Ter um bebê é perder-se, um pouco que seja

Singularidades e distorções sociais marcam a experiência de ser mãe ou pai. Mas quando a tarefa de cuidado é assumida, a vida razoável se distancia. Uma castração inevitável, não necessariamente ruim, mas que exige novas (e, às vezes, incompreendidas) relações

Foto: Carrie Mae Weems
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Isso não quer dizer que não se possa elaborar generalizações ou que nenhum pai e/ou mãe ingresse nesse lugar sem nenhuma relação com um modelo ou ideal, e sim que a experiência de toda paternidade e maternidade não pode ser compreendida se os recortes sociais não forem levados em consideração. A experiência vivenciada por uma mulher branca de classe média por volta de seus trinta anos, por exemplo, não será a mesma de uma garota preta da periferia no auge de seus dezesseis anos – diferenças equivalentes podem ser notadas quando pensamos a paternidade.

Os afetos também variam segundo as posições assumidas pelos responsáveis pelos cuidados do filho. Em uma forma de união heterossexual e desigual, em que os cuidados do filho são assumidos principalmente ou totalmente pelo gênero feminino, a proximidade materna em relação ao filho virá acompanhada de uma distância paterna. A compra das fraldas, o planejamento da introdução alimentar, o controle da caderneta de vacinação, a substituição das roupas de acordo com o crescimento do filho, o acompanhamento das inúmeras vezes que o filho acorda à noite e muitas outras tarefas ficam sob a responsabilidade da mãe

O acentuado cansaço da mãe não é o único efeito dessa configuração familiar. Ao se dedicar integralmente e/ou solitariamente aos filhos, a mãe recorda os cuidados que ela mesma recebeu na infância e avalia o que foi bom e o que foi ruim, procurando descartar o que não deu certo e repetir o que funcionou. Mas também precisa enfrentar a equação expectativa/frustração, o retorno de fantasmas infantis, dúvidas a respeito da nova realidade, além de tantos outros desafios. O principal ou um dos principais desses desafios, a meu ver, é a castração imposta pelo nascimento de um filho. Castração que não é necessariamente ruim, mas que exige o estabelecimento de novas relações com o próprio corpo, com o trabalho, com os familiares, com a vida.

Talvez, já tenha ficado claro que os afetos que circulam com o nascimento de um filho dependem em grande medida de recortes sociais e da configuração estabelecida por aqueles responsáveis pelo cuidado. Não se trata somente de repisar a importância da divisão de tarefas domésticas e dos cuidados do filho para que a economia do cansaço seja mais bem distribuída. A verdade é que, quanto mais nos aproximamos do cuidado de um filho, mais distantes nos encontramos de uma vida razoável. As “pirações” e as queixas não são apanágio da mãe, mas de todo aquele que se aproxima e decide se dedicar ao cuidado de um filho (ou sobrinho ou neto etc.). Se as mães piram ou piravam, isso ocorria porque elas eram, quase que unanimemente, as únicas que se aproximavam tanto do cuidado de um filho.

Esse ambiente que nos coloca nas fronteiras da loucura se expande a todos aqueles que se aproximam do cuidado de um novo ser que vem ao mundo. Avó, tio, primos, babás, amigos… todos que decidem orbitar de maneira mais ou menos próxima do cuidado de um bebê devem estar dispostos a se perder um pouco que seja. Trata-se menos da mãe ou dos pais e mais de quem participa dessa aldeia.

Talvez, seja por tudo isso que o nascimento de um filho pode ser o anúncio de uma alegria ou o presságio de uma tristeza. Uma adolescente preta e pobre de dezesseis anos, cujo companheiro simplesmente sumiu do mapa, não vai experimentar a maternidade da mesma maneira que uma mulher branca de classe média que conta com o apoio do marido ou da esposa. E não é só isso. Nem todos estão dispostos a dispender parte de seu tempo e de sua sanidade para cuidar de um bebê. E, entre esses que não estão dispostos (que podem ser amigos e familiares, mas também podem ser o Estado e a Igreja), nem todos compreendem ou se permitem compreender que a vida daqueles que cuidam de um bebê vai virar do avesso.

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