Nova face do teatro de rua em São Paulo

Exibida hoje, numa estação de trem, “Azar do Valdemar” ajuda a descobrir os grupos teatrais que se fixam na periferia para encenar e debater de Brecht à literatura brasileira

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Exibida hoje, numa estação de trem da Zona Leste, “Azar do Valdemar” ajuda a descobrir os grupos teatrais que se fixam na periferia para encenar e debater de Brecht à literatura brasileira

Por Juan Velásquez

Azar do Valdemar, da Cia. dos Inventivos

Domingo, 22 de maio, às 19h

Na X Mostra de Teatro de São Miguel

Estação Jardim Helena-Vila Mara da CPTM (linha 12) – São Paulo (veja mapa)

A programação completa da X Mostra está aqui

Conheça também a Ocupação Cultural Casarão, um núcleo de Teatro e Cultura na Zona Leste

Senhoras e senhores! Sonhadores… A vida é sonho!

Em cima de uma perua iluminada, sob um som percussivo cheio de um swing jazzístico, três narradores e um multi instrumentista começam a contar uma história. “Que não é da morte de Maria Consorte. A sorte ficou lá atrás, efêmera que é. Mas é a história de azar” de um povo inteiro. Azar do Valdemar. A peça de rua da Cia dos Inventivos traz ao público passante um breve capítulo do livro Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Um capítulo, assim como todo o livro, repleto de ironia, com personagens como o esquerdista Stálin José, ou de discussões sobre o que é melhor ouvir no churrasco com roda de samba: Ray Connif ou Chopin. Enfim.

Também um capítulo em que o personagem protagoniza o azar: Teodomiro, garoto que embora muito pobre fora um dos melhores alunos de um breve período no Conservatório da Bahia. Sim, era músico, mas nunca mais sua família o ouviu tocar. Devido ao azar, aos azares da vida. Mas era músico. Pois “todo brasileiro é músico! É preciso cantar, pois o canto é o que há entre o homem e o passarinho”. Teodomiro trabalha. Com o pouco que lhe dão, planta e vende, abre uma quitanda. Mas um dia, lhe tomam o terreno. Ele tem de ir, leva a família. N’outro lugar provisório ele leva o pouco patrimônio, tem poucos dias para sair. Chega a polícia, faz a reintegração, que na verdade é roubar-lhe, surrá-lo e prendê-lo. Ah! sim, também estuprá-lo e soltá-lo na rua de calção.

Mas Teodomiro, ou Valdemar, ainda quer cantar. Ele conhece outro mundo, a história de outras pessoas, como João Cândido, sim ele mesmo. O almirante negro que dá nome ao samba. João Cândido: herói que surpreendeu todos ao liderar, de dentro de complexos navios de guerra, a revolta da chibata no litoral baiano. Os oficiais graduados, na maior parte estrangeiros, da Marinha brasileira riram dizendo que os rebelados não saberiam sequer mexer nos navios. Mas esses os encurralaram. Talentosíssimos, mas também enganados, presos, violentados, assassinados, azarados.

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“Mas os sonhos não poupam ninguém, mulher! pode esperar! Que eu vou voltar”. Sai Valdemar pela rua escura para tocar num bar. Para conseguir dinheiro para pagar a conta do gás. Valdemar nunca volta. E não há nenhuma dúvida sobre seu paradeiro: ele foi assassinado. Foi dilacerado.

E aí acontece o seguinte: entram em campo a poética, a direção, a música: o Teatro. Valdemar (Marcos Di Ferreira) é meio Chaplin, é Arrelia e Piolin, é Mateus (palhaço das brincadeiras de cavalo marinho), é Prometeu: meio você, meio eu.

“Esteja de verdade! Não se esconda atrás do teatro. Ai se fecha uma equação do artista de rua”. Essa fala não é do narrador da peça, mas do diretor e mestre Edgar Castro. Parece simples e fácil entender essa equação. Acredite, não é. Castro foi mestre da primeiras gerações de artistas da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). É de Belém do Pará e é também artista de confiança da diretora paulista Cibele Forjaz, na Cia Livre de Teatro.

Para fechar essa matemática artística, pode-se dizer que a cena teatral paulista nunca esteve tão repleta de legitimidade. Nunca se deixou tanto de falar no palco de um outro, que foi oprimido, para que esse outro mesmo fale. “Não é morte da representação, mas crescimento da legitimidade”. Essa última é do jovem dramaturgo dos Inventivos, o ator, diretor, estudante de sociologia e homem do Hip Hop, Jé Oliveira. Quando ele olha à sua volta vê uma geração de novos grupos. Eles trazem a mudança na cena paulista: a Cia do Tijolo, Coletivo Negro, Os Crespos, a Sansacroma cia de dança, o Treme Terra, também da dança, As Capulanas, o grupo Clariô, entre outros.

