Silviano: Jão e o sexo

Com milhões de seguidores nas redes e presença em festivais internacionais, o cantor desponta como estrela pop. O crítico mineiro, tal como fez há 50 anos com Caetano Veloso, tenta entender esse fato cultural e o que ele conta das sexualidades emergentes

.

Este texto foi publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), parceira editorial de Outras Palavras. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

Jão é autêntico? A ascensão do astro dos dias que correm recoloca a questão que é perene no mundo pop. Jão mudou seus shows e se estiliza em performer, sai do nicho e ganha os grandes palcos, como The Town e Rock In Rio Lisboa. A vida do astro pop continua ligando seu corpo ao seu público cada vez mais amplo: no Google umas das perguntas principais sobre ele é “Jão é gay ou hetero”? Jão joga. O corpo de Jão sai em busca de gênero. Corpo, sexo, dobradiça. O jogo performático do astro nascente é tema do texto inédito de Silviano Santiago que publicamos hoje, no qual analisa a dialética aberta entre clipe e show na performance de Jão. O olhar aguçado do crítico e escritor experimentado na reflexão sobre original e cópia e repetição como diferença se volta para a espécie de montagem da persona pública do compositor e cantor, e de suas muitas citações que jogam com os horizontes mais ou menos politizados e domesticados da cultura pop.

Não à toa, parece-nos, este novo texto marca o cinquentenário do texto de Silviano sobre Caetano Veloso “enquanto superastro”. “Caetano Veloso ou os 365 dias de carnaval” foi publicado originalmente no Jornal do Brasil, Cadernos de Jornalismo e Comunicação, de jan.-fev. de 1973. Depois recolhido em Uma literatura nos trópicos, de 1978, o ensaio abriu para a crítica literária e cultural não apenas o universo pop, então estigmatizado entre a intelectualidade dentro e fora das universidades, como trouxe à tona o corpo do artista como dispositivo para sua identificação como superastro.

O texto-perfomance de Silviano atualiza a ambiguidade da cultura brasileira encarnada em Diadorim e problematiza o jogador Jão. Estará a bola da vez com Jão? Silviano marca em cima, novamente. Corpo-a-corpo. Lacan autor de “A canção de Diadorim”: o corpo de Jão diz o sexo sob a forma de dobradiça.

Boa leitura!

(Apresentação de André Botelho) 

A canção de Diadorim

Por Silviano Santiago

                                                    Para a Bia Lessa

1. CLIPE e SHOW do Jão

O clipe é a mensagem.

O clipe não tem público presencial nem jogos explícitos de Bruno Mars, tipo: ‘espera! já chego aí para bater a tua carteira na multidão da plateia’. Cenário: sala ou quarto vazio. Ação: basta um clique no link. A telinha exibe o clipe e recebe o espectador como se ele tivesse entregado ao porteiro o ingresso grátis de cinema ou de teatro. Se o número de sorteados for alto, a simultaneidade dos cliques inaugura uma casa lotada em algum momento do planeta. Não se premedita o sucesso local ou internacional.

No clipe, a performance artística do compositor e cantor Jão é secundária: ela desenrola melhor no show, como, nos dias de hoje, as dívidas do cidadão na Caixa Econômica Federal.

O show se divide em planos hierárquicos para não somar telinha e solidão. O palco na frente e na parte superior; a plateia atrás e na parte inferior. Em grande plano cinemascópico, o show acentua o movimento do corpo do artista em gestos e atitudes. Acentua também os corpos dos instrumentistas da banda. Tudo em 3D. Na plateia, sentados e imobilizados, gritos, palmas, desmaios, chiliques, o acompanhamento vocal coletivo e, nos desastres financeiros, apenas a dormência geral.

O clipe é imperturbável.

É repetitivo como toda cópia passível de reprodução ad infinitum. O clipe só se escancara e vira plateia na coluna embaixo dos comentários, escritos por fãs e detratores. Palavras céleres de espectador e apaixonadamente participativas. A comédia humana se enumera por nomes de guerra e perdoáveis atos de narcisismos. Uma sentença comercial escapa de cada cabeça que vê e escuta o clipe.

O clipe propõe uma experiência primitiva de experiência de democracia na arte. Apud Walter Benjamin.

