Que Brasil se vê através da cachaça

Novo livro traz estudos inéditos sobre o imaginário da aguardente – e os seus sentidos em momentos cruciais da história brasileira, a partir de vozes como as de Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Aldir Blanc. Leia a entrevista com os organizadores

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Por Joana Monteleone e Maurício Ayer, entrevistados por André Botelho, Caroline Tressoldi e Maurício Hoelz 

Esta entrevista é produzida em parceria pelo Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social e Outras Palavras. Para ler outras publicações da parceria, clique aqui

Passado o Carnaval, no sábado “de cinzas”, 17 de fevereiro, será lançado em São Paulo o livro Cachaça, história e literatura, de Joana Monteleone e Maurício Ayer (orgs.), pela Alameda Editorial, em evento no restaurante Rota do Acarajé. A obra reúne contribuições de historiadores e críticos literários que se dedicaram a estudar os lugares sociais e culturais que a aguardente-de-cana tem assumido na sociedade brasileira ao longo da história. O volume também inclui a transcrição, inédita em livro, do ensaio “Os eufemismos da cachaça”, de Mário de Andrade, texto muito procurado e que agora fica facilmente acessível para todos os leitores. 

Sabe-se que a aguardente-de-cana, no Brasil Colônia, serviu como moeda de troca no tráfico negreiro; porém, em paralelo, veio a tornar-se bebida ritual nas religiões afro-brasileiras, utilizada em práticas de culto por esses mesmos escravizados e seus descendentes. Essa cachaça, que é estigmatizada como bebida barata, ligada às mais baixas posições da escala socioeconômica e frequentemente associada à degradação social pelo alcoolismo, poderá, invertendo sua significação, ser evocada como símbolo de brasilidade, portadora dos mais legítimos atributos da nacionalidade brasileira.

Por todas essas ambivalências e contradições, a cachaça rende muito à pesquisa. Sua ampla circulação na sociedade brasileira, cumprindo uma infinidade de funções, continua a provocar os pesquisadores a estabelecer nexos entre os mais diversos contextos de sociabilidade. Como os citados rituais religiosos, a hospitalidade caipira, sertaneja ou caiçara, os usos medicinais, a culinária e a diversão báquica ou exusíaca, para citar apenas alguns, atravessados de sentidos culturais, políticos, sociais, econômicos…

O livro Cachaça, história e literatura não tem nenhuma pretensão de esgotar o tema, longe disso. Reúne oito ensaios e um punhado de crônicas, e pretende ser muito mais um convite a que pesquisadores de diferentes áreas se interessem por estudar mais detidamente a cachaça – e produzir novas contribuições.

Em oito ensaios, um pouco da riqueza da caninha

Co-organizadora e autora do livro, a historiadora Joana Monteleone afirma que “nada é simples ou evidente quando nos debruçamos sobre uma bebida que faz parte da história, da vida e do imaginário do brasileiro há séculos”. Ela destaca que, “ao longo do tempo, [a cachaça] figurou na maioria das vezes fora do centro das atenções, dos registros, dos escritos”. Co-organizador e autor, o crítico literário e professor Maurício Ayer complementa: “é notório que a cachaça costumou circular principalmente pelas margens da sociedade, associada a categorias sociais subalternas e, não raro, exercendo papéis, no mínimo, ambíguos”. Por isso mesmo, a cachaça suscita muita curiosidade de quem quer ir além do gole e degustar cultura junto com a bebida. O livro foi então concebido em diálogo com os autores e procura responder questões que frequentemente se colocam aos interessados pela cachaça e sua história.

Uma dessas questões é o próprio nome da caninha. Hoje, a legislação diz com precisão o que é cachaça e o que é aguardente, mas historicamente não foi sempre assim. Em seu artigo publicado no livro, o historiador Renato Pinto Venancio identificou os diferentes nomes das bebidas de cana-de-açúcar no Brasil Colônia, um estudo que certamente será muito útil para quem quiser estudar a aguardente neste período. Por outro lado, o citado ensaio de Mário de Andrade é também uma investigação sobre os jeitos de nomear a cachaça; só que o escritor e etnólogo está atento aos sentidos que a linguagem ao mesmo tempo guarda e revela.

