Yoko Ogawa: Memória de mundos apagados

A memória é crime e objetos que a evocam são confiscados. Obra da escritora japonesa sugere o tempo presentista, em que o mundo perde tangencialidade, levando à indiferença social. Alternativa seria a refactualização, gesto de Cuidado e responsabilização coletiva

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I. Conheci Yoko Ogawa a partir de uma entrevista concedida pelo filósofo Byung-Chul Han em 2021. Achei significativa a explicação dada por Han ao enredo do livro A polícia de memória (1994). Ele o abordou a partir da sua reflexão sobre o que chama de não-coisas – próprias do mundo digital. Achei pertinente a sua meditação, parecendo mesmo algo próximo ao vivido na atualidade. A principal característica das não-coisas é a sua falta de tangibilidade, ou melhor, de substancialidade. Para Han, a obra seria sintomática da era da transição das coisas para as não-coisas. As informações, sem durabilidade, definiriam esse novo ambiente. Não nos ocuparíamos mais com a terra e com o céu, mas com o Google Earth e com as nuvens. Com a digitalização do mundo, estaríamos em uma situação cada vez mais fantasmagórica e nebulosa. Nada seria tangível e substancial, mas não-coisas. Daí ele lembrar da distopia de Ogawa, em que havia uma Ilha sem nome onde as coisas (laços de cabelo, chapéus, perfumes, selos, rosas e pássaros) desapareciam. O mais importante: junto com o desaparecimento das coisas, vivia-se sem memória. Aqueles ilhéus estariam num eterno inverno de esquecimento e de perda. A desintegração era total, sendo que até partes de corpos despareciam. Sobravam vozes desencarnadas e flutuando.

A partir daí procurei referências sobre Yoko Ogawa e sobre o seu livro. Para a minha grata satisfação havia traduções em português e em inglês. Ogawa nasceu em Okayama, Japão, em 1962. Esteve envolvida, desde a adolescência, com a literatura, tendo sido impactante em sua trajetória a leitura do Diário de Anne Frank. Ela passou também a escrever diários e iniciou-se como escritora. Aqueles diários acabariam tornando-se fontes para a sua ficção. Na década de 1980 cursou a licenciatura em Literatura na Universidade de Waseda, em Tóquio. A autora já escreveu mais de quarenta obras, entre ficções, ensaios e romances. Os livros foram traduzidos para o inglês, para o alemão, para o francês, para o italiano, para o espanhol, para o português e para o coreano. Em português temos os seguintes títulos já traduzidos: A fórmula perfeita do professor (2017), A polícia da memória (2021), Hotel Íris (2011) e o Museu do Silêncio (2016).

Abordaremos, a partir de A polícia da memória, as questões relacionadas à memória e ao esquecimento com Paul Ricoeur, bem como dialogaremos com Han sobre as não-coisas. Acreditamos que o romance distópico de Ogawa possa nos revelar aspectos da forma como a temporalidade tem sido experimentada atualmente. Ricoeur nos faz refletir sobre as formas possíveis de narrativização do tempo, com implicações no modo como nos orientamos no mundo da vida. Não por acaso, o filósofo francês deixou em evidência, e aqui nos voltamos para a obra de Yoko Ogawa, que existe um enfrentamento entre a narração e a temporalidade, sendo isso uma condição histórica humana, em que a memória esta colocada a partir da dialética da lembrança e do esquecimento. Quais seriam, em termos de condição histórica humana, os efeitos do esquecimento total? Este é, portanto, a nosso problema ao nos aventurarmos na leitura de A polícia da memória.

II. Em A polícia da memória temos como cenário uma Ilha sem nome na qual os seus habitantes estão envoltos a todo um processo de esquecimento, que acaba por se tornar a regra do lugar. As memórias e todos os seus significados subjacentes estão desparecendo. São diferentes modos de esquecimento apresentados, que vão de objetos, passando por sentimentos e chegando até as suas próprias histórias de vida. Há, ali, um Estado francamente autoritário que determina, a partir de uma violenta polícia secreta, que as memórias devem ser totalmente apagadas. Para tanto, os ilhéus não devem mais portar objetos que invocariam lembranças, que gerariam recordação. Contudo, alguns daqueles habitantes conseguiam, mesmo diante dessas pressões, se lembrar das situações passadas. Aparentemente não fica evidente no livro a razão disso, parecendo ser algo da ordem sobrenatural ou mesmo biológica, porém esse estado seria, naquela Ilha, um crime. Daí a instituição da polícia, ou caçadores, da memória. No enredo vemos, pois, a perseguição desses indivíduos por esse aparato policial, sendo eles levados à fuga e aos mais diversos modos de esconderijo para poderem lembrar, para preservarem os objetos capazes de acionar as suas memórias. As formas de vigilância são, contudo, incisivas. Havia, inclusive, um livro do “sumiço”. A cada apagamento esse aparato se fortalecia mais com vistas à eliminação do passado. Podemos perceber, a partir da narrativa, a suas ações:

