Emilia Pérez: ame ou odeie

Apesar das várias polêmicas, o filme agradou a muitos. Mas é desconjuntado: além das “caricaturas” de questões culturais e de gênero, obra trilha numa mescla mambembe de estilos cinematográficos, sem assumir plenamente esta opção. O efeito: a simplificação estética

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Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

É difícil ver Emilia Pérez com olhos livres, isto é, deixando de lado toda a polêmica em torno do que andaram dizendo sua atriz principal (Karla Sofía Gascón) e seu diretor (Jacques Audiard), bem como a recepção hostil de uma parte do público mexicano incomodada com a representação do país no filme. Mas vamos tentar.

Resumindo bruscamente a história, inspirada num romance do francês Boris Razon: Manitas del Monte, um megatraficante mexicano, resolve mudar de sexo e identidade, forjando a própria morte e submetendo-se a uma cirurgia radical. Torna-se Emilia Pérez, milionária benfeitora que ajuda famílias a encontrarem seus entes desaparecidos na guerra do tráfico. Antes e depois da transição, a personagem é interpretada por Karla Sofía Gascón, o que significa mimetizar o processo de transmutação física na própria feitura do filme.

O tema fascinante da metamorfose corporal (e eventualmente sexual) é recorrente no cinema. Aparece num policial noir como Prisioneiro do passado (Delmer Daves, 1947), num drama existencial como O segundo rosto (John Frankenheimer, 1966), numa comédia dramática como James Dean, o mito sobrevive (Robert Altman, 1982) e em pelo menos dois filmes inclassificáveis de Pedro Almodóvar (Tudo sobre minha mãe, de 1999, e A pele que habito, de 2011).

Mistura de registros

No centro da conturbada virada de vida de Emilia Pérez está a jovem advogada Rita (Zoe Saldaña), que em troca de uma fabulosa quantia viaja pelo mundo para viabilizar o intento de Manitas/Emilia.

Não contente em bulir com uma porção de vespeiros (a mudança de gênero, o retrato da sociedade mexicana, as diferenças culturais), o diretor Jacques Audiard acrescentou armadilhas em seu próprio caminho ao misturar estilos e gêneros cinematográficos: musical, melodrama, policial, parábola moral. À transição de gênero (sexual) acrescentou a transição entre gêneros (cinematográficos).

É no modo como se dão essas misturas, ou essas passagens, que reside o que há de mais problemático no filme, para além da legítima discussão sobre seu “conteúdo” (tratamento eventualmente preconceituoso ou caricato de questões culturais e de gênero).

Uma certa simplificação estética, beirando a caricatura e a carnavalização, é praticamente inerente a obras musicais e de fantasia. Não cabe exigir realismo ou verossimilhança de um filme com uma proposta assim. O problema de Emilia Pérez, a meu ver, é não assumir plenamente essa opção, ficando a meio-caminho entre o retrato “sério” e a fantasia.

Um sintoma disso seria, por exemplo, o contraste entre a sequência dedicada à equipe médica tailandesa e a cena do diálogo com o cirurgião israelense. A primeira é caricatural, leviana. A segunda é uma conversa sóbria, com um profissional que inspira seriedade e confiança.

Desejo ou conveniência

É na conversa com o médico israelense, aliás, que desponta de passagem uma questão mal resolvida pelo restante do filme: Manitas quer mudar de sexo para fugir da polícia e dos bandidos rivais ou para realizar um antigo desejo íntimo? Ao médico ele expressa a segunda opção, mas jamais saberemos se foi apenas uma alegação tática para convencer um profissional tão “sério”. A questão pode parecer irrelevante, mas não aos olhos da comunidade trans. E essa dubiedade acaba por contaminar o filme como um todo.

As sequências musicais, em si, são de uma irregularidade flagrante. Algumas resultam envolventes e bem resolvidas, como a primeira, com a advogada Rita rumando para o fórum, ou a do jantar de gala, em que a mesma Rita passeia pelas mesas desvelando a corrupção de empresários e políticos envolvidos com o crime. Outras passagens são sofríveis, desajeitadas, mal cantadas.

Emilia Pérez é, em uma palavra, um filme desconjuntado, um bricabraque que encantou, talvez por isso mesmo, espectadores diversos, do júri de Cannes a amigos que respeito e admiro, como o cineasta Jorge Furtado e o crítico Marcelo Janot. A mim, ao contrário, a ausência de organicidade incomodou como falta de integridade, no sentido moral do termo. É difícil explicar isso, mas me pareceu um filme sem alma, feito para “causar”, não para expressar o que quer que seja.

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