Palestina: Um mergulho kamikaze no horror
Em No Other Land, um cineasta palestino e um israelense expõem a limpeza étnica da Cisjordânia. Vivem a dor das famílias: “sem chão, há futuro?”. Interpelam soldados: “podia ser sua avó, mãe, filho”. E desvelam o terror por “mandamento divino” de Israel
Publicado 11/12/2025 às 19:43

Título original: Uma câmera no caminho da máquina de limpeza étnico-territorial: No Other Land1 (2024)
“Depois de Auschwitz não ocorreu nada que haja revogado ou refutado Auschwitz.”
Inre Kertész. Discurso de recebimento do prêmio Nobel de Literatura de 2002
A estigmatização, a despossessão e o posterior intento de extermínio dos inimigos de ocasião continuam sendo regra nos processos contemporâneos de expansão econômica e militar ao redor do mundo. Nos termos de Kertézs, o escritor-testemunha, o método Auschwitz continua sendo o expediente basal de processos de obtenção de supremacia, que depende da supressão integral de potenciais alteridades e contrapesos.
Foi durante e após a experiência narrada em “Sem Destino”2 que o escritor judeu-húngaro chegou a esta conclusão. Nesta obra, o autor apresenta paralelos atordoantes com o cinema de testemunho de No Other Land. O cenário de sua deportação da Hungria para Auschwitz, em 1944, é retraçado pelo olhar do adolescente que era, procurando compartilhar deliberadamente com o leitor níveis similares de incompreensibilidade do que se passava, uma recepção interditada pelo ineditismo daquela barbárie normalizada. Punha-se em questão a possibilidade de tradução para a linguagem de uma realidade que se impunha sobre quaisquer parâmetros anteriores. Arrancado de qualquer referência, à deriva da espécie, registrava gradações dos espaços transitáveis pelos “de fora” como ele. O campo de concentração (Konzentrationslager) podia servir de triagem ou ser ele próprio um campo de extermínio (Vernichtungslager). Como suporte ou antesala destes campos, havia o campo de trabalho (Arbeitslager). O desterro vivido e narrado por Kertész era também de si mesmo, do seu próprio corpo.
Os palestinos desterrados conformam uma lousa de corpos em que se inscrevem punitivamente os novos ordenamentos geopolíticos definidos por Israel e pelas potências do Ocidente. São deslocados para cidades-apêndice cuja única função é servir de estoque de mão-de-obra precarizada para a arcaica e ultramoderna economia israelense, campos de trabalho com movimentação regulada pelas Forças de Defesa de Israel. Daí é um pulo para zonas de extermínio, como ocorre em Gaza, onde cada palestino vira alvo sob o pretexto de formar “escudo humano para o terrorismo”. No caso de Gaza, a limpeza tem sido promovida na forma de uma “terraplanagem a quente” com bombardeios maciços; enquanto na Cisjordânia o método é a expulsão continuada. É o que No Other Land procura registrar e expor. Traduzido ao árabe é Arḍun ‘Ukhra, terra estrangeira, nenhuma terra mais, Sem Chão, como foi traduzido para o português.
Um documentário tão capaz de registrar o inenarrável somente se tornou possível por conta do encontro entremuros entre o palestino Basel e o israelense Yuval, reunindo suas respectivas equipes e redes de apoio. Um e outro davam acesso a espaços fílmicos que somente os dois juntos poderiam proporcionar. Enquanto Yuval, de câmera ligada, fazia inquirições em hebraico aos soldados e comandantes, Basel seguia correndo e filmando no ato mesmo das operações, o que franqueava o registro síncrono das atrocidades.
Basel e Yuval
Basel Adra faz parte da segunda geração da resistência das comunidades de Masafer Yatta. Especificamente no campo jurídico, foram 22 anos de disputas até o proferimento da sentença/solução final pela Suprema Corte. As comunidades entenderam como o jovem Basel levava a luta do pai para as redes sociais e mídias alternativas e, por isso, o acionavam no primeiro momento em que as tropas ameaçavam retirar à força as famílias de suas casas. Basel chegava gritando “estou filmando você, estou te filmando!”. E isso invariavelmente fazia com que o soldado ou abreviasse o que já iniciara ou partisse na direção daquela ocular que colocava nas redes um testemunho da barbárie em ato. Como se estivéssemos vendo por improváveis câmeras carregadas pelos soldados israelenses em ação. Este é Basel, que desde garoto aprendeu, em meio a uma implacável guerra híbrida, qual o poder das imagens e das reputações decorrentes. O ex-premiê britânico, ao visitar uma escola em uma das comunidades de Masafer Yatta em 2009, tornou sem efeito as ordens de demolição dos locais por ele visitados naquele ano. Essa teria sido para Basel uma derradeira “lição sobre o poder”, como ele mesmo afirma. Testemunhar em vídeo passou a ser para ele um expediente não desprezível. Narrar e filmar é resistir, ainda que em modo kamikaze, cada filmagem pode ser a última filmagem, um último recurso.