A importância do teatro, da poesia e das outras artes em relação a essa pequenas bíblias de nossa época, de obras como Viva o Povo Brasileiro; O Povo Brasileiro; Raízes do Brasil; as obras de Paulo Freire; as poesias do mais que conhecido e ao mesmo tempo desconhecido Carlos Drummond de Andrade; ou Mario de Andrade; ou Manuel Bandeira, infinitos outros é a democratização desta informação. “Se a obra teatral é potente e real, o encontro depois com a literatura será iluminado, não passará”, completa o diretor Edgar Castro.

Para a trupe, os escritores, poetas ou músicos que têm suas obras trazidas para este outro fazer artístico, que é o teatro, não são entes aritméticos. Eles se afastam de uma adaptação tentando buscar fidelidade à obra. No fazer teatral e na criação dramatúrgica, João Ubaldo Ribeiro, assim como Bertold Brecht “são amigos que caminham conosco, se divertem e nos sopram coisas, muitas coisas”, completa o dramaturgo Jé Oliveira.

Azar do Valdemar tem uma bela trilha executada toda por Adílson Fernandes (Camarão), que é ator e criador dentro da peça. A musicalidade foi regida pela batuta de Rodrigo Mercadante, diretor musical e criador da trilha sonora original; ao lado de Rani Guerra, que fez a preparação musical. A fonte para parte das brincadeiras musicais e poesias da peça é também um dos personagens mais marcantes do livro de João Ubaldo: o Nego Leléu, que tem um paralelo no trabalho musical de Itamar Assumpção, o CD Beleléu, Leleu, eu, Isca de Polícia. As músicas e poesias de Itamar foram uma provocação do diretor Edgar Castro que deram o ponto da peça.

Já quem encontra os pedaços de Valdemar, braço, perna, corpo, no decorrer da peça, e também segura seu coração dilacerado no peito é sua esposa (Aysha Nascimento), que em seu olhar se desespera cada vez que os filhos gritam “Mãe! O pai não vai voltar?”. O narrador (Flávio Rodrigues) é um narrador poeta. Essencial no teatro de rua. A imagem criada pela trupe na rua é um espetáculo à parte: a iluminação e cenário de Wagner Antônio. A van amarela se abre em luz, como tentáculos metálicos e iluminados de um peixe, sobre o concreto da cidade.

A base de trabalho do grupo é a praça Miguel Dellerba, que recebe mais de 200 passantes apressados, apressadíssimos, a cada um minuto e pouco, saídos de ônibus ou o trem dos terminais da Lapa. Logo, a peça é compartimentada, de modo a permitir que o passante possa ver e entender cada momento do texto como um recado inteiro. Segurar o passante é um dos desafios deste autêntico teatro de feira, que remete ao teatro medieval, feito nas feiras e nas ruas, herdeiro da tradição teatral durante esse período do mundo.

A imagem da trupe em cena é desenhada também pelo brincante, figurinista e aderecista Cleydson Catarina. Um figurino que traz consigo fortemente a alegoria do Folguedo e das festas populares e carnavalescas. Assim como a maquiagem peculiar e marcante de Guto Togniazzolo.

Azar do Valdemar fecha uma trilogia de espetáculos de rua feitos com a livre inspiração do livro de João Ubaldo Ribeiro. A primeira peça é o Canteiro, e a segunda é Bandido é quem anda em Bando. A Cia dos Inventivos, ao lado de outras cias de teatro de rua da cidade começa quebrar uma barreira de exclusão sobre a visão sobre a arte feita na rua. A peça recebeu elogios sobre a sua criação, processo de formação destes atores, assumidamente de rua, e a qualidade da interpretação.

A Cia dos Inventivos têm rodado pelo Brasil com sua van iluminada. E com a história da formação, e do azar de nosso país no bolso.

Espera!! eu vou com vocês

Entre os momentos de forte interação com o público, os azarados se lembram de quando um homem, em situação de rua, vê a peça e diz. “Espera! eu vou com vocês”. Da forma como está colocada aqui, essa é a fala de Mãe Coragem e seus filhos, peça do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Ele é um dos representantes do modernismo no teatro do século XX, ao lado do intelectual francês Antonin Artaud.

Mãe coragem, ao perder o marido na guerra, monta um lojinha móvel que vende de tudo: bebidas, comida, roupas, souvenirs, e vende para os soldados do exército. Tenta proteger seus dois filhos para não irem à guerra, para que fiquem a seu lado. E tenta proteger também a filha, que é muda.

Mas Mãe Coragem perde tudo novamente para o exército e para a guerra. Todos que estão à sua volta. E quando o exército se prepara para partir, só e ainda chorando, mãe coragem se levanta. E ganhando novamente a força de uma vida inteira ela acena aos soldados: “Espera! Eu vou com vocês”. Seguir lutando, seguir cozinhando, costurando, vendendo, seguir fazendo, seguir marchando.

“Mas que as agruras sejam menores” filosofa o narrador de nossa peça de hoje aqui em São Paulo. Que não é apenas um banho de realidade. É uma brincadeira estética com a sociedade que tem seu tecido social rasgado. É um diálogo direto da arte com a cidade, com a metrópole. Mas não vá à rua só para vê-los. Não deixe de ver o céu estrelado que faz cada vez que se tem o privilégio de ver artistas na rua. Vale a pena.

 

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