Cinema: Rebeldes, resolutos e Racionais

Dois documentários mostram o voo alto da arte periférica. Um com a trajetória do célebre grupo de rap: sua influência sobre jovens negros, a repressão policial e a reinvenção constante. Outro sobre o muralista Kobra e sua visão de cidade e política

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Por um capricho do destino, entram em cartaz ao mesmo tempo dois documentários vibrantes sobre importantes artistas brasileiros vindos da periferia sul-paulistana. Racionais – Das ruas de São Paulo pro mundo, de Juliana Vicente, está disponível desde quarta-feira na Netflix. Kobra Auto Retrato, de Lina Chamie, estreia nesta quinta (17) no circuito exibidor.

Racionais, como indica o título, registra a trajetória do grupo de rap Racionais MC’s, formado no final dos anos 1980 por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, quatro rapazes negros do Capão Redondo, um dos bairros mais violentos de São Paulo.

O grande feito do documentário de Juliana Vicente é reconstituir a acidentada trajetória do quarteto, das origens às várias “reencarnações”, em sua interação orgânica com instâncias maiores: o quadro social das juventudes periféricas, a influência da black music norte-americana (James Brown, Public Enemy) e brasileira (Tim Maia, Jorge Benjor), os confrontos com as forças policiais, as relações com a mídia, os solavancos da vida política nacional, etc.

Acompanhamos, ao mesmo tempo, o modo como os Racionais vão assimilando, interpretando e devolvendo tudo isso sob a forma de música provocadora, agressiva e militante. As lembranças e reflexões atuais dos membros do grupo servem de fio condutor de uma narrativa notavelmente rica de materiais heterogêneos (registros de shows, matérias de imprensa, cenas da vida urbana, videoclipes, filmes domésticos).

Assim, ao mesmo tempo em que se forma um quadro muito vívido da situação dos jovens negros da periferia, atestando o racismo estrutural brasileiro, documenta-se o processo de amadurecimento dos Racionais, em especial de Mano Brown, e o aprofundamento da sua consciência do papel político desempenhado pelo grupo. A temperatura atinge um ponto de ebulição quando o tema mais recorrente das letras – a violência classista e racista da polícia – se materializa em incidentes nos shows e na vida dos quatro.

Ora mais imersos no bairro, na família, nas práticas afro-brasileiras mais tradicionais (o candomblé, o samba), ora se abrindo para as influências externas e o circuito internacional dos shows, gravações e prêmios, os quatro parecem atraídos de modo pendular por esses polos opostos, a “quebrada” e o grande mundo. Sua força, sempre renovada, reside nessa tensão, que chega às vezes ao atrito, à angústia e ao impasse, até que ocorra uma reinvenção, um renascimento. Retratar em sua própria construção esse rico processo é o mérito maior do belo documentário de Juliana Vicente.

Kobra

Das ruas de São Paulo para o mundo poderia ser também o subtítulo do filme de Lina Chamie sobre o muralista paulistano Eduardo Kobra, também ele oriundo de um bairro pobre e periférico da zona sul da cidade.

Analogamente ao que ocorre em Racionais, acompanhamos o processo de conquista de espaço de expressão pelo artista em círculos concêntricos, da pichação no bairro aos grafites espalhados pela Pauliceia e por fim aos murais gigantescos estampados em mais de trinta cidades do mundo, entre elas Nova York, Amsterdã e Tóquio.

O eixo narrativo é um longo depoimento em que Kobra revisita criticamente sua trajetória. Há bastante material de arquivo, mas o ponto forte do documentário são as imagens captadas pela própria diretora e seu diretor de fotografia, Lauro Escorel, configurando um diálogo estimulante entre as obras do artista e o espaço urbano em que elas se inserem. São, no mais das vezes, enormes retratos em preto e branco de figuras emblemáticas (Mandela, Gandhi, Jimi Hendrix, Adoniran Barbosa, Chico Buarque), matizados ou tensionados por formas geométricas coloridas, resultando num estilo artístico inconfundível.

Um deslocamento de bicicleta pelas ruas serve de pontuação dessa narrativa marcada pelo movimento, pela inquietação. Lina Chamie, cineasta de grande sensibilidade visual, rítmica e musical, não se limita assim a “ilustrar” a obra do artista, mas conversa com ela e potencializa sua capacidade de intervenção estética e política. Arte sobre arte é isso.

Candeias, 100 anos

Passou quase despercebido o centenário de nascimento de um grande e singular cineasta brasileiro, Ozualdo Candeias, celebrado no último dia 5.

O honroso “quase” fica por conta da plataforma de streaming Itaú Cultural Play, que disponibilizou de graça seis filmes do diretor: os longas-metragens Meu nome é Tonho (1969), A herança (1971) e A opção ou as rosas da estrada (1981) e os curtas Zézero (1974) e as duas partes de Uma rua chamada Triunfo (1971). A margem (1967), o longa de estreia do cineasta, tido por muitos como sua obra-prima, está disponível gratuitamente no YouTube.

“Marginal dos marginais”, cultuado por cineastas como Rogério Sganzerla e Andrea Tonacci, Candeias estreou na direção aos 45 anos, depois de ter sido, entre outras coisas, caminhoneiro, taxista, metalúrgico e funcionário público. Seu cinema retrata essencialmente seres à margem, em trânsito entre o mundo rural e a metrópole. Autodidata, foi talvez o exemplo mais radical da máxima defendida por Carlos Reichenbach: fazer da precariedade material elemento de invenção estética.

Sem recursos para filmar com som direto, utilizou criativamente ruídos da natureza e legendas na tela para criar uma ambiência especificamente cinematográfica, trafegando entre o registro naturalista e o mítico. Exemplar nesse sentido é A herança, transposição da tragédia Hamlet, de Shakespeare, para uma realidade rural brutal, com personagens que são um misto de jagunços e caubóis. Os temas da reforma agrária, da opressão social e do racismo perpassam essa curiosíssima apropriação antropofágica, que merece uma revisão urgente.

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