Basel Adra protagoniza o documentário com seu olhar baqueado, precocemente desesperançado. Na cena emblemática do filme, Basel surge em primeiro plano, deitado na terra ou levantado dela, enquanto ao fundo passam as colunas de blindados, tratores e caminhões do aparato destrutivo israelense. É dele a frase inaugural do documentário: “comecei a filmar quando a gente começou a acabar”. Começou a filmar para que mais essa expulsão de comunidades palestinas não seja interpretada como desistência voluntária.
Do outro lado do muro, estava Yuval Abraham, um jornalista investigativo israelense buscando um caminho para fazer cessar a política de segregação. Furar a bolha interna de pavor e mostrar a humanidade imprevista das vítimas, a mesma abordagem e iconografia que serviu de base para a denúncia do holocausto3. Fazer ver, ouvir, sentir algo diferente do que emanasse da doutrina de guerra punitiva-preventiva em voga em Israel. Insistir que a paz vem pela paz, pode parecer uma platitude ou candura fora de lugar por parte de Yuval, mas à medida que ele passou a interpor seu corpo e sua voz entre a força bélica e os palestinos marcados para desaparecerem em Masafer Yatta, expressou uma radicalidade que vai além de filiações e vínculos formais.
Yuval lançava frases reiterativas, de forma rabínica, procurando colocar seu interlocutor no lugar das pessoas que destituíam: “Por que está expulsando essas pessoas de suas terras? Veja, é uma idosa, é como sua mãe, por que destrói a casa dela?” Yuval ancora a filmagem para se dirigir diretamente à opinião pública de Israel, cega às barbáries praticadas em nome do combate à barbárie, como se clamasse: vejam o que as Forças de Defesa de Israel estão fazendo, contra quem e por quê.
Em uma cena exemplar deste intento, um soldado ameaça atirar caso os comunitários não saíssem da frente das edificações a serem demolidas. Yuval, junto deles, replicou: espere um momento, repare que estou falando hebraico com você. O soldado então hesita, agora ele é que fica deslocado, mas logo recobra seu automatismo e devolve: “então você não devia estar aqui”.
Razão de destruir
“Desconfie de teu próximo e o aniquile antes que ele o faça” tem sido o Leitmotiv do Estado israelense, notadamente nos últimos 15 anos, sob o domínio de uma coalizão entre integristas religiosos e grupos econômicos pragmáticos. Compõem-na ultraortodoxos adoradores de um Deus etnocêntrico e vingativo e grandes grupos econômicos do complexo industrial militar e de vigilância. Seguindo a lógica da “guerra existencial” ou do “suprimo, logo existo”, a limpeza étnica tornou-se política de Estado e cláusula pétrea do sistema jurídico israelense. Os despejos e remoções forçadas nos territórios ocupados foram elevados à categoria de instrumentos legais de autoproteção. O expansionismo israelense tornou-se um “caso de sucesso” para efeito de execução-demonstração sobre os meios de se obter “paz pela força”; o que não vale pouco em meio a um cenário em que latejam insurreições populares em função de mais uma volta no parafuso na organização da desorganização do capitalismo global.
O Estado de Israel revela ao mundo inéditas práticas e instituições pós-orwellianas: remoções forçadas legais, privação alimentar como método de guerra, formas admissíveis de genocídio e paz pela força. A encarnação do espírito de época vocalizado pelas forças de extrema direita: o sociocanibalismo como expediente normal e indispensável para a retomada e expansão de negócios oligopolísticos. Não casualmente, o padrão de guerra e segurança israelense se tornou modelar para frações dominantes desterritorializadoras em todos os países ditos civilizados.
Guerra por mandamento divino
O documentário No Other Land é um registro fidedigno de práticas de “purificação” socioterritorial. O enredo e o sequenciamento das cenas derivam de uma sentença judicial acerca do destino de Masafer Yatta4, proferida pela Suprema Corte de Israel em 4 de maio de 2022, que avalizou a militarização dos territórios ocupados após a “Guerra dos seis dias” em 1967 e seu posterior zoneamento em franjas rurais ou urbanas da Cisjordânia (área C), como “zonas de tiro” (firing zones). Coincidentemente, a área C é considerada preferencial pelo governo de Israel para a instalação de novos assentamentos judaicos. Abre-se assim, legalmente, o caminho para o projeto anexionista que leva à miragem do “Grande Israel”. A premissa jurídica da sentença é que os “Comandantes Militares têm competência para declarar zonas proscritas e proibir a entrada nelas sem autorização”, dado que essas são zonas que seriam “essenciais para necessidades militares e de segurança.”
O juiz David Mintz, que elaborou esta decisão, é conhecido em Israel por seu enraizamento nas tradições do judaísmo (Halachá) na contramão do direito internacional. Em um caso mais recente, em voto igualmente translúcido5, Mintz determinou que o governo de Israel não era obrigado a proporcionar ou permitir que chegasse ajuda humanitária à população sobrevivente de Gaza após os ataques com intentos genocidas das Forças de Defesa de Israel. Em seu voto, Mintz declarou que o Estado de Israel não era obrigado a “permitir o fornecimento de ajuda extensa e ilimitada” na Faixa de Gaza, pois estava no meio de uma “Milchemet Mitzvah”, no sentido pleno da palavra, em hebraico: uma guerra por mandamento divino. Essa categoria de guerra, na tradição judaica, dispensa autorização do Sinédrio ou de qualquer Conselho secular. Sendo este o fundamento considerado válido para decisões cruciais da Suprema Corte Israelense6, cabe indagar a quem serve de fato a carapuça de uma teocracia impulsionadora de guerras santas.
Em cada demolição exibida em No Other Land, os soldados eram inquiridos pelos comunitários sobre como se sentiam destruindo suas casas, escolas, currais e olivais. A cobrança moral era ainda mais forte quando feita por mulheres avós, tal qual matriarcas (bobes7) judias: “Por que destroem nossas vidas?”, perguntavam. Aos soldados só restava retrucar: “estamos cumprindo a lei, se discordam, discutam isso no Tribunal.” Desta forma, se imunizavam, despersonalizando-se e despersonalizando as famílias que iam sendo arrancadas do chão. A sentença equipara-os a entulhos ou obstáculos e serão tratados assim, não há nada o que sentir sobre isso. Desta forma, sobre as ruínas destas comunidades, expandem-se novos muros que abrigam novos assentamentos judaicos que são ao mesmo tempo zonas de tiro e campos de treinamento paramilitar.
Sem chão, sem futuro
As avós (sitt) palestinas representam uma instância recôndita de apelo superior, além de personificarem a prototípica hospitalidade deste povo, sua capacidade de acolhida para quem chegue em paz. Uma dessas avós, acompanhada de sua neta, repreende o soldado com a ordem de demolição na mão, dizendo: “Você não tem vergonha de fazer isso?” Ela busca o filho por debaixo da farda, que também tem mãe, avó, irmãos. Como aos operadores da máquina de limpeza étnica não cabe manter liame intercultural, lhes sobra a evasão: “É zona de treinamento, a senhora não pode morar aqui.” Enquanto isso, as máquinas seguem derrubando teto e paredes da casa. Assustada, a pequena Doha abraça as pernas da avó, ela a ampara dizendo: “não tenha medo, logo eles irão embora”. Mais tarde, nesta mesma noite, abrigadas em uma caverna, Doha abre e fecha os olhos e diz que está girando e girando, pois assim ninguém a pegaria. A avó a abraça dizendo: “Dorme, que amanhã vai ser outro dia.” Se o tempo retilíneo leva à desaparição, é girando que não vão nos pegar, afirma Basel, é reconstruindo cada noite o que destroem de dia que se combate a ocupação da Cisjordânia.
A reconstrução das casas, escolas e de cada um faz-se clandestina, nas noites insones, para que amanhã seja mais um dia para impedir novas destruições e remoções. As investidas dos soldados passam a focar a apreensão de ferramentas e materiais de construção. Neste momento, Yuval questiona por que estão recolhendo instrumentos de trabalho dos comunitários, “seria em nome da segurança dos israelenses?” Um fuzil é levantado e empurrado contra seu peito, a cena se nubla e é acoplada a uma cena dramática de 2021. Harum Abu Haram e demais membros da aldeia fazem cabo de guerra para resgatar o único gerador da aldeia das mãos dos soldados. Escuta-se um tiro seco, a câmera se mexe para os lados e para baixo, Harum é alvejado. Familiares se desesperam, foi tiro para matar, dizem; os soldados se afastam e dão mais um tiro de advertência. Fecha-se a janela do tempo que se afunila. Harum ficou paraplégico para a comunidade manter seu gerador temporariamente.