Sobressaem cantadas, amores platônicos, esperanças, soluços, lágrimas, ironias, mordacidades, ‘a maldade nessa gente é uma arma’, suicídios e assassinatos. Tudo isso se passa no mundo virtual.

O comentário (quando se faz inteligível é porque se acerta foneticamente) é uma linha em linguagem telegráfica e muita pontuação. Em demasia, só os sinais de pontuação e os Ks, tantos para tão poucos vocábulos.

Esqueço os emojis. É o pífio da preguiça mental e sentimental pós-moderna. Corações coloridos, aos trancos e barrancos. Tão falsos quanto o rosnar do leão da Metro antes de comédia de Doris Day e Rock Hudson.

2. ROSTO, substantivo neutro em busca de gênero (gender)

O clipe é uma voz narrativa convencional, com princípio, meio e fim. Se literária e artisticamente julgado, tudo meio molenga. Afinado, no entanto, aos tempos pós-pandêmicos de juventudes pequeno-burguesas. Carentes de atenção ou de paixão.

O compositor e cantor Jão é melhor no clipe que no show.

Ele é o protagonista da historieta amorosa que está sendo narrada/cantada na telinha. Se estivéssemos no cinema, o protagonista da historieta, Jão, estaria também só lá na tela. Nos dois casos, o corpo só existe no dia da filmagem.

No clipe, o Jão na verdade não é só o protagonista, ele é o dublê de corpo da voz do compositor e cantor.

A voz cantada ecoa do corpo correspondente e definitivo do dublê do compositor e cantor. A voz diz o corpo ausente. E o dublê narra, faz de conta (“make believe”) que a interpreta. Interpreta-a com a impecabilidade exigida de dublê. Ele está a atuar em cena exatamente como o ator que está a substituir.

O dublê enuncia a mensagem do clipe pelo corpo ficcional do ator que ele não é.

(A sinceridade é um sentimento que sempre se escapa pelas brechas da arte pop pequeno-burguesa pós-pandêmica. Por isso, esse sentimento é o tema mais exigido e favorito de todas e de todos, implícito ou explícito. Facilitário hermenêutico: é o tempo das máscaras, dos heterônimos, dos fingimentos etc. Fernando Pessoa e os seus asseclas pós-modernos imperam.)

O espectador do clipe é presenteado com a privacidade requerida para demonstrar sentimentos nítidos em relação ao corpo e à voz do dublê de corpo. Privacidade necessária para o bom funcionamento, azeitado, dos seus aguçados ouvidos e olhos. À flor da pele do espectador, a sua sensibilidade fica em total disponibilidade. A máquina-espectador fica em ponto morto, se sentada no chão da sala ou deitada na cama do quarto.

Às vezes a máquina-espectador engata a primeira marcha, a dos ouvidos. Não vai imediatamente para a segunda marcha, a dos olhos sentimentais ou gozosos. Engatada a primeira marcha, perde de vista o protagonista Jão e a máquina se contenta com a própria intimidade, a dos olhos fechados. Trombadas à esquerda e à direita.

Às vezes e muitas vezes é Narciso quem abre os olhos e sonha felicidade.

A felicidade é avara e de graça. Abre os olhos e entra em sintonia com um rosto humano, em belo close up no retângulo da telinha. Chocante! E tanto escancara os olhos que, de repente, a máquina-espectador passa à terceira marcha. Engatam-se de novo a voz a fluir e o dublê a atuar ficticiamente na casa ou no quarto.

É difícil engatar ao mesmo tempo a voz do protagonista e a performance do dublê. Há gente que gosta de redundâncias: então, a máquina-espectador não sai do ponto morto. Só escuta e só vê o Jão cantar e performar simultaneamente. O clipe satisfaz também os rebarbativos (NPC, “non-player characters”), que em geral optam pelo show. Eles só existem como multidão.

3. SACOLEJOS

O dublê da voz do cantor − dito protagonista nos créditos do clipe – é sempre sacolejado por belos e esguios personagens vestidos de homem ou de mulher, ou então mascarados.

Eu te chamei de amor
‘Cê me chamou de Jão

Empurram daqui, empurram dali o dublê, que só não se escapa da tela por causa da voz altissonante do compositor e cantor. O dublê foge do quadro retangular e entrega a paisagem da tela aos personagens (a viver concretamente no tempo/espaço da dobradiça e das dúvidas do dublê de corpo, no tempo do “enquanto”).

