Postos-chave
“O ataque deve começar no início da Missa do Galo. Evitem comer muito nessa noite. Mesmo se eles oferecerem algo da ceia pra vocês…”
Publicado 24/12/2014 às 13:35 - Atualizado 15/01/2019 às 17:37
Conto de Leonardo Gomes Nogueira | Imagem: Edvard Munch, Trabalhadores a caminho de casa (1913-15)
A senha é uniforme. Como toda senha deve ser. A senha é o uniforme.
Todos deveriam usar o uniforme de trabalho naquela noite. De uniforme, falou chefia, somos inofensivos aos olhos dos nossos inimigos. O chefia resumia dessa forminha: ninguém vai nem olhá.
O local da reunião, decidido apenas uma hora (não trabalhada) antes, seria em uma grande e profunda garagem vazia. Ainda em atividade, mas desocupada nas horas não trabalhadas.
A garagem subterrânea foi escolhida pelo próprio chefia. Ele sabia que ali não haveria sinal de celular. Nem de vida naquele horário. O chefia temia. Temia tanto que ele até já tinha planejado uma rota de fuga pra uma pessoa.
O chefia usa o mesmo uniforme dos demais. Mas um broche dourado se destaca no seio peito. Volumoso, o chefia ostenta peitinhos que se aproximam dos femininos pelo volume, mas se afastam rapidamente daqueles pelos pelos que dali irradiam.
– Não vai ser fácil. Ninguém disse que ia…
Avisa o chefia.
– O azul…
Um dos presentes, bem próximo do chefia, tenta falar algo. O som sai abafado. O chefia chia.
– Ei! Não vai ser fácil. Mas temos uma grande vantagem. Sabemos tudo da vida deles. O que seria deles sem nós? Eles não durariam um dia!
Alguns aplaudem.
– Queria falar da cor.
– Depois. É a nossa grande vantagem… Conhecemos tudo deles. Melhor do que qualquer parente ou amigo.
– E o azul?
– Por favor! Sabemos dos seus horários, dos seus hábitos… Temos as chaves das suas casas. Sim. Podemos entrar nas suas casas a qualquer momento. Precisamos apenas atacar no momento certo. E de forma conjunta. Todos ao mesmo tempo!
Alguns, sempre os mesmos, aplaudem.
– Odeio o azul.
– Por favor! O ataque vai começar na madrugada do dia 24 para o 25. Mas… Repito! Precisamos agir ao mesmo tempo. Ou o ataque vai falhar. O ataque deve começar no início da Missa do Galo. A maioria vai tá dormindo nessa hora. E eles vão tá de barriga cheia. O que é ótimo. A reação será mais difícil. Evitem comer muito nessa noite. Mesmo se eles oferecerem algo da ceia pra vocês…
Alguém grita.
– Eles nunca oferecem!
Outro grita.
– Filhos da puta!
– Sim. De qualquer maneira…
– Eu queria falar sobre a cor.
– Tá bom. Fala!
– Odeio o azul. Todo mundo sabe disso. A gente precisa de uma cor mais… Mais forte. O azul deixa a gente submisso. É feito pra que a gente aceite ordens. Pra que a gente fique bem obediente. Eu trouxe até anotado… O azul significa tranquilidade, serenidade, paz… Alguém aqui tá interessado em paz?
Alguém grita.
– Tem polícia que usa azul. Eu já vi.
O detrator do azul responde prontamente.
– Mas não esse azul merda. Eles usam azul escuro.
O chefia temia os riscos da democracia. O chefia, por isso, logo ponderaria.
– O que você fala é importante… Mas depois da nossa vitória a gente volta a falar disso.
– Esse azulzinho… Enfraquece. É ruim!
– A gente fala disso depois. Ninguém aqui vai amarelar. A cor é um detalhe.
A maioria parece concordar passivamente: a cor é um detalhe. Alguns aplaudem.
– Bom… O início do ataque deve começar com a Missa do Galo. Entenderam?
Iremos matá-los como porcos. Grita alguém, anonimamente, do fundo.
– A operação inicial vai se chamar “Missão do Galo”.
Alguém comenta perto do chefia: que nome bosta. Chefia ignora a reflexão e distribui um papel com os passos iniciais da operação.
MISSÃO DO GALO
(ATENÇÃO! – DESTRUA DEPOIS DE LER)
1. Com o início da Missa do Galo, envenenar a caixa da água. Daí a importância de armazenar água para as duas primeiras semanas de luta.
São, ao todo, 10 orientações para os primeiros dias da rebelião. O homem preocupado com o azul (e vestido da mesma cor) pergunta:
– Duas semanas de luta?
– No mínimo! Por isso, precisamos armazenar os itens essenciais. Leiam bem quais são esses itens. A ideia é de um ataque inicial muito duro e concentrado. Assim a gente tem alguma vantagem. A gente precisa enfraquecer bastante o inimigo antes que ele possa revidar.
O líder continua: sua e fala.
– Todo mundo precisa aprovar o plano. Quando a gente sair daqui, não tem mais volta.
Todos aprovam o plano que dará início ao levante chacoalhando chaves que não são suas. Esse gesto, aparentemente tolo, é um dos seus códigos secretos.
Em seguida, o chefia grita:
– Porteiros do mundo, uni-vos!
Os berros de alegria que seguem não serão ouvidos na superfície.