Eles pareciam conhecer perfeitamente a disposição dos cômodos da casa. Foram direto ao escritório, que ficava no canto leste, e se puseram a trabalhar com admirável eficiência. Um deles abriu todas as janelas do cômodo, que estavam fechadas desde a morte de meu pai. Outro forçou a fechadura do armário e da gaveta da escrivaninha com o auxílio de uma ferramenta comprida que parecia um bisturi. Os outros revistavam todos os cantos, como que em busca de algum cofre oculto. Em seguida puseram-se a fazer uma triagem dos pertences de meu pai, seus manuscritos, anotações, diários de campo, publicações e fotografias (OGAWA, 2021, p. 20).

O objetivo da polícia do esquecimento era, assim sendo, a promoção de desparecimentos de forma rápida e eficiente. O intuito era apagar as memórias das pessoas junto a tudo aquilo que não mais existia, dado que isso implicaria na sua inutilidade. Percebemos as intenções de Ogawa: quais as condições para o acesso à memória, qual a sua durabilidade e, mais ainda, quais seriam os efeitos de um mundo sem substancialidade, sem evidências tangíveis, sem acesso à memória e se deslocando ao esquecimento total? “Precisamos localizar segredos impalpáveis, analisá-los, selecioná-los e dar-lhes um destino adequado. Para realizarmos essa tarefa, precisamos nos proteger com o sigilo. Eis o motivo por trás das regras” (OGAWA, 2021, p. 126). A questão apontada pelos policiais é que as memórias possuíam substancialidade e atingiam o coração. Tudo que invocava memória deveria desaparecer, ser retirado de circulação, sumir. Assim, não poderiam produzir a evocação da memória. Cabe dizer que kokoro significa, em japonês, além de coração, o órgão que guarda as memórias humanas.

Os objetos de memória, guardados em segredo pelos ilhéus, eram confiscados. Seria, assim sendo, um trabalho bastante meticuloso, inclusive, sendo necessário ter bastante sensibilidade para a identificação dos objetos que pudessem, a partir da sua tangibilidade, acionar a recordação. Por isso, toda aquela busca e toda aquela triagem sobre os artefatos acionadores de lembrança que estavam, por exemplo, sob a guarda do pai da narradora. Ali, os polícias teriam identificado o ideograma pássaro como um dispositivo que acionava a lembrança: “Tudo que consideravam perigoso – ou seja, tudo o que continha o ideograma 鳥 (‘pássaro’) – iam jogando ao chão” (OGAWA, 2021 p. 20). Isso é importante a partir do que Paul Ricoeur (2007) argumentou acerca do gesto da recordação e a busca pela rememoração. A memória apreende, enquanto representação, o tempo passado, mostrando-se como o caminho possível para a garantia de que algo, de fato, tenha se passado. Um momento anterior ao próprio ato da formação da lembrança.

A polícia secreta da memória em ação naquela Ilha tornava-se, com o tempo, mais autoritária e mais violenta, agindo como uma espécie de aparato de vigilância e de opressão. A narradora os chama de “caçadores de memória” em razão do encalço às pessoas que ainda tinha a capacidade de não esquecer, o que abria caminho para a prisão. Seria uma operação que visava um suposto bem comum. Ademais, as operações deveriam ser tão bem orquestradas que não podiam deixar rastros – forma de aprimoração do controle: “Até hoje ninguém sabe onde foram parar todos os detidos” (OGAWA, 2021, p. 29). Deve ser dito, a partir de uma perspectiva fenomenológica, que a consciência se liga à consciência de alguma coisa, somente assim seria possível compreender e lembrar as situações, os fatos e os acontecimentos do mundo da vida (CARDOZO, 2023). Como agir, então, num mundo onde as pessoas não tem consciência das coisas passadas, levadas, portanto, ao esquecimento total, ao desparecimento e à desagregação continuada?

