No palco, Coletivo Negro e seus artistas da fome

Embalada pelo som dos Racionais, encenada por atores que conhecem a potência política da estética, “Farinha com Açúcar” examina construção da masculinidade negra na periferia

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Coletivo Negro: há oito anos, pesquisa sobre o homem negro e o homem comum

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de São Paulo

Por Juan Velásquez

Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens

Temporada com três apresentações: 16/8 (terça) a 18/8 (quinta), às 20h

Em São Paulo, no Itaú Cultural:  Avenida Paulista, 149 – Metrô Brigadeiro – (11) 2168-1777

Grátis. Ingressos distribuídos com uma hora de antecedência

Na fila de espera pra entrar na peça “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, entre fila e fila de espera, as pessoas relembram quando ouviram a primeira vez a música Um homem na Estrada, ou que jogavam futebol de botão ouvindo Fim de Semana no Parque, ou algo que “só eles” sabem sobre a admiração dos Racionais pela obra de Tim Maia, ou que um deles vai pedir pro Mano Brown cantar tal música. E lembra que não é um Show dos Racionais, é uma peça de teatro sobre. E eles riem. Mas memória também é história, e com certeza é cultura (os modos, o jeito de um povo). Cheios de encantamento pela memória que traz a obra dos Racionais MC’s a fila anda. E muitos ficam pra fora. Infelizmente.

“Não estamos falando do Mano Brown o herói, mas do homem comum, do que eles fizeram a partir das músicas e deste universo. Deste cara que constrói o cotidiano pra se manter vivo. Essa é a nossa fome: estar vivo”. Diz o jovem diretor da peça e ator, Jé Oliveira.

Parece uma multidão de jovens, mas a maioria passou dos trinta. Parece um público só de negros, tamanhos os rastas na fila e cabelos imensos das mulheres, mas não é. Tem gente de todo tipo. “Seja bem vindo! Seja bem vindo.!” A frase é cantada e falada por vozes intensas e melodiosas que chegam para acalentar os instrumentos. É a música Fim de Semana no Parque, m verdadeiro Raio X do Brasil. Entre uma velha, que com legumes na cabeça e vassoura, quase um Orixá que zela pelo silêncio da morte, entre outros personagens que vivem na rua, meninos que correm, homens que morrem, tem início a peça.

A interpretação é rápida, tem ligeireza. A música discotecada por KLjay (dos Racionais) ou pelo DJ Wojtila, além dos instrumentos em cena, levam um texto que nasce dos depoimentos de doze artistas negros de periferia em São Paulo. (o poeta e cineasta Akins Kintê, o professor e poeta Allan da Rosa, o compositor e cineasta Aloysio Letra, o percussionista Fernando Alabê, o músico, diretor e ativista da periferia João Nascimento, o racional MC KL Jay, o músico Melvin Santhana, o pesquisador Renato Ihu, o intelectual Salloma Salomão, Seu Luís Livreiro, o modelo Will Oliveir e o poeta Zinho Trindade).

160815-FarinhaA senhora negra leva consigo, caminhando, o silêncio de depois. “Tô pesado demais pra voar. E o meu sol não quer mais girar”. E a velha fala de uma receita, de ervas simples que substituem, com sabedoria e sabor, a falta das comidas caras. Ao mesmo tempo em que coloca flores num túmulo. A peça é como um duelo musical, um repente entre encenação e palavra. É quase uma brincadeira de roda à la Hip Hop.

Entre os arranjos e paisagens sonoras de Cássio Martins, Djy Wojtila, Fernando Alabê, Jé Oliveira, Mauá Martins e Melvin Santhana, entre o cenário de Júlio Dojcsar, entre as luzes de Camilo Bonfanti, o Figurino Éder Lopes (importante lembrar que parte deles vindos da periferia de Mauá, mesma origem do diretor: “atitude estética e também política”), a cada cena a discotecagem aparece e o público se envolve, canta. E as palavras, afiadas, provocam aplausos em cena aberta várias vezes. E surge o segundo ato: Sendo. Depois da morte, viver. A peça dá um novo salto.

O narrador fala de muitas brincadeiras de criança da periferia, vai passando por elas até chegar na dança de na música dos anos 70 e 80 e até hoje no Brasil. E ao som de Jackson Five discorre a música que vem do swing negro brasileiro. A impressão é de que seis no palco são trinta. Os músicos solam, a discotecagem leva sozinha a peça por toda uma cena. E dialoga com o público. E é ai que acontece: uma fronteira se vai.

Quando se vai a um espetáculo que fala da dor de negros pobres, de morte, e você consegue chorar e rir, e sente um passado coletivo, cheio de imagens e ritmo – não apenas culpa ou ódio – e a peça parece ter passado em vinte, trinta minutos (O escritor italiano Ítalo Calvino já explicou, em Seis Propostas para o próximo milênio: a arte deste século será “rápida”). Quando isso acontece em 2016 na cidade de São Paulo, é porque a fronteira entre militância e estética foi quebrada. E o artista, sábio, escolheu chegar à segunda dessas trincheiras.

Esses artistas da fome, assim como o de Kafka, atravessaram uma fronteira. Para a história da nossa arte ficará quem escreveu pelas palavras da poética, quem se deslocou dentro da estética. A militância tem força, mas só a arte comunica aqui nesse espaço.

E não existe fantasia aqui. “Tudo é de verdade, importante que eu diga isso. Eu sou de verdade e vocês são de verdade. Cheiro, barro, suor!”, segue o narrador entre músicas da discografia dos Racionais. Seus personagens seguem, e em vice e versa, tomam o banho de água branca que toma o personagem Macunaíma, de Mário de Andrade, para ficar branco. Um garoto negro tenta, pelo telefone, emprego e uma namorada. Quando ele se descreve acontece uma saga.

Ele vai levando recusas, e vai aprendendo a ser aceito. Vai se tornando moreno, quase branco, vai se banhando no jorro de água, de forma poética. Quase num repente musical. E de novo o menino é rejeitado, mesmo meio branco, e agora ganha um livro de Malcom X. “Eu li como quem come com fome, eu adormeci com aquilo, eu madruguei com aquilo, eu amanheci com aquilo. As páginas fizeram morada em mim, me fizeram o corpo reluzente”.

Isso faz lembrar o diretor carioca Amir Haddad, um dos personagens históricos do nosso teatro que, em conversa de boteco, conta que “tem vezes que o espetáculo é tão lindo, tão forte, tantas coisas acontecem, que é como se uma nave espacial tivesse pousado lá. E depois, quando acaba, lá na rua sobram umas roupas, uns papéis. E eu me pergunto: o que aconteceu aqui?”. Amir Haddad faz até hoje uma dramaturgia e encenação sobre uma carnavalidade dentro da memória.

Quando vi Farinha com Açúcar e os seis homens dançando, juntos, ao som de Jackson Five, de Rildo, Cassiano, me lembrei de Amir Haddad. Foi como estar dentro do filme Rififi no Harlem do cineasta negro Ossie Davis. Ou em Sweetback’s Baadasssss Song de Melvin Van Peebles. Ou sendo levado pelos cortejos poderosos dos filmes de Glauber Rocha, assim como os cortejos de Amir Haddad nas ruas do Rio.

O Coletivo Negro

O grupo de Jé Oliveira, o Coletivo Negro, começa a entrar nesse bloco alegórico. É um grupo só de negros vindos de duas grandes escolas de teatro da metrópole (A Escola Livre de Teatro de Santo André e a Escola de Arte Dramática, ainda sediada na USP). Há oito anos o grupo faz uma pesquisa sobre o homem negro e o homem comum. Este ano o coletivo fala especificamente sobre a construção da masculinidade negra periférica. Assim como a feminilidade negra periférica. O espetáculo “Ida”, feito pela atriz e diretora Aysha Nascimento, é a outro lado deste diálogo. Em Farinha com Açúcar há apenas homens em cena. Em Ida há somente mulheres. E há ainda uma terceira peça, feita pelo diretor e ator Raphael Garcia: “Revolver”, que fala, entre mitos africanos, da tolerância humana.

O diretor comemora que, em março deste ano, no guia de programação do Sesc, entre as cerca de vinte unidades da instituição, a capa de cinco ou seis foram dadas a artistas negros ou indígenas. “Não me lembro nunca de ter visto isso. As instituições estão correndo para atender a uma demanda social”. O diretor acaba de ser convidado a orientar o núcleo de Teatro e Racialidade da Escola Livre de Teatro (ELT). Essa última mais uma vez à frente na pesquisa do teatro e a cidade.

Enfim, sob as bênçãos de Amir Haddad, de Augusto Boal e as formas de fazer falar o oprimido, de Ilo Krugli e os cortejos com pontos de macumba do Teatro Ventoforte, é possível dizer: vá ver Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens. Uma das mais bonitas estreias de 2016 em São Paulo.

 

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