Em conversa com o autor paulista, o historiador Lucas Brunozi Avelar foi estudar nos manuscritos de Mário de Andrade, reunidos nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e lá procurou todas as anotações que ele fez sobre a cachaça. E esse fio leva até o artigo de Joana Monteleone: a historiadora mostra como a cachaça foi alçada à categoria de “símbolo nacional” justamente por uma geração de folcloristas em meio a um debate do qual participaram tanto o mestre do modernismo paulista quanto Câmara Cascudo e, objeto de sua atenção, o sergipano José Calazans, autor do primeiro livro sobre a bebida publicado no Brasil, Cachaça, moça branca.

A presença da cachaça nas grandes cidades inspirou dois estudos incluídos no livro. O historiador João Luiz Máximo da Silva pesquisou como era o consumo da bebida na cidade de São Paulo no final do século XIX. E o crítico (e também historiador) Fabrício de Araújo César Gonçalves analisa como a cachaça aparece na obra de um dos maiores letristas da música popular brasileira, o carioca Aldir Blanc. A cachaça servida nos ebós a Exu também faz de Rio e São Paulo duas verdadeiras encruzilhadas entre mundos e imaginários.

Indo da cidade aos sertões, temos os dois outros ensaios. A historiadora Rafaela Basso mostra como a aguardente teve um papel importante nas expedições empreendidas pelos bandeirantes paulistas (e seus descendentes) entre os séculos XVII a XIX. Por outro lado, é a própria ideia de expansão de fronteiras para o sertão que está em jogo no conto “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, estudado pelo crítico Maurício Ayer. Segundo Ayer, “este conto é um dos textos literários mais densos no que se refere à cachaça”, que tece um jogo de perspectivas entre o projeto colonizador e o mundo indígena que resiste. 

Fechando a série de estudos, o livro traz um conjunto de quinze crônicas do escritor mineiro Mouzar Benedito, todas elas tendo a caninha como mote ou tema. São as suas “crônicas cachaceiras”, a maior parte delas situada no interior de Minas Gerais, onde Mouzar nasceu e se criou, se achou e se perdeu. 

Leia a entrevista com os organizadores do livro. 

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BVPS – Vocês poderiam nos contar como surgiu o projeto que resulta na coletânea que estão lançando?

Joana Monteleone – A ideia desse livro surgiu a partir de um curso sobre a História da Cachaça, que eu dei em 2020, no Engenho São Jorge dos Erasmos, que é uma instituição da Universidade de São Paulo. O curso foi oferecido virtualmente e já tiver a oportunidade de fazer uma segunda edição dele. Nesse curso eu conheci o Maurício, a gente conversou e achou que faltava bibliografia sobre o tema, então decidimos organizar um livro juntos. Convidamos outros pesquisadores das áreas da história e dos estudos literários que estavam debruçados sobre temas ligados à cachaça. E assim iniciamos esse trabalho. 

Maurício Ayer – Exato, eu acompanhei o curso da Joana, no qual ela inclusive citava um escrito meu sobre José Lins do Rego. A gente viu que havia uma convergência evidente nas nossas pesquisas e desse encontro nasceu o livro. 

Da minha parte, esse livro é, de algum modo, o desaguadouro de alguns anos de pesquisa, que eu venho fazendo de maneira independente. Eu gostaria de citar duas iniciativas que foram importantes para mim para chegar até o livro. A primeira foi uma série de dez minicursos que eu organizei, em 2018, e que chamei de Encontros de Literatura Brasileira e Cachaça. Teve Jorge Amado, Antonio Callado, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, João Cabral, e músicos como Noel Rosa, Ary Barroso, Chico Buarque e a dupla João Bosco e Aldir Blanc. A outra iniciativa que eu queria destacar é o projeto Minas Mundo, que é uma rede de pesquisadores ligados a diversas universidades, que buscam pensar o modernismo e o cosmopolitismo a partir de Minas Gerais. Foi no âmbito dessa rede que desenvolvi a pesquisa sobre a cachaça em Guimarães Rosa, que gerou o meu ensaio incluído neste livro. 

Cachaça, história e literatura. Contem-nos se percebem diferenças importantes no relacionamento da cachaça com história e com a ficção

JM – Eu acho que, mais do que diferenças entre a cachaça na história e a cachaça na literatura, o livro aponta para uma importância da cachaça na cultura brasileira. Então a cachaça permeia a história do Brasil, se funde com essa história e, em muitos momentos, é protagonista dela. Então a cachaça está presente na escravização dos indígenas pelos portugueses, como moeda de troca na escravização dos povos africanos, e em tantos outros momentos. E isso se traduz no uso da cachaça dentro da literatura brasileira, de diferentes formas por diferentes autores. Então, mais do que as diferenças, o livro ressalta essa importância da cachaça na cultura brasileira.  

