Cinema: O nascimento dos monstros

Uma mulher se envolve com o patrão – e o marido, desaparecido no front da 1ª Guerra, retorna desfigurado. A garota da agulha, que concorre ao Oscar com Ainda Estou Aqui, aborda tensões de classe e como a escassez, o medo e a violência embrutecem os seres humanos

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Por José Geraldo Couto, no blog da IMS

O bate-boca em torno de Emilia Pérez e sua protagonista não deve (ou não deveria) eclipsar dois outros esplêndidos concorrentes de Ainda estou aqui na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro: o alemão-iraniano A semente do fruto sagrado, de Mohammad Rasoulof, e o dinamarquês A garota da agulha, de Magnus von Horn. O primeiro, em cartaz nos cinemas, já foi abordado aqui (Bendito fruto – por José Geraldo Couto). Vamos então à Garota da agulha, que está disponível na plataforma de streaming Mubi.

Conta-se ali, em resumo, o drama de Karoline (Vic Carmen Sonne), jovem operária de Copenhague cujo marido foi para o front da Primeira Guerra Mundial e não deu mais notícias. Em 1919, Karoline se envolve amorosamente com o patrão, fica grávida, perde o emprego e cai nas graças (ou nas garras) de uma confeiteira, Dagmar (Trine Dyrholm), que acolhe crianças indesejadas, supostamente para entregá-las à adoção.

Os inevitáveis spoilers acima não devem prejudicar a terrível fruição desse pesadelo plasmado num belíssimo preto e branco com todos os tons de cinza. Em seu aparente naturalismo de sabor oitocentista, trata-se de um autêntico filme de monstros. Se existem contos de fadas, este é um conto de bruxas, em que a deformação moral dos personagens espelha a deformação física do soldado retornado do front.

Sequelas da guerra

A guerra e seu séquito de mazelas desfiguram a todos, deixando sequelas tanto nos combatentes quanto nos que ficam em casa. A escassez, a fome, o medo e a insegurança embrutecem os seres e os empurram para toda sorte de violência. Essa é a visão que o filme apresenta – e que a realidade parece confirmar a cada dia.

Há, no entanto, um viés político nesse retrato da sociedade. Se cada um se vira como pode para fazer frente à necessidade, há os que, seguros em sua posição de dominação, só tiram proveito da situação e reiteram seu poder.

É o caso da família do patrão-amante (Joachim Fjelstrup). Ele escapou do alistamento por sua condição de aristocrata e passou a produzir uniformes para o exército explorando a mão de obra barata de moças em situação de penúria. Se o jovem empresário é “apenas” pusilânime, sua mãe baronesa (Benedikte Hansen) é pura maldade, semelhando uma rainha má de conto infantil. Seja como for, é de uma opressão de classe que se trata ali.

Horror e beleza

Nesse contexto de iniquidades – em todos os sentidos da palavra – o circo de aberrações que chega à cidade funciona como um espelho invertido da própria sociedade, ou antes como a revelação de sua verdadeira natureza. O mundo como um show de horrores que remete ao clássico Monstros (Freaks, 1932), de Tod Browning.

Esse pesadelo realista é filmado com um requinte plástico extremo, em que a precisão dos enquadramentos, o controle absoluto da luz e o uso da profundidade de campo – atributos da melhor tradição escandinava – não ofuscam a sondagem da densidade humana. Pelo contrário, a aprofundam.

Algumas curiosidades: embora a história se passe toda na Dinamarca, boa parte das cenas foi rodada na Polônia. O fato real que inspirou o roteirista e diretor foi a história de Dagmar Overby, condenada em 1921 pela morte de nove bebês. O filme a que a protagonista assiste no cinema a certa altura é o alemão Der Absturz (1923), de Ludwig Wolff, com a estrela dinamarquesa Asta Nielsen. A canção que se ouve na cena é a valsa brasileira “Sublime provação”, de Eduardo Souto, na voz de Alda Verona. Há no YouTube um clipe de cenas de Der Absturz, com a música citada. Devo essa informação ao amigo crítico Ricardo Cota.

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