Literatura dos Arrabaldes: Mulheres de Ururaí
A Caminhada, novo livro de Andrio Candido, mostra mulheres periféricas que sofrem, mas resistem. Enfrentam o patriarcado. São guerreiras. Mas, no último conto, uma delas vai além de aguentar pancadas da vida ao celebrar a ancestralidade indígena e negra
Publicado 03/06/2025 às 16:11


Andrio Candido acaba de lançar um novo livro. O rebento se chama A Caminhada, seu segundo livro solo e o primeiro de prosa; o primogênito, Dente de Leão, de 2017, é de poesia. Assim como o anterior, o livro foi publicado de forma independente. Com mais de 20 anos de atuação no meio cultural como poeta, ator, produtor, educador e roteirista, Andrio nos leva a crer que o título do livro tenha relação com sua trajetória de vida. E tem mesmo, mas, suas narrativas periféricas tem um arcabouço ficcional de tamanha elaboração que faz de A Caminhada muito mais do que um testemunho de vida.
Tal opção o difere do cantor e poeta Edvaldo Santana, que no seu livro Sou da quebrada mas sou das antigas- São Miguel de Ururaí (Lavra Editora, 2024) faz uma autobiografia sua e de seu território que é o mesmo de Andrio Cândido. Outro recurso narrativo usado por Andrio para ficcionar seu mundo foi a construção de personagens femininos. Nos cinco textos do livro, quatro tem protagonistas mulheres e no único onde isso não acontece, a personagem mulher é o pivô de uma desavença que define a trama.
As histórias de A Caminhada se desenrolam em espaços familiares ao autor. Além do contexto geral da periferia da Zona Leste de São Paulo, especialmente o bairro de São Miguel, ele explora a favela e seus becos, a escola de samba e a escola pública de ensino formal, o terreiro de religião de matriz africana e o serviço de medida socioeducativa. A exaltação da ancestralidade indígena do território Ururaí onde tudo se passa, completa o sentido de pertencimento que o livro exala.
Histórias do país periferia
A Caminhada abre com o conto Ifé, expressão da língua Iorubá que designa um reduto sagrado, segundo minha leiga compreensão. E faz sentido. A narrativa conta a história de dois irmãos (Jorge e Jerônimo) de famílias distintas e que foram adotados pela mãe de santo do terreiro, a Mãe Mocinha. De temperamentos bem diferentes, os dois têm profunda lealdade um com o outro. Até que uma prima (Bárbara) chega para morar com eles quando todos estavam na flor da juventude. Não demorou para que os dois ficassem encantados pela guria. Porém, enquanto um ficava em devaneios de amor, o outro foi às vias de fato. O autor anuncia uma tragédia que não se consuma literariamente. Fica para o leitor criar o desfecho.
O batismo na Favela é um conto mais longo onde o autor desenvolve a trama em ritmo acelerado e tenso. Roma, uma bela jovem de quebrada, negra, filha única de Patrícia uma mãe solo. A mina é tipo a vedete da favela, como diria Carolina Maria de Jesus, porém, mais discreta do que a personagem criada pela a autora de Quarto de despejo num samba que compôs na década de 1960. Apesar de todos os conselhos da mãe, Roma se envolve com um rapaz de caráter duvidoso recém-chegado na Vila. O cara é um promissor vagabundo que engana a mãe e a filha sobre suas intenções com a garota. Usuário de drogas, ele consegue despistar seu vício perante Roma.
O casal seguia levando uma vida normal de namorados quando retorna à favela o chefe do tráfico que também é presidente da escola de samba da qual Roma se tornou a rainha da bateria. Não demorou para o presidente se encantar pela passista. A trama se desenrola com muita tensão no ritmo do carnaval que está para chegar. Se no conto anterior a tragédia não é relatada, neste, o desfecho é narrado com a descrição pormenorizada da crueldade que um ser humano é capaz de fazer com o outro e consigo mesmo.
O terceiro conto tem um título que que é uma paráfrase: Alice no país periferia. A história se passa numa escola pública e tem um jogo de flashbacks a partir de um ponto de observação que é o teto da escola onde fica uma caixa d’água sobre a qual Alice se confronta com seus demônios. Por uma circunstância inusitada ela se envolve com Lucas, o garoto mais bonito e desejado da Escola. Há uma trama rocambolesca por meio da qual os dois fogem da escola e no calor da experiência insólita acabam por ter uma relação.
