Virginia Woolf e a ilusão da biografia

Orlando, novo filme de Paul Preciado, mostra a atualidade da obra homônima da escritora. Por meio de relatos de trans, e com olhar marxista, mostra uma visão não-binária de invenção de mundos e vidas, onde a palavra cria o corpo e o corpo cria a palavra

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Orlando (1924) é um livro de Virginia Woolf, um livro escrito como piada, mas que acabou sendo seu maior sucesso. Filha de um historiador e editor inglês, Leslie Stephen, a escritora estava acostumada às biografias épicas dos grandes homens da história ocidental, e um tanto cansada delas. Foi assim que nasceu Orlando, como uma grande piada contra a pretensão épica e viril dos machos históricos.

A história se impôs à Virginia como um raio, como a louca paixão que experimentou por Vitta Sackville-West. Um belo dia Virginia sentou em uma cadeira e não parou mais de escrever, inspirada pela justiça poética que devia à sua musa, a autora escreveu o livro em uma tacada só.

Vitta era uma aristocrata. Andrógina, independente e livre, Vitta colecionava amantes lésbicas ao mesmo tempo que mantinha seu casamento (supostamente) convencional. Virginia se apaixonou perdidamente por Vitta e, ao saber que ela não poderia herdar as terras de sua família por ser mulher, decidiu escrever um romance em sua homenagem. No romance Vitta seria homem e por isso seria verdadeiramente livre para viver suas aventuras e administrar seu dinheiro.

A andrógina Vitta, amante de Virginia

A piada de Virginia era então uma ironia bem elaborada e com muitas camadas. A escritora jogava com as pretensões de linearidade de quem contava a vida dos homens importantes, aqueles que mereciam biografias. Quebrava as regras do jogo judicial, entregando as riquezas na mão de sua amante mulher; distorcia as normas do tempo, ao fazer sua personagem atravessar os séculos viva; e por fim, construía uma ponte entre os aparentemente inconciliáveis gêneros humanos. Orlando nasce homem no século XVI e dois séculos depois acorda mulher.

Foi por isso que o livro se tornou, cem anos depois, um grande símbolo trans. Como diz Paul B. Preciado, filósofo e ativista trans, na abertura de sua adaptação do livro para o cinema: eu não preciso escrever minha autobiografia, a da Virginia Woolf já fez isso por mim. Sem perceber, Virginia era a primeira a tornar popular a história de vida de uma pessoa trans.

Atrizes do filme “Orlando” de Preciado interpretando a protagonista

Mas a biografia que Preciado escreve em imagens não é só sua, como ele mesmo chama, o filme é sua biografia política e em nenhum momento ele se esquece de que esse é um projeto coletivo. “Toda vida individual é uma história coletiva”, como ele mesmo pontua ao longo do filme.

Virginia em seu ensaio mais famoso “Um Quarto Todo Seu” reivindica o direito da mulher burguesa à sua individualidade, para escrever, para criar. Paul, um homem trans marxista, pede em seu filme por um corpo coletivo e múltiplo, capaz de criar novas ficções políticas (como ele chama) e portanto novas formas de vida. Ele também distorce as noções biográficas e encaixa suas reivindicações no universo da transição de gênero.

Pierre Bordieu já tinha percebido, em 1986, como a totalização das experiências de vida em torno de uma história uniforme era uma falácia. Apesar de estar se referindo ao universo das pesquisas em ciências humanas, o termo que cunhou, a “ilusão biográfica”, pode ser aplicado a muitos outros universos, como o da própria arte ou, e especialmente, à medicina psiquiátrica.

E se a imposição de uma linearidade histórica e coerente de vida já é opressiva para todos os humanos, para as pessoas trans ela traz (pelo menos) um agravante. Muitas vezes para se legitimarem como trans, essas pessoas precisam contar uma história que se encaixe na lógica binária dos gêneros, ainda que invertida.

Personagens de “Orlando” na sala de espera do psiquiatra que deve validar seus gêneros

Só podem ganhar as doses de progesterona as pessoas com pênis que gostavam de brincar com Barbie quando crianças. Só ganha testosterona quem nasceu com vagina mas jogava bola desde cedo. Essas ideias nonsense sobre o que define um gênero são feitas para manter as pessoas trans em um lugar de passividade, de pacientes que precisam de seus remédios, ao invés de seres criativos dispostos a inventarem suas próprias vidas.

Mas como Paul sabe que a palavra cria o corpo e o corpo cria a palavra, ele vai usar seus hormônios e sua poesia para criar uma nova visão não-binária de invenção de mundos e vidas. A literatura de Virginia, assim como o de muitos romancistas modernos, pretendia criar uma nova expressão não linear de histórias de vida na arte e mostrar que a história não é feita de eventos sucessivos e de eventos aleatórios. Paul dá vida e corpos à essa ideia, mostrando que também os gêneros são alineares.

Mas o filósofo nunca se volta só para a arte, ele mira sempre nas reverberações políticas e por isso demanda, poeticamente, no final do filme, uma união global pela autenticidade dessas vidas múltiplas, nômades de geografia e gênero, que sofrem por nenhum outro motivo, que não as imposições coloniais e patriarcais de poder.

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