Passarinho, por Célio Turino

“Há vidros que separam o mundo, e há asas que não sabem disso”. A ave morreu num fosso onde as asas não conseguem abrir. Mas mãe-passarinha e mães da favela sempre bicarão em luto e amor. Leia estreia da coluna do escritor e historiador

.

De há muito tempo acalento projeto de publicar uma coluna com crônicas, poemas, contos e novelas, que tenho guardados na gaveta, ou na imaginação. Outras histórias que ainda nem sei, mas sei que virão.

Histórias de forças silenciosas, quase invisíveis, dessas que atravessam o mundo que não mora nos palácios, nem nas finanças internacionais, nem na realidade distorcida dos ambientes virtuais. A força que busco mostrar vive nas cozinhas, nas rodas de viola, nos quintais, nos terreiros, nas roças, oficinas e fábricas, nas escolas e universidades, nas quebradas e varandas. Essa força vive nas gentes, ruas, praças e alamedas (aquelas alamedas a que se referiu Salvador Allende em seu último discurso). É a força do povo em sua forma mais bela: a que trabalha, sonha, cria e transforma.

A essa força eu chamo de poesia. Antes da política, há o humano. Antes da vitória, há o sonho. É poesia que acende a vida quando a civilização parece apagar as luzes.

A partir de agora essa coluna será minha forma de fazer política. Contar o mundo, e sobretudo o Brasil, por dentro. Entre a doçura e a luta, a flor e o martelo. Quero falar da beleza que nasce da resistência, da ternura que sustenta as transformações profundas. Cada palavra será semente. Cada crônica, poema, conto ou novela, ato de cuidado e rebeldia.

Poesia, quando se faz povo, vira revolução!

E ela tem que vir já.


Passarinho

Há vidros que separam o mundo, e há asas que não sabem disso.”
(verso anônimo recolhido na mata que avisto de meu quintal)

Com o bico, ela batia no vidro. Bicava e bicava, como quem tenta furar o tempo ou a muralha de silêncio. No início era um som distante, quase um eco, um tambor minúsculo ressoando entre os livros. Depois, a batida foi crescendo, ganhando corpo, como se o próprio coração da mata pedisse passagem. De onde viria? O som parecia brotar da janela de vidro atrás da estante, onde se viam as folhas da amoreira balançando com o vento. De dentro da biblioteca, onde me recolho entre sossegos e palavras, só se ouvia aquela batida ritmada, teimosa, urgente.

Até que…

Silvana avista a passarinha no chão. A passarinha golpeava o vidro com o bico, firme, determinada, como se buscasse arrebentar a parede invisível que separa o dentro e o fora. A ave estava no chão do quintal de nossa casa. O olhar dela, que não se via, mas se sentia, era de quem queria entrar. O que haveria em minha biblioteca que tanto a chamava? O reflexo do céu, talvez. Ou um corpo imóvel do outro lado.

Até que…

Silvana vê o reflexo: um passarinho, estático, refletido no vidro. Ou estaria dentro dele? Parecia morto. Talvez sonhando. Imóvel. Entre o reflexo e a sombra, não sabíamos se era espelho ou passagem. Ilusão ou lamento. A imagem era o resumo de uma transparência cega.

Até que…

Descobrimos o corpo do pássaro pequenino encolhido entre a estante e o vidro. Era real. Como chegara ali? Talvez tivesse entrado por uma fresta, atraído pela luz, pela promessa de liberdade e voado em direção à amoreira. No voo rasante e sem amarras encontrara a parede invisível batendo o corpo com força até cair entre os livros e a parede de vidro. E ficou ali, um dia, dois. Estático em um fosso onde as asas não conseguem se abrir e o saber não consola.

Até que…

A mãe, a pássara maior, veio em socorro. Com o bico, ela batia.
Batida após batida, sem pausa, sem descanso. Era dor transformada em ritmo, amor transformado em fúria. Queria romper o invisível, libertar o filho, restaurar o voo. Batia contra o vidro como quem enfrenta o impossível. Ou a injustiça.

Arrastamos a estante. Antes retirando meus livros de história, sociologia, filosofia, memórias de um mundo que insiste em se repetir. Livros ganhados também, de gente cuja vida não se detém. Livros sobre a natureza, um deles sobre aves, as águas, os ventos e as infâncias, brincadeiras. Livros a falarem da vida, que, naquele instante, se calavam diante da morte. Movemos a estante.

Até que…

Com cuidado. Com respeito. Retiramos o pequeno corpo e o depositamos sob a amoreira, no quintal de nossa casa, onde o vento é mais leve e o chão é mais macio. Ali jaz o passarinho, envolto pelo canto da mãe que ainda o procura. O corpo do passarinho ficará em nosso quintal até que sua mãe complete o luto.

Isso aconteceu um dia após a chacina que ensurdeceu o país. Enquanto lá, corpos jaziam sem rito ou consolo, aqui, uma mãe alada batia contra o vidro. E nós, vivendo no interior, atônitos, tentávamos entender o reflexo invisível do amor.

Escrevo essa crônica sob o impacto do fato. Da mãe-passarinha e das mães da favela. Inspirado por Silvana, que não disse nada além do que fez. Ela foi atitude. De quem observa e de quem age. A partir dos fatos procurei dialogar entre o simbólico e o real, O vidro, fronteira entre mundos, adquiriu densidade moral e metafísica como transparência opaca que separa o saber, da vida, a palavra, da ação, o humano, do seu reflexo.

O gesto instintivo da mãe-pássara a bicar o vidro espelha o luto coletivo diante da barbárie quando a dor busca fissurar o que o poder e o saber cegam e blindam. Escrever essa crônica foi meu modo de fusão com a ternura insurgente, que não se insurge, todavia. Fábula trágica contemporânea onde o pequeno se torna universal e o íntimo se abre em denúncia silenciosa. Como a força-ternura da mãe-pássara, que mesmo ferida, continua a bicar o vidro.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *