Cinema: Em carne viva

Transe aborda o fatídico 2018 – ano da vitória de Bolsonaro – a partir de um trisal de artistas, numa instigante mescla de realidade e ficção. Fora da bolha de classe média progressista, eles descobrem com espanto as fissuras, abismos e vertigens do Brasil real

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Transe, de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães, é um filme dilacerado e dilacerante. Trata, dizendo de modo sumário, de um grupo de jovens libertários de classe média surpreendidos pelo furacão Bolsonaro, visto e sentido como um bafo vindo das profundezas do inferno. Esse inferno, eles descobrem com espanto, é o próprio Brasil.

Ambientado inicialmente no período da campanha presidencial de 2018, o filme centra seu foco em três protagonistas que logo formam um trisal, ou algo parecido. Num pequeno apartamento carioca (em Santa Tereza?), convivem intimamente Luisa (Luisa Arraes), Johnny (Johnny Massaro) e Ravel (Ravel Andrade), ao que tudo indica músicos e artistas performáticos.

A situação, em princípio, lembra a de Os sonhadores (Bernardo Bertolucci, 2003), em que três jovens experimentam novas formas de amor e amizade num apartamento da Paris conflagrada pela rebelião de maio de 1968. Nos dois casos, o existencial e o político convivem e entram em atrito. Mas, se no filme de Bertolucci o trisal busca se distanciar da História com H maiúsculo, refugiando-se na arte, em Transe os protagonistas já começam mergulhados no coração da tormenta – a primeira cena se passa numa grande passeata do movimento “Ele não” – e suas intervenções artísticas são radicalmente políticas.

Documento e ficção

Um dos pontos fortes de Transe é, justamente, a inserção de seus personagens/atores em situações documentais: em comícios, shows, festas, cultos religiosos, na rua, em estações do metrô. Além disso, a narrativa é pontuada aqui e ali por reportagens televisivas, conversas com personagens “reais” (o pastor Henrique Vieira, o produtor e pensador da cultura digital Claudio Prado) e discursos acintosos e horripilantes do próprio Bolsonaro (felizmente só em áudio). A mistura de realidade e ficção é acentuada, ou complicada, pelo fato de os personagens terem o mesmo nome dos atores que os encarnam.

Nessa textura heterogênea, em que as relações íntimas se alternam e entrelaçam com a ação cultural e política, o foco principal é a perplexidade com que aqueles jovens tão plenos de energia e generosidade descobrem de repente o abismo do país em que vivem.

A sensação, fora da bolha de classe média progressista em que se sentem protegidos, referendados, é de vertigem e pavor. O transe do título se refere não apenas à hipnose coletiva que levou um obtuso defensor de torturadores à presidência, mas também ao susto de se descobrir repentinamente sem chão. Como na obra-prima de Glauber Rocha, é toda a terra que está em transe.

Fissuras e contradições

Mas, se o conflito essencial é entre, de um lado, a generosidade ingênua desses jovens que fazem dos próprios corpos instrumentos de libertação e, de outro, uma realidade político-ideológica opressora – entre poesia e fascismo, em suma –, o filme tem a honestidade de mostrar as fissuras e contradições no interior do próprio movimento progressista, em particular sua distância em relação ao cotidiano concreto dos negros e pobres que constituem a maioria da população.

“O Brasil é um país malvado”, disse certa vez num debate o exibidor Adhemar de Oliveira, frase que me parece lapidar. Transe busca retratar o espanto da descoberta desse país, o peso de acordar nele todos os dias – e o desejo renitente de transformá-lo em algo melhor. A aposta na poesia contra o horror está na última frase dita – ou melhor, cantada – no filme, o verso final de uma canção de Caetano Veloso: “Em outras palavras, sou muito romântico”.

Faltou dizer que todo o elenco é muito bom, mas Luisa Arraes é nada menos que fabulosa.

Dorival Caymmi

“Contra fel, moléstia, crime/ use Dorival Caymmi”, diz a letra de “Paratodos”, de Chico Buarque. Como antídoto ao Brasil perverso desvelado por Transe, o documentário Dorival Caymmi – Um homem de afetos, de Daniela Broitman, proporciona um mergulho no que este país tem de melhor, sua sofisticada e sublime cultura popular.

O principal trunfo do filme é uma conversa inédita com Caymmi na casa de um amigo, no Rio, nos anos 1990. Já octogenário, mas com muita vitalidade e memória afiada, o compositor fala sobre canções e amores, sua entrada no mundo do rádio, sua relação criativa com Carmen Miranda, etc.

Completam o filme depoimentos dos filhos de Caymmi (Nana, Dori e Danilo) e de seus discípulos (eu quase disse súditos) artísticos Caetano Veloso e Gilberto Gil, além de registros de arquivo e belas imagens dos principais motivos de inspiração do compositor: pescadores no mar da Bahia, cerimônias de candomblé, ruas antigas de Salvador. Permeando tudo, as magníficas canções do retratado.

Ao tratar de tamanho artista, a diretora Daniela Broitman optou pela discrição e pela sobriedade. Não é um documentário que se pretenda inventivo ou inovador. Não se sobrepõe a seu tema, não inventa a roda nem “perfuma a flor”, para usar a expressão de João Cabral de Melo Neto. Simplesmente dá a ver e a ouvir a trajetória de um dos nossos maiores criadores.

“Bahia, onde o Brasil não acaba”, escreveu certa vez Arnaldo Jabor – coincidentemente, pai de Carolina Jabor, diretora de Transe. Podemos substituir Bahia por Caymmi (afinal, são sinônimos) e a frase continuará valendo.

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