MA – Eu diria que as duas áreas, a história e a literatura, se alimentam muito uma da outra em matéria de estudos cachaceiros, e isso os ensaios reunidos neste livro demonstram com fartura. Então seria possível puxar muitos fios a partir dessa questão, pois as diferenças e aproximações nas abordagens históricas e literárias da cachaça são muito diversificadas, e muito fascinantes também. Pra citar um exemplo: é em Guimarães Rosa, um autor de ficção, em livros como Sagarana e Grande sertão: veredas, que encontramos alguns dos registros mais antigos sobre o uso da amburana com a intenção deliberada de atribuir características sensoriais especiais à cachaça – e isso na cidade de Januária, no norte de Minas. Até hoje Januária é referência e inspiração no uso dessa madeira, que se espalhou por todo o Brasil. Mas há outros imbricamentos. O meu ensaio, por exemplo, bebe muito de estudos históricos para entender essa cena, entre mítica e fantástica, que Guimarães Rosa escreve no conto “Meu tio o Iauaretê”, toda uma história de devir-animal do humano. E o mesmo acontece com o estudo do Fabrício Gonçalves sobre Aldir Blanc: uma canção como “Mestre-sala dos mares”, cujo tema histórico, a Revolta da Chibata, é tratado de maneira altamente lírica, dá ensejo a uma série de reflexões sobre a produção historiográfica, recorrendo a Walter Benjamin e Michael Löwy. 

Mas o que tem me fascinado especialmente é observar como certas tópicas relacionadas com a cachaça são perenes, parecem existir um pouco a contrapelo da história. Por exemplo, a aguardente como combustível da folia é uma tópica muito fortemente ligada à cachaça, mas que remonta a um tempo anterior à sua própria existência histórica, ao mundo medieval e mesmo antigo. Então uma das tarefas que se colocam é a de historicizar essas tópicas recorrendo à lógica da longa duração – lembrando que o próprio Braudel, ao formular o conceito da longa duração, se referencia no trabalho que Curtius fez de mapear certas tópicas da antiguidade clássica que perduraram através dos séculos na poesia medieval europeia. 

Contem-nos um pouco mais sobre o conjunto formado com as diferentes contribuições da coletânea e também as diversidades internas – por exemplo, há variações regionais relevantes nessas relações; questões de classe; de gênero?

MA – Antes de mais nada, é importante dizer que esta coletânea não tem nenhuma pretensão de figurar uma “totalidade”, nem geográfica nem temporalmente. Trata-se de um conjunto de contribuições que preenchem algumas lacunas nos estudos sobre a cachaça. Eu destacaria, pra começar, a publicação em livro do ensaio “Os eufemismos da cachaça”, do Mário de Andrade. Esse é um texto muito procurado, mas que só podia ser encontrado por quem tivesse as manhas de trafegar em hemeroteca, e agora está facilmente acessível. Uma outra contribuição importante é a do Renato Pinto Venancio, que mapeia e interpreta os diferentes termos usados para nomear a cachaça e outras bebidas entre os séculos XVI e XVIII. Esse trabalho é muito relevantes, pois serve de bússola para nos orientarmos na leitura de textos desse período. 

JM – Os ensaios apresentam, sim, uma diversidade regional. Por exemplo, o texto do João Luiz Máximo fala do Beco da Cachaça, na São Paulo do final do século XIX, enquanto o texto do Fabrício Gonçalves aborda questões ligadas ao Rio de Janeiro. Já as crônicas do Mouzar Benedito se localizam em uma pequena cidade no Sul de Minas Gerais. Também se pode ver uma diferença entre o urbano e o rural, contrastando esses textos com os da Rafaela Basso, que enfoca os sertanistas paulistas, e do Maurício, que aborda um tema situado na borda do mundo selvagem. Os ensaios de um modo geral estabelecem delimitações de classe e no meu texto eu comento a questão de gênero, a partir do próprio título do livro do Calasans, Cachaça, moça branca – essa prática comum de dar à cachaça um nome de mulher. 