Certo dia, Lucas convida Alice para uma festa regada a bebidas e drogas, numa vibe que está mais para balada de playboy do que para um rolê de quebrada. Não deu outra; além de embriagada e drogada, a jovem foi violentada sexualmente. Alice segue introspectiva agora não mais no alto da laje da escola, mas, no leito do hospital. Porém, a história não acaba por aí. O desfecho é bem interessante.
Mó viagem é o conto mais longo do livro e mais consistente também. A história é relatada por uma adolescente que cumpre medida socioeducativa de meio aberto. A protagonista, Cleideanne que prefere ser chamada apenas de Anne, conta para a psicóloga do SMSE- Serviço de Medida Socioeducativa a situação que a enquadrou. A conversa das duas é muito instigante, algo que só quem vive esse universo dos adolescentes em conflito com lei (ou a lei em conflito com os adolescentes) poderia elaborar. A Dra. Carla consegue tirar da jovem mais do que um relato fazendo com que Anne reconheça a razão de seu envolvimento, aparentemente involuntário, com o crime que resultou na sua apreensão. O conto fala de cumplicidade e confiança numa relação de sororidade intergeracional, mostrando que é possível ter um resultado positivo no serviço de medida socioeducativa.
O livro termina com uma dramaturgia: Ururay livre1. O estilo de Andrio é bem teatral dada a sua formação de ator, então caiu bem concluir a obra com um texto fiel ao gênero dramático. A história se passa na São Paulo do século XVI com personagens reais como Padre Manuel da Nóbrega, José de Anchieta e o protótipo de bandeirante João Ramalho intercalando com cenas que se passam nos dias de hoje.
Na atualidade a protagonista é Lua, criança negra que está no nono ano do ensino fundamental e se vê diante de um texto sobre uma lenda indígena que ela logo identifica como racista. Confrontada pela professora, ela foi buscar a verdadeira história dos indígenas. Com a ajuda do pai ela encontra os poetas do Sarau Marginaliaria (coletivo do qual o autor faz parte) que contam a história de Ururaí território no qual os Guaianazes e outros povos originários viviam. Entre uma cena e outra, personagens históricos e atuais compõem uma trama envolvente e educativa na qual um negro escravizado Akuna e sua irmã Matamba cruzam a trama enriquecendo ainda mais o contexto histórico ao qual o autor se baseou para compor a peça.
Mulheres que resistem e reexistem
Como foi dito, as mulheres são as protagonistas no livro de Andrio Cândido. Mesmo quando não são as personagens que fazem a história andar, elas têm um papel decisivo. Mas são mulheres que sofrem. Bárbara, a prima que estabelece um triângulo amoroso com Jorge e Jerônimo, foi a única sobrevivente de um acidente de carro que vitimou o resto de sua família; Roma, a bela passista teve seu destino marcado por dois homens nefastos; Alice foi estuprada; Anne se meteu numa enrascada por estar ao lado de um jovem traficante. Finalmente Lua, a criança se sente agredida pelo racismo exposto num texto trabalhado em sala de aula.
Apesar do sofrimento, são mulheres que resistem. Bárbara foi resiliente diante da tragédia que viveu e foi acolhida por Mãe Mocinha; Roma acreditou que poderia curar o homem que amava do vício nas drogas. Talvez ela quisesse viver o amor que sua mãe, Patrícia não teve; Alice, apesar do trauma vivido, reagiu; Anne se encontrou com a ajuda de Carla a psicóloga; Lua conseguiu com que Clara, sua professora, se reconhecesse como mulher negra ao buscar na história a verdadeira origem dos indígenas tão mau representados na lenda que leu em voz alta para os colegas de classe.
São mulheres que enfrentam o patriarcado que estrutura a sociedade e que se manifesta também no contexto periférico. A caminhada acaba por elaborar uma ficção na qual, para as mulheres, não há outra coisa a se fazer do que sofrer, resistir e ser celebrada como guerreira. Porém, no último texto, a personagem feminina, ainda criança, assim como sua jovem professora, desviam o curso da tragédia cotidiana na qual as mulheres não vivem, apenas aguentam. É pertinente que essas duas personagens apareçam no texto que celebra a ancestralidade indígena e negra de São Miguel, território sagrado de Ururaí.
Nota:
1 O autor usa o y na palavra Uraraí diferenciando da forma como escrevo que leva em conta outras referências ao termo.
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