Um sacolejante está vestido de rapaz e vestida de moça a alternativa. Entrará em cena um terceiro sacolejante, vestido de rapaz.

Não se trata do conhecido trisal, relação hoje reconhecida em documento oficial. Trata-se de um grupo familiar de jovens em fermentação, que está sendo privilegiado − et pour cause − na cena artística pós-pandêmica brasileira.

O grupo familiar explode se em contato com o inalcançável, o que nunca será um ficante, só imagem na telinha. Um rosto humano que vive a condição de dublê de si mesmo em performance de “artista” na televisão. Cito:

Em quem você pensa enquanto me beija, beija, beija
No cara mais bonito na televisão?

A beleza maquiada, mascarada, em close-up na televisão é o atrativo maior e ausente no clipe em leitura. Algo “smooth”, que nos falta no cotidiano pós-pandêmico brasileiro. Algo ou alguém, ou um rosto, suave, liso, delicado e envolvente, lembrado por Byung-Chul Han em Saving the beauty. Só no início do clipe é que o dublê de corpo toca piano e se assemelha a artista pop (hoje, informam os políticos, uma categoria social mais forte que a de cidadão em sociedade democrática), na televisão ou nos shows.

Faço esse vídeo para ser o dublê de mim, que você desconhece, mas em quem você deve estar pensando enquanto beija o seu próprio ficante. Cito:

Teu olhar me diz
Eu até gosto de você
Mas só gostar não faz feliz
Quem te adora assim até doer

O enquanto do beijo é o das “preliminares” (“foreplay”, como se diz em inglês). É momento intermediário. É experiência amorosa intermediária e acaba por durar, enquanto dobradiças que abrem e fecham portas e dúvidas, o tempo inteiro do jogo sexual.

Cronologicamente, o enquanto do beijo, em clipe, precede o enquanto da orgia, ainda em clipe, dos “gatos” (apud poetas como Charles Baudelaire e Ana Cristina César).

No último clipe gravado por Jão, o enquanto não é o do “beijo”, mas o do “lambe”. O lambe se anuncia por rostos humanos com máscaras felinas. As e os protagonistas. O conjunto bota abaixo o jogo amoroso inocente (ainda e sempre em busca da sinceridade) do beijoqueiro da canção antiga.

O artista mascarado se presentifica ao final.

É o João Guilherme, filho do Leonardo. Cai a máscara imaginária do ficante inalcançável e se adentra o kkkk.

A sinceridade no desempenho está sempre na cama (ou na letra da canção) e o tempo todo será descartada pela imaginação alheia em fuga (o pensamento do ficante foca o rosto inalcançável).

Enquanto beijo dado ao rosto do ficante, a sinceridade desenrola, se fabrica, e se enrola toda, se desfazendo finalmente em cinzas. Se sinceridade houver, o vocábulo “rosto” é sempre um substantivo neutro em busca de gênero (gender). É um ser não-binário.

William Faulkner escreveu “enquanto agonizo” sobre a grande morte. Jão escreve “enquanto desejo” sobre “la pequeña muerte” dos barrocos espanhóis, o gozo sexual. Há algo sobre a dor, a morte do corpo e o desejo do sexo, que apenas encanta a inocência pós-pandêmica e pequeno-burguesa, mórbida, de Jão.

“Eu me trabalho para ser otimista”, confessa ele, entre as duas mortes.

4. JÃO não é de ferro

Em outro clipe do Jão, o protagonista pode também fazer de conta (“make believe”) que é um showman. A mensagem do clipe é outra e vazia de significação.

Convida colegas de trabalho, como dizia Silvio Santos no famoso programa de auditório. Os/as colegas de trabalho do Jão são artistas sem máscara, nomeáveis e com rosto definido, já que são personalidades na MPB.

Nesses clipes, os personagens pertencem às Classes (refiro-me de novo ao RPG) que açulam o protagonista (jogam pra escanteio a figura anônima do dublê de corpo).

Jão vira personalidade pública sacolejado por outra(s) personalidade(s) públicas. São celebridades no clipe.

Tolices financeiras de sociedade do espetáculo. O clipe não é mais clipe, pois se confunde com o show presencial.

‘Espera aí! nossa classe unida, jamais vencida, já vai aí bater a tua carteira na multidão de espectadores’.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *