Cinema: Qualquer amor é um descanso na loucura

Em Pedaço de mim, filme francês, uma mãe com filho neurodivergente encara o mundo hostil. Mais: garoto pode ser pai em breve e sua namorada tem a mesma condição. O drama no não dito e no sentido dos olhares: nas frestas de portas e reflexos no espelho

Foto: Reprodução
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Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

De perto ninguém é normal, declarou celebremente Caetano Veloso. O que equivale a dizer, inversamente, que de perto todo mundo é normal. É na articulação entre essas duas ideias que se desenvolve o filme francês Pedaço de mim, primeiro longa-metragem de ficção de Anne-Sophie Bailly, que entra em cartaz nesta quinta-feira.

A primeira sequência já coloca em cena os dados essenciais com que o drama será construído. Estamos numa piscina pública em que Mona (Laure Calamy), uma mulher de meia-idade, nada com seu filho Joël (Charles Peccia). Nas primeiras imagens, vemos apenas seus corpos em movimento embaixo d’água, como se estivessem num líquido primordial, uterino, silencioso, descolado do mundo exterior. Tudo muda quando a câmera se eleva sobre a superfície da água e logo percebemos que o rapaz – grandalhão, mas com atitudes infantis – perturba os outros nadadores, em especial uma senhora idosa que nada na raia contígua.

Simbiose e ruptura

Esse primeiro embate da ligação simbiótica entre mãe e filho com o mundo exterior termina em favor da primeira. Depois de chamar a atenção de Joël, Mona brinca com ele, jogando água um no outro como duas crianças numa efusão lúdica.

Mas outros embates virão, nem sempre com o mesmo desfecho. A grande personagem dramática do filme é Mona, às voltas com o delicado equilíbrio entre os cuidados com o filho e a busca de uma felicidade pessoal possível. Ela trabalha como depiladora num salão de beleza e mantém a duras penas o apartamento onde vive com Joël.

A primeira crise acontece quando Mona sai com amigas para um bar e volta para casa com um homem que acabou de conhecer, o belga Frank (Geert Van Rampelberg). De madrugada, ao ir ao banheiro, Joël topa com Frank nu e entra em pânico, atirando-se aos socos sobre ele. Mona arregla a situação, mas fica clara desde então sua dificuldade em lidar ao mesmo tempo com o papel de mãe e seus desejos mais íntimos.

Mas o grande drama ainda está por vir: numa instituição de trabalho para jovens neurodivergentes, Joël namora escondido com a colega Océane (Julie Froger) e a engravida numa cópula rápida e desajeitada num depósito de materiais.

Vulneráveis

Os pais de Océane ameaçam processar Joël por abuso de vulnerável e querem que a moça aborte. A assistência social intervém, o jovem casal é instado a decidir e… não vou antecipar aqui o desenlace. O fato é que o dilema existencial de Mona se aprofunda, trazendo consigo todas as arestas que uma situação assim deixa à mostra.

A primeira virtude da diretora Anne-Sophie Bailly foi a de eludir as muitas armadilhas que seu tema apresentava: cair no estereótipo, se encharcar no melodrama, sucumbir ao paternalismo ou sentenciar no terreno moral.

Todos os personagens do filme são falhos, falíveis, incompletos, a começar da própria Mona, que num momento de desabafo brada aos prantos que não queria um filho “diferente” (aspas que ela própria formata com os dedos), mas sim normal (grifo que ela indica elevando a voz). É um dos raros momentos de afloramento de páthos numa obra marcada no mais das vezes pela contenção, pela música escassa, pelo drama contido nos gestos sutis.

De novo a água

Nessa orquestração, conseguida mediante elipses precisas, dois elementos se destacam: o sentido dos olhares, muitas vezes captados como que por acaso, em frestas de portas ou reflexos de espelhos, e a recorrência da água. É nos olhares desarmados, inadvertidos, que se trai muitas vezes a emoção que os personagens pretendem esconder. A certa altura, a mãe de Océane diz que percebeu que a filha tinha um problema ao constatar que ela, quando bebê, não olhava para o interlocutor, mas para a parede.

E a água, presente desde a primeira imagem, voltará a aparecer num momento decisivo, quando Mona mergulha de roupa e tudo num lago gelado, à noite, num gesto ao mesmo tempo de libertação, redenção e autopunição. E talvez não seja casual que a amada de Joël se chame Océane.

Um dos planos mais belos e significativos de Pedaço de mim é aquele em que a câmera enquadra Joël em meio ao público que assiste a uma festa popular nas ruas de uma cidade belga, e depois retrocede gradualmente, abrindo o enquadramento e fazendo com que a figura do rapaz seja absorvida na multidão anônima. Cada um de nós é especial, mas somos todos anônimos, meros pixels na imagem geral, grãos ínfimos na massa da humanidade – e isso é dito pela câmera, não pelos diálogos ou pela locução. Cinema, em suma.

Mas há diálogos cruciais, claro. Numa entrevista de Océane com uma assistente social, esta lhe pergunta: “Se o bebê chorar, o que você faz?” A moça responde: “Eu o pego no colo. Não é isso?” E a assistente, discretamente comovida: “Sim, é exatamente isso”.

E já que este texto começou com uma frase surrada, talvez seja o caso de terminar com outra, dita por Riobaldo em Grande sertão: veredas, e que resume de certa forma o espírito de Pedaço de mim: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

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