A central de operações da polícia da memória encontrava-se onde era um antigo teatro da Ilha, algo bastante sugestivo, tendo em vista que esse aparelho de vigilância passa a estar onde era um local de cultura, logo, de criação, de inventividade, de fabulação de mundos possíveis. O controle operava-se para além dos objetos capazes de evocar o passado, incluindo, os próprios lugares de memória cultural. A dimensão autoritária dos policiais da memória impede o acesso ao passado enquanto vir-a-ser, como ocorre na arte. A cidade estava coberta por neve e as buscas continuavam diariamente. A indumentária da polícia era própria dos regimes autoritários: sobretudos e coturnos. Criava-se todo um clima de vigilância e de censura que passava a ser subjetivado: “muitas vezes a polícia secreta cercava as casas. Isso podia ou não trazer ‘resultados’. Ninguém sabia qual seria o próximo quarteirão a ser investigado” (OGAWA, 2021, p. 116). O que deixamos em evidência é o papel da polícia: impedir que a pessoas tivessem contato com objetos que davam acesso às lembranças, abrindo margem, então, para se alcançar os seus corações. É o que se vê em um momento que a protagonista, que também narra a história, se desespera e grita, o que causou temor às pessoas próximas por conta da possível investida dos caçadores de memória. “Todos têm medo da polícia secreta” (OGAWA, 2021, p. 31). Ela trazia consigo um envelope com um manuscrito, algo passível de evocar o passado.

Paul Ricoeur (2007) nos ajuda, novamente, a compreender as implicações das operações daquela polícia e a razão das suas ações. A memória se encontra, salienta, num nível anterior ao das marcas, um local onde, propriamente, estão as afecções do corpo e da alma. É ali que as lembranças se ancoram. Podemos dizer, através da tradição japonesa, que a memória está no kokoro. Ora, o desparecimento dos objetos, dos lugares, das coisas em si, não teria outra intenção do que evitar esse acesso às afecções, os sentidos autênticos do recordar. Isso pode ser apreendido através desta dura constatação presente no livro:

Ao mesmo tempo, imaginar as coisas sumidas era um trabalho difícil. O objeto repousado na palma da minha mão parecia um animalzinho a hibernar — enroscadinho, imóvel, silente. Não me transmitia nenhum sinal. Eu me via tomada por uma sensação de impossibilidade, como alguém que tentasse reproduzir com argila a forma das nuvens que boiam no céu. (OGAWA, 2021, p. 11).

Ou seja, há na situação uma ambiguidade capturada pela literatura de Ogawa, isto é, a incapacidade da transmissão da memória mesmo com a presença de objetos. Objetos que apenas produzem presenças do passado, mas não memórias; sendo bastante diferente aos objetos cheios de memória que ela dispunha, mas que desapareceram daquela ilha do esquecimento. Para a protagonista, algo que acionava memórias eram as suas fotos:

Eu adorava minhas fotos. Cada vez que olhava para elas, ressuscitavam minhas mais queridas lembranças. Sentia saudades, tristeza, um aperto no coração… As fotografias eram a bússola mais confiável que eu tinha para andar na floresta das minhas lembranças. Mas agora preciso renunciar a tudo isso. É desolador e doloroso perder essa bússola, mas não sou capaz de impedir um sumiço (OGAWA, 2021, p. 113).

Pergunta-se, então, Ricoeur (2007): de que há lembrança e de quem é a memória? Esse questionamento perpassa o enredo de A polícia da memória. Para os gregos haveria anmmesis e mneme como modos possíveis do lembrar, de buscar a recordação (que significa justamente a memória que atravessa o coração), e da memória como o fundo pelo qual se mantêm as coisas passadas – a presença ausente. A rememoração está interditada para os ilhéus. Como busca da memória, do lembrar-se, encontramos um esforço reflexivo para tanto. É o que vemos quando a protagonista se volta para as suas fotografias. De outro modo, na citação anterior, onde não há transmissibilidade da memória, a personagem não consegue capturar essa disposição, diferente do que fazia sua mãe, por conta daquele objeto não se situar no passado, mas em seu horizonte perceptivo. Ela não conseguia, de maneira alguma, se ligar a ele de modo afetivo. O objeto, estava lá, mas não havia nenhuma memória acerca dele, o que faria a anamnesis ligar-se à mneme.

