Uma vaca em Veneza

Selecionado para a mostra competitiva do Festival italiano, filme da brasileira Moara Passoni investiga, a partir do corpo, os nós existenciais do Brasil: contrastes e metamorfoses entre urbano e rural, humano e animal, conflitos políticos e dramas ambientais

Foto: divulgação

.

Urbe imensa
Pensa o que é e será e foi
Pensa no boi
Caetano Veloso, Aboio

A mostra competitiva Orizzonti (Horizontes) do 81º Festival de Veneza 2024 terá um brasileiro na disputa. É o curta-metragem Minha mãe é uma vaca, da diretora e roteirista paulista Moara Passoni. O filme condensa questões que atravessam os nós existenciais do Brasil: os conflitos que habitam a zona de fronteira (colonial? exploratória? extrativista? de apropriação?) sempre em expansão – e sempre em atrito com a resistência. Bem no centro desse choque, está cada um de nós, mais ou menos exposto/a, e estourando de algum lado. 

O filme, que será exibido três vezes na programação de Veneza, conta a história da menina Mia (Luísa Bastos), filha de uma ativista ameaçada de morte. Câmeras e microfones se posicionam bem perto dela, para que o filme respire com o seu medo e a sua angústia. Atravessamos referências muito vivas e atuais, como os incêndios do Pantanal, o fato de o Brasil ser um dos países onde mais ativistas políticos e ambientais são assassinatos no mundo, ao mesmo tempo que lidera entre os maiores exportadores de proteína animal. 

Porém, o filme também fala da história pessoal de Moara, filha de uma importante liderança do movimento social nas periferias de São Paulo nos anos 1970 e 80. Essa coexistência de dois tempos funciona como uma primeira bifurcação que nos leva a pensar em conflitos muito fundamentais do país, que se deslocam de lugar ou de protagonistas a cada momento histórico, mas apenas como avatares de um mesmo problema: o Brasil ser “um moinho de gastar gente” na expressão de Darcy Ribeiro, e de que nem sempre essas gentes estão dispostas a ser mastigadas pelas engrenagens.      

Raras vezes um filme terá mobilizado tantas camadas simbólicas numa duração tão exígua. Em Minha mãe é uma vaca, como num conto de Guimarães Rosa, curto e cortante, Moara cria um espaço imaginário de contrastes e metamorfoses entre o urbano e o rural, o humano e o animal, conflitos políticos e dramas ambientais, a máquina econômica em operação e os corpos que doem e reagem – enfim, entre vida e morte em seus múltiplos significados. 

A mãe, a vaca

No primeiro quadro, o rosto da mãe, enigmática máscara, toma a tela inteira. Depois vem o rosto da filha – que sangra pelo nariz e recebe um último cuidado. É o cara a cara de uma separação. Essa ruptura arranca Mia do contato físico do corpo materno. Sua mãe corre perigo, por isso a envia para ficar em segurança na casa dos tios, em uma fazenda no Pantanal. O medo de que algo extremo aconteça à mãe circula nas conversas que a garota ouve pelos cantos. Mia tenta protegê-la com manobras do pensamento mágico. Mas ela sangra, novamente, agora como se a infância lhe escorresse pelas pernas. 

Nessa zona limítrofe entre o rural e o selvagem, vida e morte são palpáveis na criação e no sacrifício de animais. Uma onça ronda, ameaça o rebanho, está comendo os bezerros. Um onceiro descreve como usa a zagaia (uma espécie de lança) para matar esses grandes predadores. No momento não há para onde levar o gado, pois o fogo se alastra pelas matas. O fogo não é natural nem acidental, na maioria das vezes os incêndios são criminosos, atiçados pela ganância de liberar áreas de floresta para novas pastagens. Um conflito civilizatório de dimensões épicas está em curso. A celebração da Páscoa evoca o simbolismo da passagem e da ressurreição.

Os sentidos circulam, como a menina entre o rio, a casa, o curral e o matagal. O mundo em estado nômade: tudo é e não é. No seu profundo desamparo, Mia de repente reconhece na vaca os olhos da mãe. Como se esse conto cinematográfico, de aparência realista, de repente começasse a habitar o mito, fazendo ressoar nos seus ritmos profundos uma dimensão xamânica. 

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro explica que, em muitas culturas, o xamã é o único que consegue transitar entre as perspectivas de humanos, deuses e animais. O xamã ou alguém que esteja muito adoecido. A menina vive esse lugar metamórfico. Seria a adolescência uma espécie de adoecimento, necessário à transformação? Ou sua doença é o medo radical, que desloca todos os parâmetros?

