, o trabalho de 210 milhões.
Embora se queixasse dos juros, Lula curvou-se aos rentistas e não ousou usar sua popularidade para pressionar os deputados e senadores. Até que o pote transbordou. Humilhado no Congresso, pela ultradireita e pelo Centrão, o presidente pagou para ver e convocou as maiorias. Falou em justiça fiscal e na cumplicidade dos parlamentares com os privilégios. Ensaiou defender a redução da jornada de trabalho e o passe livre nos transportes públicos.
Seus apoiadores, que até então se mantinham entocados, saíram às ruas em julho, setembro e dezembro. Bastou para sacudir o ambiente político. A curva de popularidade de Lula inverteu-se. A mudança tornou-se mais pronunciada quando ele, pressionado pelo tarifaço de Trump, não curvou-se — ao contrário do que fizeram, por exemplo, União Europeia, Japão e Coreia do Sul.
Há um problema essencial. A possível virada está, até agora, apenas no campo da retórica. O presidente já não se submete mudo. Mas também não ousa enfrentar o rentismo. O “ajuste fiscal”, proposto há três anos pelo ministério da Fazenda, continua amputando as políticas públicas. Talvez Lula acredite em suas notáveis trajetória histórica e capacidade persuasiva — e na capacidade que elas podem ter, em 2026, de unir a esquerda e parte da direita, num projeto eleitoral e de governo mornos e majoritários.…
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Até quando o Brasil e o mundo ocidental seguirão nesta toada paralisante e tão frequentemente regressiva? Em algum momento será possível passar da simples defesa dos direitos conquistados a algo muito maior — um novo horizonte político? O projeto editorial de Outras Palavras busca, ao mesmo tempo, resgatar o jornalismo e projetá-lo a ideias que permitam a reconstrução do projeto pós-capitalista.
É tão prazeroso reportar as transformações do mundo — o declínio da antiga ordem burguesa, o surgimento de relações entre classes em que as velhas formas de controle social perderam eficácia. É tão angustiante, ao mesmo tempo, enxergar que o declínio da antiga estabilidade foi substituído por inovações muito frágeis — o surgimento de um precariado, a corrosão de todas as relações que antes asseguravam a perenidade do sistema. Como agir nesse mundo transtornado e, em tantos casos, regredido?
Em 2025, como faz há 15 anos, Outras Palavras buscou respostas para estas perguntas. A Retrospectiva que oferecemos agora é a expressão de nosso esforço. Não faltam brechas. O persistente avanço, na China, de um projeto que rejeita a ditadura dos mercados — e que apela a alianças entre os países do Sul Global. As fissuras na unidade entre Estados Unidos e União Europeia, que conduziram à vitória do Ocidente na Guerra Fria e à emergência do neoliberalismo. A possível consolidação dos novos movimentos anticoloniais na África. O surgimento, no México, de uma nova vertente latino-americana da luta anti-imperialista. A resistência da Venezuela à guerra híbrida. A condenação dos crimes da ultradireita brasileira. O esforço por construir novas relações entre o ser humano e a natureza. A resposta do software livre às big techs. A persistência dos movimentos culturais que desafiam o supremacismo macho e branco. As expressões estéticas destas novas formas de estar no mundo e de desejar a sua transformação.
Tudo isso esteve em nosso radar. A Retrospectiva que oferecemos ao fim de mais um ano expressa o esforço de ser antena e, ao mesmo tempo, de desejar transformação. É preciso saber ver e querer mudar. Em 2025, ficamos por aqui. Voltamos em 12 de janeiro. Esperamos sua companhia para novos empenhos em compreender e transformar. Estejamos juntos, em tempos desafiadores.
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