III. Na Ilha do romance de Yoko Ogawa as pessoas já não sabem os sentidos e os significados das coisas tangíveis. Ali estão banidas tanto as coisas quanto as memórias. Há apenas um inverno eterno, em que o esquecimento e a perda prevalecem. A mãe da protagonista, por ter guardado em uma cômoda coisas ameaçadas de sumir, é perseguida e morta pela polícia da memória. Byung-Chul Han (2022) compreende a obra como uma analogia aos nossos tempos presentistas. O aumento de objetos, sobretudo pelos dispositivos da obsolescência programada, daria a impressão do contrário. Além disso, diferentemente do regime opressor daquela Ilha, nosso presente é marcado pela ilusória sensação de liberdade e de comunicação ilimitada. No domínio das informações, salienta o filósofo, as coisas tangíveis, com substancialidade, são substituídas pelas não-coisas.

Na distopia de Ogawa há o completo esvaziamento do mundo, que desaparece. Em A polícia da memória tudo é apagado. Tudo que possui materialidade, tudo aquilo que é terreno, tudo aquilo capaz de vincular a anamnesis à mneme. Ao final, o que sobra são presenças que não possuem durabilidade e não evocam sentido – vozes desencarnadas que apenas flutuam como as nuvens e que não tem peso e não duram como forma. “A ilha sem nome das coisas e com memórias perdidas se assemelha ao nosso presente em alguns aspectos” (HAN, 2022, p. 9). A sociedade hoje, repleta de informações, se lança ao desfazimento das coisas e à fantasmagoria. Os intensos processos de digitalização do mundo retiram a sua tangibilidade. Na atualidade, a polícia da memória é trocada pelas mídias digitais. A comunicação é, hoje, substituída pela presença. As informações falseiam, manipulam e deturpam o real; quando não o substitui. Elas também não duram.

A ordem do mundo terreno, a terra, se constitui, portanto, de coisas que ganham forma e, assim, duram, sendo um ambiente minimamente estável por onde torna-se possível a coabitação. Há, por meio delas, a estabilização do mundo humano, pois lhe sustentam e imprimem um senso gravitacional. A ordem digital retira, por outro lado, a substância das coisas, a descoisifica no processo de informatização. Já não olhamos o mundo com os olhos humanos, mas pelo Google Earth e Cloud. Não há nada que tenha substância, que tenha materialidade em si mesmo, que seja, de outro modo, tangível. As informações substituíram as coisas terrenas, logo, impedem o repouso humano, na medida que há a impossibilidade do demorar-se nelas. A sua grande fugacidade desestabiliza a vida. Não por acaso a realidade mesma do mundo está sendo colada em segundo plano.

A obsolescência programa é um sintoma desse quadro. Os objetos, ali, não são feitos para durar. O que leva a total indiferença pela realidade social e humana. Isso se projeta para a compulsão por informações, por selfies e por dados. É o resultado da infomania. Pergunta-se Byung-Chun Han (2022, p. 18): qual o destino das coisas quando elas estão enredadas em informações? Ser e tempo, de Martin Heidegger, necessitaria de uma atualização. O ser-aí (o Dasein) como história, como incorporação de uma temporalização, que se lança na facticidade do mundo, à sua ordem terrena, parece não ter condições mais de sobrevivência. A facticidade fora amplamente substituída pela artificialidade das não-coisas, o que impossibilitaria a própria história, posto que não mais se narra, mas se adiciona e se contabiliza informações, imagens-modelo, selfies e dados. Na ordem digital há os números e não mais história e memória, havendo não outra coisa do que a fragmentação, a desintegração e a atomização da vida. O Dasein não pertence ao mundo da digitalização. Nessa nova ordem estaria indisponível a facticidade terrena. As coisas na atualidade, assim como naquela Ilha da distopia, estão desaparecendo.