O medo se materializa na onça. É muito concreto. Ligada à vaca, cujo nome é Amorosa, Mia quer protegê-la dos seus predadores, tanto os humanos como os animais. Para enfrentá-los, ela pode se converter no seu oposto, adentrar uma encruzilhada entre a menina, a vaca e a onça. Vem-lhe à flor da pele o animal-mulher que ela já começa a ser. Feroz, como sua mãe.

Uma trajetória no cinema

Minha mãe é uma vaca é uma produção de Sofia Geld e Daniel Liu, da Uvaia Filmes. O filme ecoa temas que são constantes na trajetória de Moara, como a relação entre mãe e filha, a descoberta de si e os atravessamentos entre o corpo e a política, entre o real e o imaginário. 

Seu primeiro curta-metragem, O sonho de Tilden, tinha como premissa um sonho que se materializava em uma ação política francamente delirante: o ativista e ex-embaixador brasileiro em Cuba Tilden Santiago se encontrava com o ícone do nuevo cine latino-americano Fernando Bírri para redigir uma carta para o Papa (na época, o nada progressista cardeal Ratzinger), pedindo a ele uma cruzada pela libertação da América Latina. Levado a sério, o sonho daqueles dois respeitáveis senhores nos punha a discutir afinal o que faz com que acreditemos em possibilidades para a América Latina, se não a capacidade de delirar majestosamente… Estávamos então no mesmo campo do realismo maravilhoso que agora fomenta os diálogos de meninas com vacas e onças.  

O longa-metragem Êxtase (2020, vencedor de prêmios como MoMA’s Doc Fortnight, o Cinema do Real e o CPH:DOX Awards), construído como um ensaio com amplo trânsito entre o documental e o ficção, investiga de dentro a experiência de anorexia que Moara viveu em sua infância e adolescência. Também aqui a relação com a mãe é central, assim como o profundo e doloroso atravessamento entre o corpo e a política. 

Este filme de algum modo se desdobra em uma outra produção na qual Moara trabalha neste momento. O projeto Custo de Vida será um filme de ficção inspirado na história do movimento que teve a mãe da diretora, Irma Passoni, como uma das principais líderes. O tema é o movimento de mães da periferia de São Paulo que questionou a ditadura militar desde 1973 e abriu espaço para muitos outros movimentos sociais e políticos que resultaram no restabelecimento da democracia no Brasil. A mãe de Mia é certamente um eco da mãe de Moara… e podemos encontrar ali os registros da dolorosa experiência de ter sua própria mãe na mira de poderosos. 

Moara Passoni também é colaboradora constante das produções da diretora mineira Petra Costa: foi produtora associada de Elena (2014), colaborou no roteiro de Olmo e a gaivota (2015), foi corroteirista e produtora associada de Democracia em vertigem (2019), documentário que concorreu ao Oscar da categoria, e colaborou no roteiro, além de ter dirigido algumas cenas de Apocalipse nos trópicos, produção que também vai estrear no Festival de Veneza, fora de competição. O longa investiga as relações entre religião e poder no Brasil. 

Minha mãe é uma vaca

Ficha técnica

Produção: Uvaia Filmes

Escrito, Dirigido e Produzido por Moara Passoni

Elenco:
Luísa Silva
Helena Albergaria
Ana Carolina Guztazazky
Claudio Rodrigues da Silva
Amorosa

Produção de elenco:
Patrícia Faria

Produzido Por:
Sofia Geld
Daniel Liu

Escrito & Co-Montado Por
Fernanda Frotté

​​Produtor Executivo
Alexandre Moratto

Produtores:
Margo Mars
Vincent Wang
Duda Porto de Souza
Ekaterina Skakun
Patrícia Gomes

Direção de fotografia
Carolina Costa, AMC

Produtor & Diretor Assistente
Antonio Farias

Iluminação e Maquinária:
Tatiana Ursulino

Assistência de direção
Karen Gronich

Corte Fino
Antonio Bribriesca

Montagem:
Germano de Oliveira

Produtor de Pós:
Gustavo Grandke

Som Direto:
PC Azevedo

Desenho de Som:
Rúben Valdes

Mixagem:
Daniel Turini

Direção de Cor:
Ernie Schaeffer

Direção de arte:
Isabel Azevedo

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *