Silviano: Em busca do tempo perdido de Machado
Novo livro de um grande escritor aproxima Proust do autor de Memórias Póstumas, para questionar o busílis do projeto machadiano: como fazer, no Brasil, uma literatura que não seja de “segunda mão”? A resposta pode estar na escrita da intimidade
Publicado 27/09/2024 às 13:01
Silviano Santiago entrevistado por André Botelho e Maurício Ayer, uma publicação conjunta de Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) e Outras Palavras
Momento esperado por leitores e leitoras de Silviano Santiago está chegando: dia 30 de setembro próximo, às 19hs, na Livraria da Travessa Ipanema, Rio de Janeiro, será lançado o primeiro caderno de O grande relógio: A que hora o mundo recomeça (Editora Nós). Trata-se de um experimento de leitura em contraste entre Machado de Assis e Marcel Proust que atinge os fundamentos da literatura comparada eurocêntrica. Influência, cópia, original voltam ao alvo, mas problematizados em novas camadas de desconstrução.
Em entrevista exclusiva, concedida por email ao sociólogo André Botelho e ao estudioso da literatura Maurício Ayer, em uma parceria da Biblioteca Virtual do Pensamento Social e Outras Palavras, Silviano nos previne (ou provoca?): “Não se espere trabalho disciplinar nem multidisciplinar. É acionado pela indisciplina que, se devidamente instruída pela multidisciplinaridade, é a força que jorra a invenção e o pensamento em liberdade do artista”.
Inventiva e livre, a aproximação que o crítico faz dos dois grandes escritores é por si instigante. “Viso e visarei”, esclarece Silviano, “à análise de uma literatura nacional metropolitana, de que é exemplo a obra de Proust, em contraste com uma literatura nacional de colônia recém-emancipada das Américas, monárquica e escravocrata, de que é exemplo a obra de Machado”.
Uma das questões colocadas é como entender a escrita de Machado de Assis em um Brasil que se torna “independente” e depois uma “república” num processo que tem muito de jogo de cena e que deixa de fora a maior parte dos grupos genuinamente constituintes do coletivo que habita esse lugar e essa história. Silviano explica que “Machado não se interessa pelo entusiasmo emancipatório de cartas marcadas. Julga-o exposto às vicissitudes aristocráticas no geral e sentimentais no particular”. Em caminho diverso, Machado procura “transformar o que é ‘instinto de nacionalidade’ em ‘consciência da soberania’. Escreve e publica livros com o fim de sinalizar a hora futura em que o Brasil democrático recomeça a se pensar não mais a partir da “segunda mão”, mas do momento em que se abrir para forças civilizatórias múltiplas e planetárias”.
Sem dúvida, O grande relógio traz ponderações e provocações importantes para (re)pensarmos a literatura e a cultura brasileiras, mostrando que o que se colocava para Machado ainda nos interessa, e muito, para pensar o Brasil de hoje. E será possível inovar nas ideias sem colocar também seus dispositivos materiais convencionais em questão? Silviano diz não. Ele se “hospeda” (como ele mesmo diria) na forma do “folhetim” para subverter a noção de que a obra crítica possa, ela também, ser algo “acabado”. O que será lançado na próxima segunda-feira é o primeiro de uma série de (ao menos) três cadernos, em escrita pelo crítico, romancista e pensador mais criativo do nosso tempo.
Leia a entrevista na íntegra.
André Botelho & Maurício Ayer: Você é um crítico especialista em Machado de Assis, sobre o qual, aliás, escreveu um romance que se pode dizer definitivo; e tem formação em letras francesas, área em que atuou durante anos como professor em universidades norte-americanas. Como foi juntar Machado e Proust em O grande relógio?
Silviano Santiago: Não tive a intenção de fazer uma leitura acadêmica que analisaria e compararia as duas obras literárias geniais. O grande relógio, na linha de outros ensaios meus, é mais pretensioso que estudo na área das Letras – e o leitor dirá se mais desastroso. Arrisco, não petisco. Não se espere trabalho disciplinar nem multidisciplinar. É acionado pela indisciplina que, se devidamente instruída pela multidisciplinaridade, é a força que jorra a invenção e o pensamento em liberdade do artista. O foco do jogo de ideias são as boas e as más intenções civilizatórias do Ocidente, da Europa, no processo por demais longo de colonização do Novo Mundo. Por não ser samba exaltação de Ari Barroso, o ensaio visa a pôr o dedo do leitor latino-americano nas feridas do Ocidente. Quer desconstruir o eurocentrismo ainda dominante no pensamento nosso e de nuestros hermanos. Viso e visarei à análise de uma literatura nacional metropolitana, de que é exemplo a obra de Proust, em contraste com uma literatura nacional de colônia recém-emancipada das Américas, monárquica e escravocrata, de que é exemplo a obra de Machado. A emancipação da colônia portuguesa é singular. Fez-se por decisão de D. João VI e de Pedro IV (o nosso I), pertencentes à Família Imperial de Bragança. As demais forças de resistência cultural da época colonial (refiro-me às insurreições indígenas, ainda pouco estudadas, e aos quilombos dos povos africanos escravizados) foram jogadas para escanteio e acachapadas até o presente.
AB & MA: Fale-nos um pouco mais sobre essa singularidade geopolítica.
SS: A partir de 1822, os Bragança criam a rota para a emancipação da colônia. Será administrada exclusivamente por um desvio da nobreza europeia, pela Família Imperial Brasileira. Ela controla a formação do Estado brasileiro até 1889. Machado não se interessa pelo entusiasmo emancipatório de cartas marcadas. Julga-o exposto às vicissitudes aristocráticas no geral e sentimentais no particular. Na disputa do poder nacional pelas três forças de resistência na época colonial, a aristocracia lusitana ganha e isola no poder nacional o colono de descendência europeia. Neutraliza por completo o potencial das duas outras forças de resistência. Saem vitoriosas a língua portuguesa e a religião católica e o privilégio de comando do poder sociopolítico e econômico é concedido ao colono de origem europeia. Toda a produção artística brasileira é, como canta Barbra Streisand, de segunda-mão. Copiamos os modelos formais importados. De original só o conteúdo selvagem. Machado é o primeiro inventor de forma literária em língua portuguesa. Não pertence ao cânone nacional, fortunado. Torna-se claro porque a sua escrita literária tem de desconstruir a formação do Estado e do cidadão apenas direcionado pelo entusiasmo cívico despertado pelo grito do Ipiranga. Sua intenção é a de gerar obras literárias que não são “de segunda mão”. Teriam de ser capazes de, pela reflexão subjetiva e democrática que despertam, operar uma lenta transfiguração de valores. Transformar o que é “instinto de nacionalidade” em “consciência da soberania”. Escreve e publica livros com o fim de sinalizar a hora futura em que o Brasil democrático recomeça a se pensar não mais a partir da “segunda mão”, mas do momento em que se abrir para forças civilizatórias múltiplas e planetárias. Como exemplo, leia-se o capítulo 49 das Memórias Póstumas de Brás Cubas, “A ponta do nariz”. Há que ser incorporado ao hábito de pensar do brasileiro ocidentalizado um costume de pensar muçulmano. Deitado numa cama cujo colchão são pregos pontiagudos, o cidadão pensa o Brasil entre a dor e a felicidade da meditação, como um faquir. Machado escreve: o faquir “finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível”. Mário de Andrade reitera o paradoxo do asceta muçulmano: “A própria dor é uma felicidade”. O cidadão brasileiro não deve só consultar o relógio de pulso, afinado sempre com a hora de Greenwich. Que consulte principalmente o grande relógio de Nietzsche: a serenidade, a boa consciência, a atividade alegre, a confiança no futuro surge quando a atividade intelectual se torna intempestiva, ou seja, no momento e no lugar em que é transgredida a fronteira que demarca “o que é claro e bem visível e o que é obscuro e impenetrável”.
AB & MA: E qual a importância dessa singularidade geopolítica na obra que Machado forja?
SS: O ensaio O grande relógio tem por objetivo inicial a revelação da subjetividade pensante e criativa de um dos mais ambiciosos jovens escritores do Novo Mundo, um preto nascido no Brasil emancipado e ainda escravocrata, governado por desvio tropical da Família de Bragança. O Estado brasileiro permaneceria para sempre como corte. Inicialmente, tenho de colocar em “estado de laboratório” a obra romanesca de Machado (já extremamente bem analisada do ponto de vista sociológico e eurocêntrico). Rearticulo as várias facetas do romance machadiano com a intenção de atingir a subjetividade pensante e criativa que concebe, idealiza e realiza obra tão grandiosa que acaba por ser desconstrutora do ideal de universalidade que é determinado pela colonização europeia do Brasil. Ao contrário de Eça de Queirós, um realista-naturalista de peso, Machado inventa a moderna narrativa introspectiva em língua portuguesa. Se colocado em estado de laboratório, mais rico ficará o contraste entre a narrativa da moderna introspecção de Machado com Em busca do tempo perdido, de Proust. Tanto um dos principais temas dos dois, o ciúme, como os obstáculos que encontram para desenvolver a ambição literária, se assemelham, aqui o preto nascido no Brasil, lá, o homossexual. Inicio um longo caminho a ser percorrido. Terei forças? Daí o “caderno”, uma escrita crítica vulnerável.
AB & MA: Machado seria o inventor da moderna narrativa introspectiva em língua portuguesa?
SS: Machado de Assis se distancia do estilo vitorioso contemporâneo seu, o realista-naturalista, para entregar-se, em particular nos últimos cinco romances, a uma narrativa em primeira pessoa, de responsabilidade de um velho que, à semelhança de Proust, sai em busca do tempo perdido. O defunto autor das Memórias Póstumas é um bom exemplo. Ele já viveu toda a vida e sabe do que fala. Em diálogo com os vermes do cemitério, ele presta o depoimento sobre os variadíssimos Nãos que foi recebendo no correr dos tempos vividos. Não foi marido, foi o amante. Não chegou a ser ministro. Nem imaginou chegar a marquês. Fracasso social, fracasso político e fracasso na vida em corte. Negativas que serão elencadas no capítulo final do romance, de título redundante da trama, “Das negativas”. Que legado pode deixar à posteridade? “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
AB & MA: Mas como se pode pensar a crítica de Machado à sociedade brasileira por uma narrativa introspectiva?
SS: Se uma das hipóteses rapidamente esquematizada se afirme convincente, pode-se pensar um Machado de Assis participante numa “sociedade de corte” em semelhança a La Fontaine, que se politiza nas análises das fábulas feitas por um contemporâneo de Machado, o sociólogo Taine. Nas fábulas, Taine vê um zoológico incrível. Cada animal representa uma complexa e contundente análise de figura da corte do Rei-Sol. A escolha de tal animal para representar tal bajulador do rei é capital no entendimento da fábula. Ou não seria Machado um participante em semelhança aos escritores brasileiros pós-64, que através dos seus textos artísticos cifrados (por causa dos Nãos de responsabilidade da censura e da repressão) se politizam tal como expõe Otto Maria Carpeaux no Jornal do Brasil. Nos escritos cifrados, o crítico austríaco encontrou uma linguagem esopiana (“falar de maneira ambígua como o fabulista grego Esopo”). Linguagem crítica, feliz e rica que ganhou as páginas do New York Times. As reticências infinitas são um bom exemplo de como a repressão do tempo se representa no romance machadiano. Como é que Brás Cubas escreve (?) o capítulo “De como não fui ministro d’Estado” só com reticências? O capítulo não traz palavras, só alinhava pontos. O capítulo seguinte é ainda mais fascinante aliás, desde o título: “Que explica o anterior”. Como é que se abre a explicação: “Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior. Podem entendê-lo os ambiciosos malogrados”. O poder da censura e da repressão (lembra o “taisez-vous”, cala-te boca, do exilado brasileiro de Jô Soares), só o entenderá quem for capaz de ler reticências, isto é, aquele que é um ambicioso malogrado.
AB & MA: Machado realiza, então, uma narrativa em primeira pessoa, subjetiva e desconstrutora, que é crítica da escravização? Como isso se dá?
SS: Nesse sentido é que acredito poder pensar o esforço gradativo de Machado para criar uma narrativa em primeira pessoa, subjetiva, em que se tem, por personagem, a verossimilhança das situações vividas por ele que não são abertamente uma expressão da verdade. Os cinco grandes e últimos narradores criados pelo escritor preto nascido no Brasil ainda monarquista e escravocrata representam um quadro amplo e complexo da sociedade de corte instalada no Brasil pela família de Bragança. Através da subjetividade precária de um narrador, Machado escapa das armadilhas redutoras em que caiu o romance as Memórias de um sargento de milícias. Malandro por malandro, veja-se o upgrade que o malandro ganhou ao se transformar no capitalista Nóbrega (Esaú e Jacó). Machado cria um personagem como o Cotrim, cunhado de Brás Cubas, que ao se apresentar como “verdadeiro” é sem dúvida um racista estrutural. Da perspectiva dos amigos cordiais, ele apenas “é puro efeito de relações sociais”. No Brasil emancipado, ele remodela a violência das práticas corretivas dos escravizados durante o período colonial. Encaminha o rebelde ou o fujão escravizado não para o tronco, mas para o Calabouço, prisão no Rio de Janeiro, “de onde eles desciam [saiam] a escorrer sangue”. Insisto nas aspas para acentuar o verbo habituar, como expressivo do narrador Brás Cubas se concebido como participante: “ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, [o Cotrim] habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”. A frase é de uma atualidade assustadora.
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