Paul Ricoeur pode, nesse sentido, apoiar as reflexões de Han, sobretudo, no que tange ao problema do esquecimento. No livro de Ogawa, assim como na infocracia do filósofo sul-coreano, ele é absoluto, pois opera por meio da interdição dos rastros. Isso é assinalado por Ricoeur em termos neurológicos, lembra Nathália Cardozo (2023). O filósofo francês argumentou que o esquecimento seria um apagamento ou uma espécie de erosão da memória. É exatamente o que ocorre no romance de Ogawa, sendo ali um cenário ainda mais radical, dado que impede, pelo sumiço das coisas que tornam passíveis de rememoração, o habitus, que seria o modo de levar a anamnesis à mneme. Lembrar e recordar são exercitados. O impedimento da lembrança como habitus não levaria a outra coisa do que a despersonificação. Podemos verificar essa reflexão a partir duma importante passagem do romance, em que há o diálogo entre a narradora e um balseiro, noutra fecunda analogia possível para os tempos de digitalização do mundo. O diálogo se deu, de todo modo, através de quais seriam as funcionalidades duma caixinha de música:

— Ainda assim, não deixa de ser estranho ter diante de si um objeto que já sumiu. É algo que supostamente não existe mais. E aqui estamos nós, admirando esta caixinha, ouvindo sua música. Até dizer “caixa de música” em voz alta é uma coisa extraordinária. — Eu acho que não tem nada de extraordinário. A caixinha de música está diante de nós. Ela existe. Ela tocava música antes do sumiço e, depois do sumiço, segue tocando. A corda continua durando o mesmo tempo. A melodia se repete o mesmo número de vezes. O ofício da caixa continua sendo o mesmo: tocar música (OGAWA, 2021, p. 175).

Mas a protagonista e o balseiro não encontram sentido algum naquela caixinha de música. Eles não reconhecem e não possuem nenhuma intimidade com ela. As coisas que desapareceram não fazem sentido para os dois. Eles não conseguem imprimir rememoração e, então, acessar os sentidos e os afetos passados, ou a menme. Vejam bem:

— Estou me esforçando, mas por enquanto não deu em nada. — É claro. É muito difícil lidar com uma coisa que sumiu. Para ser sincero, cada vez que eu dou corda nesta caixinha, fico com um sentimento de vazio. Quando a tiro do armário, tento me convencer de que, desta vez, vai acontecer algo diferente, mas sempre sou traído pelas minhas expectativas (OGAWA, 2021, p. 226).

A polícia da memória pretende, conforme o livro de Ogawa, não outra coisa do que o total apagamento dos traços. Paul Ricoeur (2007) pensa, nesse sentido, na função epistemológica e mesmo existencial dos traços. O total apagamento dos rastros levaria ao esquecimento definitivo. Justamente o anseio da polícia da memória e do governo daquela Ilha. Não haveria nem mesmo a possibilidade de acesso ao esquecimento de reserva, que seria um modo de poder reconhecer, já ao nível do inconsciente, rastros esquecidos (na reserva), que, conforme acreditava, implicaria em um pequeno milagre da memória feliz. Na obra de Ogawa as ações da polícia da memória interditam o recordar algo que marcou.

IV. Logo no início do romance, a narradora sem nome lembra-se da sua mãe contando a história desses desaparecimentos que passaram a ser frequentes naquela Ilha. A sua mãe lhe disse: “ — Muito, muito tempo antes de você nascer, este lugar tinha uma abundância de coisas. Coisas transparentes, coisas cheirosas, coisas farfalhantes, esvoaçantes, luminosas… enfim, maravilhas que não pode nem imaginar” (OGAWA, 2021, p. 9). Mas, conforme o relato da mãe, aquelas coisas não podiam ser mais guardadas. Seriam coisas fascinantes, mas que foram apagadas totalmente, ao ponto de não conseguir transmitir à filha. Então explica de forma comovente: “Enquanto vivermos nesta ilha, precisamos ir apagando de nossos corações, um a um, os objetos ali guardados” (OGAWA, 2021, p. 9).