Mas a ideia central do livro é mostrar a importância e a riqueza do tema da cachaça, e como ele assume, histórica e simbolicamente, um lugar importante na própria formação da identidade nacional, de diferentes formas. Então esse é um dos aspectos mais importantes. E o interessante de contar com essas várias contribuições são os caminhos que se abrem para várias pesquisas e mostra a diversidade de temas que a cachaça suscita. Isso foi muito bacana. 

Quais são os próximos planos desse projeto tão inovador?

JM – Eu e o Maurício queremos publicar um segundo volume sobre cachaça, história e literatura, que cairia muito bem. Eu mesma gostaria de abordar um outro tema que não foi abordado neste livro, que é o proibicionismo entre os anos 1930 e 1950. Eu gostaria de falar sobre isso nesse próximo momento. 

MA – Pois é, como a Joana falou, uma vez colocado esse livro no mundo a gente já começa a pensar num próximo volume, com um outro conjunto de contribuições. Esperamos até que este primeiro livro ajude a provocar essas contribuições, que outros pesquisadores se sintam instigados a abordar outros problemas. Pessoalmente, eu agora pretendo me concentrar em descrever esse conjunto de tópicas literárias, sobre as quais eu tenho falado bastante e que eu vejo como uma espécie de “retórica cachaceira”. Tenho um certo volume de material acumulado, entre leituras, reflexões e descobertas, que quero me dedicar a partilhar. 

E, afinal, é possível esboçar uma interpretação do Brasil a partir da cachaça?

JM – Acho que mais do que uma interpretação sobre o Brasil a partir da cachaça é possível ver a cachaça inserida no cotidiano brasileiro, de diferentes maneiras. A cachaça inserida nas questões econômicas brasileiras, a cachaça inserida na gastronomia brasileira, a inserida nas questões culturais do Brasil. A cachaça é parte fundamental da história do Brasil e da formação do Brasil enquanto nação, então entender essa relação Brasil-cachaça é muito importante.  

MA – Sobre isso, é curioso: Mário de Andrade, para falar da cachaça, escolheu organizar suas ideias em torno da figura do “eufemismo”. E o eufemismo é um modo de amaciar a dureza do real, então ele aponta para um certo campo das tópicas cachaceiras. Do que eu tenho observado, se eu fosse escolher as figuras pra falar do Brasil através da cachaça, teria que recorrer à ambiguidade, ambivalência, contradição, paradoxo… Ou ainda, a ironia. A cachaça não apenas configura tópicas opostas, mas muitas vezes transita de um a outro polo numa única frase, num único verso. Ela pode ser o que exalta e o que deprime, o que torna mais verdadeiro e o que falsifica, o que ilude e o que esclarece, o que exacerba o amor ou converte em brutalmente violento. É assim que a cachaça, ao mesmo tempo que é considerada uma bebida das camadas mais baixas da sociedade, como o bêbado que vive na rua, também é evocada como portadora de sentidos profundos da identidade nacional, como a Joana destacou antes. 

Simbolicamente, a cachaça, quando aparece, ativa o imaginário da transfiguração, da trans-substanciação, que é tanto a destilação da água-da-vida na tradição alquímica quanto o marafo de Exu e, ainda, o substituto do cauim nos rituais canibais dos tupinambás e outros povos ameríndios. Não me parece casual que a cachaça tenha sido tantas vezes na história acusada de ser responsável por revoltas e aquilombamentos, o que justificou a sua proibição. Ao mesmo tempo que toca o imaginário da transformação, aqui sociopolítica, também se projeta na cachaça as causas que na verdade estão na violência colonial e escravocrata. Aí a figura que vem à tona é essencialmente a metáfora, entendida etimologicamente como um trânsito de sentido, a revelação de um outro de si mesmo. 

Então, nesse esboço de interpretação, eu diria que a cachaça parece dar relevo ao aspecto fundamentalmente ambíguo, contraditório e metamórfico do Brasil. Quer dizer, como um país que se reconhece carnavalesco e como uma sincrética encruzilhada cultural, mas que também esconde sua violência e desigualdade. E que, talvez, se esse estudo for capaz de desrecalcar e analisar esse conteúdo marginalizado que existe em associação à cachaça, isso possa ajudar a transitar para um lugar em que essas contradições se estabilizem como diferenças, sem se anular. 

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