Teatro: as labaredas insurgentes de Erupção
Nota emocionada sobre o espetáculo-terreiro da ColetivA Ocupação. Diante dos corpos em dança, penso na potência submersa do levante que pede passagem na sociedade brasileira. E imagino que a ferida aberta pós-2013 tem cura
Publicado 23/09/2022 às 14:08 - Atualizado 23/09/2022 às 14:13
Quarta-feira, 14 de setembro de 2022. 458 dias depois da “Batalha da Consolação”, da explosão do levante de Junho de 2013. 18 dias para o primeiro turno das eleições presidenciais que podem pôr fim à experiência abjeta de termos Jair Bolsonaro como presidente do Brasil.
É fim de tarde, no auditório do SESC-Santos, e eu assisto à estreia do espetáculo Erupção, da ColetivA Ocupação. Foi nesse mesmo auditório no qual, anos atrás, assisti a Quando Quebra Queima, a primeira jornada desse grupo teatral fabuloso formado por jovens artistas que participaram das ocupações das escolas de ensino médio do Estado de São Paulo e que têm como sua diretora Martha Kiss Perrone.
Começo pelo fim. Pois é do fim que se trata. Do fim que nos permite vislumbrar um novo começo. Meus olhos mareados me põem a pensar na potência submersa do levante que pede passagem na sociedade brasileira. Todos os corpes dissidentes, todos os corpes vivos, as meninas, os meninos, es menines, eles pisam o chão de terra batida, de areia colorida, que ornamenta o espaço cênico. Estou banhado por essa fuligem quase sacra. É a terra, estúpido! São os corpos, estúpido! A terra que foi saqueada dos povos originários, os corpos que foram explorados (seguem sendo) pelo colonialismo, pela escravidão.
A ColetivA gira e gira e gira, num espetáculo-terreiro, cobrando a dívida impagável (é preciso exigir o impossível, para que fiquem evidentes os limites, portanto a dimensão do salto). Eles nos mostram que a radicalidade é filha da interseccionalidade.
Eu me comovo porque, no palco-praça, só vejo vida que pulsa, no balanço de uma coreografia da liberdade. Vidas que fazem movimentos pélvicos e dão saltos barulhentos para denunciar este mundo em que a necropolítica nos amassa a todes, inclusive os privilegiados. Eles resistem. Estão sob os escombros, são filhos do desterro, do apagamento histórico (o espetáculo revolve os porões da historiografia, com algum didatismo, para falar de Tituba, a bruxa negra, dos haitianos que fizeram a revolução, dos Malês, que sacudiram a Bahia).
São menines todes lindes, que dançam sem medo a música do nosso tempo. Um batidão que assombra como o ruído de um vulcão que ambiciona lançar labaredas sobre a superfície terrestre.
Meus olhos estão marejados porque ali, diante do ilê adornado por fios de laser da ColetivA Ocupação, eu antevejo que a ferida que começou a crescer pós Junho de 2013, quando o fim do pacto de redemocratização celebrado na Constituinte de 1988 passou a rasgar lentamente a carne da Nação, tem cura. Ela passa por derrotar Bolsonaro e eleger Lula, sim. Mas passa sobretudo por criar meios para que essa pulsão que move a ColetivA (e tantos outros grupos subterrâneos fazedores do comum) possa nos empurrar para necessária destruição do mundo como o conhecemos (salve Denise Ferreira Da Silva), permitindo-nos realizar profundas e necessárias transformações, em benefício das maiorias.
O urgente pede passagem nas quase duas horas de espetáculo e projeta um futuro, para o Brasil, sim, mas sobretudo para a nossa espécie. E das demais sem as quais não existimos. Sem as quais a vida sucumbe. Da vida: é disso que se trata.