O esquecimento total do livro de Ogawa nos faz pensar o mundo atual das não-coisas em movimento nas infosferas, local onde o Dasein deixa de existir. Entramos, então, na era pós-factual. É o mundo onde não há sentido, não há verdade, não há comunicação, mas apenas presença e fantasmas. Por isso Martin Heidegger e Hannah Arendt preocupavam-se tanto com a duração, que é da ordem terrena. A verdade também é da ordem factual, por isso capaz de estabilizar a vida humana. “Em contraste com a informação, a verdade possui uma solidez de ser. Ela se caracterizaria pela duração e pela permanência. Verdade é facticidade” (HAN, 2022, p. 21). As infosferas não abrigam as verdades, pois elas são da ordem terrena. As informações mostram-se como símbolos da era pós-factual, pois além de efêmeras não oferecem estabilização às pessoas. O mesmo valeria para as imagens digitais, para as milhares de selfies tiradas diariamente. As imagens digitais não são coisas fotográficas, mas informações. Elas só ganham presença a partir da comunicação digital. Não possuem aura, ou seja, não abarcam memória, destino e história. Assim, os smartfones fazem, pois, desaparecer as fotos como coisas.

Promessa, confiança, decisão e responsabilidade, coisas de fato terrenas, perderam os seus sentidos. A terra é esquecida. No universo das não-coisas não há duração, condição para o ser. Além disso, a sua fugacidade torna, por seu baixo grau de experiência, impossível a memória, ao passo que se aumenta exponencialmente a presença de imagens e de dados. Informações não geram, enquanto não-coisas, conhecimento. Viajamos pelo ciberespaço sem termos a experiência de ter ido a algum lugar de fato. Acumulam-se followers e não há encontro com nenhum novo seguidor. “Assim, as informações desenvolvem uma forma de vida sem constância e duração” (HAN, 2022, p. 23).

Parece importante retornamos àquele diálogo entre a protagonista do romance de Ogawa e o balseiro. Ela fora alertada, ao longo do livro, por um personagem chamado R., sobre valor da recordação e de se poder, assim, imprimir sentidos ao passado. Foi ele que a presenteou com a caixinha de música. Aqui encontramos a fórmula de Ogawa para interditar o esquecimento absoluto: tornar possível o retorno às coisas mesmas através do hábito da sua rememoração, da urgência de um voltar a relembrar as coisas do mundo:

— Eu acho que essa inquietação que vocês sentem com as coisas sumidas é algo que, com o tempo, vai passando. Talvez baste se acostumar de novo com a coisa. O som da caixa de música foi criada especialmente para acalmar as pessoas. Por isso sugiro ao senhor… não, eu lhe peço, que guarde a caixinha no lugar mais reservado da balsa. Uma vez por dia, vá até esse lugar e lhe dê corda. Cuidado para ninguém mais ouvir, claro. Ninguém pode ficar sabendo. Acho que vai chegar um momento em que o senhor vai aceitar o som da caixinha (OGAWA, 2021, p. 176).

O que o romance de Yoko Ogawa pode nos ensinar, em diálogo com as filosofias de Paul Ricoeur e de Byung-Chun Han, é a necessidade de nos habituarmos novamente a recordarmos as coisas terrenas, as coisas mesmas desse mundo. A nossa terra seria aquela pequena caixinha de música que precisamos, conforme discorrido, aprender novamente a ouvir, para que, então, possamos vencer o esquecimento total das coisas terrenas e do próprio planeta. A melodia da caixinha de música são os bons afetos e os bons encontros. Ricoeur vai ainda mais longe: devemos voltar a produzir narrativas, narrar o mundo, forma como o ser se torna temporal, humano, duradouro. Ele retoma o lema de Kant: sapere aude (ouse saber)! O convite de Han, Ogawa e Ricoeur é o da refactualização do mundo, para podermos coabitá-lo, para podermos recordá-lo, para voltarmos a narrar os sentidos das suas coisas, podendo, então, enviá-las novamente ao futuro, sendo esse um gesto de responsabilização coletiva, uma forma especial de cuidado, um novo amor mundi como ensinou Hannah Arendt, visando, assim, a sua continuidade e a sua preservação.


Referências bibliográficas

CARDOZO, Natália Fernandes. Às 8h15 o mundo se despedaça: uma análise de A polícia da memória, de Yoko Ogawa, sob a perspectiva da Segunda Guerra Mundial. Trabalho de conclusão de Curso (Letras Português) – Universidade de Brasília, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, 2023.

HAN, Byung-Chul. Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida. Trad. Rafael Rodrigues Garcia. Petrópolis: Vozes, 2022.

OGAWA, YOKO. A polícia da memória. Trad. Andrei Cunha. São Paulo: Estação Liberdade, 2021.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

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