O resultado é ficar estrangeiro em sua própria terra, ficar doravante sem chão. No Other Land expressa o sentimento de ausência de futuro dos desterrados. As crianças de Masafer Yatta marcam o significado desta expropriação de fundo. Diante de mais uma brutal demolição, uma menina se apavora, o semblante crispado, respiração arfante, ela parece desmoronar junto com sua casa. O estado de choque inocente diante de tanta truculência deveria ser a reação de todos, é o convite embutido na cena.
Varredura tanto de corpos como de memórias: nem lembre que essa terra foi sua. Rotinizar e multiplicar as expulsões é um método em que o momento seguinte apaga o anterior; instante em que a quantidade vira qualidade. Algo homólogo ao cegamento pela via do abjeto, em que percepção em demasia converte-se na impossibilidade mesma de percepção, como observou Seligmann8 em seus estudos acerca da literatura sobre o Shoah9, cuja estrutura narrativa seria sempre incompleta, constituída de retalhos.
Yuval entende este esvaziamento premeditado ao notar a ausência de notícias sobre as operações: “ao mesmo tempo em que tudo isso acontece, é como se não acontecesse nada”. Por isso, filmar é preciso. Cinema de testemunho e Literatura de testemunho desenrolam-se em dupla temporalidade: o intento de reinscrição do visto ao já conhecido, o rondar a inevitável fenda entre o trauma e a construção da cena traumática, nos termos de Benjamin10.
A questão posta por Yuval é desmontar a fórmula da “guerra existencial” que se alimenta do pânico de revanches cada vez mais iminentes e terríveis. Não se trata de uma mera reação defensiva, mas de uma estratégia que aposta e cria condições para que aqueles de “fora” tenham a expressão necessária do mal absoluto. Se nos negam absolutamente, pregam, logo a negação absoluta deste inimigo terminal é tida como legítima, capaz de agregar interesses de cima para baixo. Fundada na demonização e na segregação, eis a essência da “única democracia do Oriente Médio”.
No Other Land serve de espelho invertido para a sociedade israelense, os novos judeus são os palestinos. Olhar para o outro lado do muro — e de lá filmar — é uma forma de desmontar a farsa dos “povos perigosos” que cercam o país, desencadeando um processo consciente de des-sionização de Israel. O que implica, por sua vez, no reconhecimento das atrocidades cometidas pelas suas forças armadas e na assunção das reparações devidas ao povo palestino e aos países vizinhos para que possa haver chances de convivência.
Notas:
1 Melhor Documentário do Festival Internacional de Cinema de Berlim de 2024 e ganhador do Oscar melhor Documentário do mesmo ano.
2 KERTÉSZ, Imre. Sin Destino. Barcelona: Ed. Acantilado: 2001.
3 O termo “holocausto” foi cunhado para representar o genocídio judeu pelos regimes nazifascistas na Alemanha e Itália e demais países colaboracionistas na Europa, que viam no avanço do 3º Reich uma oportunidade de eliminar seus “inimigos internos”, comunistas, judeus, artistas, intelectuais. Prevaleceu, contudo, a versão de um holocausto único, de feição exclusivamente religiosa, como imolação seletiva, dando-lhe um caráter teleológico. O sacrifício dos judeus teria assim uma finalidade deliberada.
4 Masafer Yatta é um conjunto de dezenas de comunidades agropastoris palestinas, localizada ao sul da cidade de Hebrón na Cisjordânia.
5 Íntegra da decisão HCJ 2280/24 Gisha and others v. Government of Israel and others, disponível em: https://gisha.org/UserFiles/File/LegalDocuments/HCJPetition2024/Aid_petition_ruling_Eng_270325.pdf
6 Mais informações sobre as seguidas autorizações da Suprema Corte para que o Estado Israelense continue praticando crimes de guerra em: https://www.btselem.org/supreme_court_of_occupation/20220529_supreme_court_rules_israel_above_the_law
7 As avós (bobes) judias são representadas na cultura judaica como guardiãs da memória coletiva.
8 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Ed. 34, 2005.
9 A variação de “Holocausto” para o termo “Shoah” remete a um intento de aniquilamento, uma perseguição definida por um pretenso mérito inato das vítimas.
10 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
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