Cinema: Mundo oblíquo e dissimulado

Capitu e o capítulo, de Julio Bressane, não se inspira, mas “saqueia” com inventividade a obra de Machado de Assis. A personagem torna-se signo para entender seu tempo. E, em vez de ser interrogada, é ela quem interpela a sociedade

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema

Um filme de Julio Bressane é sempre um desafio à inteligência e à sensibilidade do espectador. Com Capitu e o capítulo, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, não é diferente. Cada um de seus planos coloca em cena um conjunto de signos (visuais, rítmicos, sonoros) que interagem de modo a produzir ou sugerir sentidos.

Vejamos o início de Capitu. A primeira imagem é de uma biblioteca particular às escuras, onde um violinista solitário toca um adágio pungente. Corta para uma tomada em câmera alta, vertical, que mostra dois homens, ou melhor, seus chapéus, um deles gesticulando “sim” e o outro “não”. Talvez afoitamente, pensamos já numa referência ao tema da ambivalência que cerca a protagonista do romance e do filme: “afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?”

Bentinho/Casmurro/Machado

A cena seguinte começa com o primeiro plano de um chapéu, do qual a câmera se desloca para mostrar o ator Enrique Diaz escrevendo sobre uma escrivaninha e dizendo em voz alta: “Chamam-me Casmurro, não é esse o meu nome”. Trata-se do próprio Dom Casmurro/Bentinho ou de Machado de Assis assumindo em primeira pessoa a voz de seu personagem-narrador? A ambiguidade, instalada nesses primeiros minutos, passa no plano seguinte para um close dos olhos esverdeados e sanguíneos da própria Capitu (Mariana Ximenes), os famosos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (frase de José Dias jamais proferida no filme).

Para Bressane, Capitu é um signo a ser combinado com muitos outros para suscitar ideias e percepções sobre um punhado de assuntos: a mulher na sociedade brasileira (sobretudo no final do século XIX, mas não só), o romantismo na literatura e nas artes, as relações entre a cultura nacional e as metrópoles europeias, o influxo da natureza tropical sobre o pensamento e as artes, etc. etc.

Não à toa, o filme é apresentado como “extraído do romance de Machado de Assis”. Não é “baseado”, ou “adaptado”, mas “extraído”. É como se o cineasta retirasse do livro aquilo que lhe interessa e fizesse do material saqueado o que bem entendesse. Não existe fidelidade a uma obra que tematiza, entre outras coisas, uma suposta infidelidade.

Já em seu primeiro diálogo com Bentinho (Vladimir Brichta), filmado mediante um espelho, a Capitu composta por Bressane e Mariana Ximenes surge liberta das amarras da personagem do livro. Desafiadora, impudica, ela parece quase uma figura saída de Nelson Rodrigues quando indaga ao marido acuado: “Se você tivesse que escolher entre mim e sua mãe, a quem escolhia?”, ou “Você tem medo de apanhar na cara?”

Pouco depois, na biblioteca escura de Casmurro/Machado, as páginas que ele escreve escapam-lhe das mãos trêmulas e ele se deixa cair numa poltrona, enquanto as folhas se espalham pelo chão. Seu texto já não lhe pertence?

Da citação à invenção

As liberdades tomadas por Bressane são de toda ordem, incluindo anacronismos ostensivos, como na bela cena em que os dois casais – Bentinho/Capitu e Escobar (Saulo Rodrigues)/Sancha (Djin Sganzerla) – dançam sem música. Enquanto o primeiro par dança uma valsa, este último simula os passos de um twist ou rock’n’roll dos anos 1950.

Em outra passagem, Enrique Diaz/Casmurro/Machado diz que “os vivos suspeitam que um astro funesto alumia lugubremente a sepultura dos modernos poetas brasileiros”, frase que na verdade pertence ao Cancioneiro alegre de poetas portugueses e brasileiros, de Camilo Castelo Branco. Tudo se extrai de todos os lugares, numa atordoante sobreposição de referências.

Quando Bentinho e Sancha falam sobre uma projetada viagem dos dois casais à Europa, os planos seguintes são dos exuberantes afrescos do Palazzo Te, em Mântua, reverberando plasticamente as falas crescentemente sedutoras e libidinosas da moça.

Mas, a meu ver, mais interessantes e estimulantes que o mero jogo intelectual de citações e remissões (inclusive a outros filmes do diretor), são os achados especificamente cinematográficos que atingem de modo mais imediato a percepção do espectador.

Por exemplo, quando o ciúme transtorna Bentinho, o espaço todo balança à sua volta como um navio em mar revolto, obrigando-o a se agarrar aos móveis. Ou na cena antológica em que a sombra de Bentinho, projetada na parede e no teto, se transforma, por um mero deslocamento da luz, na sombra de um corvo, enquanto Enrique Diaz declama os versos “E o corvo aí fica; ei-lo trepado/ no branco mármore lavrado/ da antiga Palas”. Trata-se da tradução do célebre poema de Edgar Allan Poe pelo próprio Machado de Assis.

Relações erotizadas

Há, de resto, uma erotização de todas as relações, ou talvez uma explicitação de possibilidades contidas em estado de potência no texto machadiano. Nesse terreno, Bressane não hesita em colocar na boca de Capitu uma forte insinuação de paixão homoerótica de Bentinho por Escobar. “Na cama, eu lhe virava as costas e me tornava Escobar para você”, diz ela, com sarcasmo.

Em vez do secular questionamento – no fundo, machista – sobre a suposta traição de Capitu, o filme parece colocar em questão todos os personagens, em especial os masculinos (Bentinho, Escobar, o amante de superlativos José Dias), e a sociedade por onde transitam. Em vez de interrogarmos Capitu, é ela que nos interroga.

Como sempre ocorre com a obra de Bressane, haverá quem se sinta irritado diante da profusão de referências eruditas, ou frustrado pela ausência dos mecanismos habituais de projeção e identificação com os personagens, ou ainda desorientado pela inexistência de moral da história ou “mensagens” explícitas. Ao entrar no cinema, há que deixar de lado essas expectativas inerciais para embarcar em outro tipo de experiência – mais exigente, mas também mais enriquecedora.

1973 na Cinemateca

A Cinemateca Brasileira, em São Paulo, está apresentando uma mostra magnífica: “1973 – 50 anos depois”, que exibirá até 6 de agosto quarenta títulos marcantes do cinema daquele ano, 22 deles brasileiros e 18 estrangeiros.

Serão mostradas, entre outras, obras como Amarcord, de Fellini, Verdades e mentiras, de Orson Welles, A noite americana, de Truffaut, A comilança, de Marco Ferreri, e O espírito da colmeia, de Victor Erice, além de nacionais como Vai trabalhar, vagabundo, de Hugo Carvana, e A rainha diaba, de Antônio Carlos Fontoura.

Sem preconceitos de qualquer ordem, a programação, cuja curadoria é do cineasta Paulo Sacramento, inclui preciosidades como o erótico A virgem e o machão, dirigido por José Mojica Marins sob o pseudônimo J. Avellar, e o documentário O fabuloso Fittipaldi, de Roberto Farias. Sim, há cinquenta anos o cinema ainda era a maior diversão do planeta.

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