Cinema: Os olhos de três gerações
A natureza das coisas invisíveis, que chega ao cinema, gira em torno de duas meninas: a filha da enfermeira e neta de uma paciente com demência. Muita coisa se revela aos poucos, com sutileza e em três formas de apreender o mundo: o das crianças, o de suas mães e o dos idosos
Publicado 27/11/2025 às 18:41

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
Vencedor do Mix Brasil deste ano e premiado também em vários festivais internacionais, chega aos cinemas nesta quinta-feira um dos filmes mais encantadores dos últimos tampos, A natureza das coisas invisíveis, longa-metragem de estreia de Rafaela Camelo.
A história se passa em Brasília e gira em torno de duas meninas de oito ou dez anos que se conhecem num hospital da cidade. Glória (Laura Brandão), de uns oito ou dez anos, é filha única da enfermeira Antônia (Larissa Mauro) e acompanha a mãe solo no trabalho, ficando amiga dos pacientes de uma ala de idosos. Sofia (Serena) chega ao hospital com a mãe (Camila Márdila) para internar a bisavó (Aline Marta Maia), que se feriu numa queda e apresenta profunda confusão mental.
A narrativa se divide em duas partes bem marcadas. Na primeira, vemos Glória em casa, na escola e, principalmente, no hospital onde a mãe trabalha. Na segunda, aproveitando as férias (suas e da filha), a enfermeira vai com Glória passar uns dias no sítio onde Sofia mora com a mãe e a bisavó.
Três imaginários
Muita coisa acontece nas duas partes, muita coisa se revela aos poucos. O importante a notar é que há um trânsito constante entre três modos de apreender o mundo – ou de três imaginários, melhor dizendo: o das crianças, o de suas mães e o dos idosos (a bisavó, os pacientes internados). É nessa troca – às vezes entrechoque, às vezes comunhão – de pontos de vista sobre a vida e a morte que o filme mostra sua delicadeza, sua originalidade e sua força.
A primeira cena depois dos créditos iniciais já introduz um toque de estranhamento: no banheiro da escola, Glória sai de um dos cubículos reservados e se arruma diante do espelho. De repente ela olha para trás e vê, pela fresta embaixo da porta do reservado, primeiro as patas e depois a cara de um porco vivo. Essa imagem só vai ganhar um possível sentido bem mais tarde, quando ficamos sabendo que a menina recebeu um coração transplantado e se pergunta quem terá sido o doador.
Do mesmo modo, Sofia também carrega um mistério. Quando a amiga Glória vê a foto de um menino muito parecido com ela e pergunta quem é, Sofia diz que é um primo. Depois, esse primo vira um irmão que morreu. Depois… Não cabe antecipar aqui. Basta dizer que a revelação é tão surpreendente quanto delicada.
Romance de formação
Toda a poesia de A natureza das coisas invisíveis provém da ideia de que a fantasia (sobretudo a infantil, mas também a dos adultos e idosos) produz realidade. Crianças conversam com bonecos, têm amigos imaginários, transformam um lápis num foguete supersônico. A bisavó de Sofia também vê gente ausente, interage com mortos, reinstaura o passado.
O filme tem sido descrito como um “romance de formação” (ou coming of age, na expressão colonizada em voga), mas talvez o aprendizado maior nessa história seja o das mães, levadas a aprender com as filhas e os idosos a transcender a realidade prosaica do cotidiano e enxergar “as coisas invisíveis” a que se refere o título. O grande sortilégio do cinema – e de toda arte – talvez seja justamente esse: tornar visível o que a imaginação inventa. Como dizia Ferreira Gullar, a vida não basta.
Faltou dizer que A natureza das coisas invisíveis alcança essa proeza graças a um roteiro engenhoso, a uma decupagem precisa e, principalmente, a um elenco de primeira, em que se destacam as duas meninas protagonistas, não menos que fabulosas.
Genocídio visto por dentro
Entra em cartaz também um documentário singular e terrível: Guarde o coração na palma da mão e caminhe, dirigido pela iraniana desterrada Sepideh Farsi. Logo de início, a própria diretora conta que tentou entrar em Gaza para fazer seu filme, mas foi impedida pelos bloqueios israelenses. Na impossibilidade de registrar in loco o que se passava ali, ela consegue contato com uma jovem fotógrafa palestina, Fatma (ou Fatem) Hassouna, de 24 anos, e as duas passam a conversar com imagem pelo celular.
O documentário se resume a essas conversas, em que Fatma mostra a Sepideh o que a cerca, no norte de Gaza: sua casa, os abrigos onde se refugia, a fumaça das bombas através de sua janela. Mostra também as fotos que faz em suas incursões às ruas da cidade devastada, ao mesmo tempo em que fala sobre a falta de comida e contabiliza seus mortos: ontem uma tia, hoje um primo, a família inteira dos vizinhos.
Forma-se rapidamente um laço afetivo forte entre as duas mulheres. Apesar de todos os dramas e percalços, Fatma se ilumina num sorriso cada vez que Sepideh a chama para conversar. Sepideh diz que tem uma filha da idade de Fatma e conta que não pode voltar ao Irã para não ser presa. Fala de suas viagens pelo mundo e, na última conversa, dá a Fatma a notícia de que o documentário vai passar no festival de Cannes. Quem sabe as duas conseguem ir juntas ao evento? Corta para uma cartela informativa. Quem mantiver os olhos enxutos depois dela já perdeu a humanidade faz tempo.
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