Abandono: ensaio poético-fotográfico
Fotógrafo envolvido na luta pela reforma urbana retrata sem-teto paulistanos e descobre identidades entre eles e poeta Manoel de Barros.
Publicado 11/06/2012 às 17:21 - Atualizado 15/01/2019 às 17:41
Fotógrafo envolvido na luta pela reforma urbana retrata sem-teto paulistanos e descobre identidades entre eles e poeta Manoel de Barros
Por Márcio Ramos, editor de Inventar a vida
“Eu bem sabia que a nossa visão é um ato poético do olhar”. (461)
A imagem em Manoel da Barros é tão edificante quanto suas coisas insignificantes e muitas vezes cheias de abandono e desimportantes. Os poemas de Manoel não são apenas referências para eu entender a minha relação com os movimentos de moradia; constato que em sua poética encontrei eco para minhas primeiras impressões sobre os moradores de rua e andarilhos. Eu tinha inveja da liberdade que suas condições proporcionavam. Um sentimento que sempre me questionou.
“Meu avô dava grandeza ao abandono.
Era com ele que vinham os ventos a conversar
Sentava-se o velho sobre uma pedra nos fundos
Do quintal
E vinham as pombas e vinham as moscas
A conversar
E vinham os gatos a conversar com ele.
Tenho certeza que o meu avô enriquecia
A palavra abandono.
Ele ampliava a solidão dessa palavra.
E as borboletas se aproveitavam dessa
Amplidão para voar mais longe”. (475)
E aqui:
“Meu avô namorava a solidão.
Ele era um florilégio de abandono”
Tanto a palavra solidão quanto a palavra abandono em Manoel têm sentido conflitante. Manoel aprofunda sentimentos e emoções em sua arte literária.
“Ele sabia que as coisas inúteis e
Os homens inúteis
Se guardam no abandono.
Os homens no seu próprio abandono.
E as coisas inúteis ficam para a poesia”. (465)
As imagens poéticas de Manoel ao mesmo tempo que revelam procuram desvelar o que só pode ser “visto” por meio de transgressões gramaticais.
“O abandono do lugar me abraçou de com
Força
E atingiu meu olhar para toda vida.
Tudo que conheci depois veio carregado de abandono.
Não havia no lugar nenhum caminho de
Fugir.
A gente se inventava de caminhos com
As novas palavras.
A gente era como um pedaço de
Formiga no chão.
Por isso o nosso gosto era só
De desver o mundo”. (463)
E aqui :
“Nessa hora já o morro encostava no sol.
Logo adiante vimos um quati a lamber um osso de ema.
A tarde crescia por dentro do mato.
O lugar nos perdera de rumo.
A gente se sentia como um pedaço de formiga perdida
Na estrada.
Bernardo completava o abandono”. (454)
A solidão do abandono de Bernardo, tão prezada pela veia poética de Manoel, só podia ser entendida e transmitida por alguém que possuísse a liberdade para ver e então transgredir e criar:
“Sou livre
Para o silêncio das formas
E das cores”. (416)
A humildade de Manoel era exercida na pretensão de “desver” o mundo, entendê-lo em sua profundidade e dimensão de “formiga no chão”. O abandono do lugar de Manoel talvez seja a solidão que surge com o sentimento de não pertencimento devido a uma perda original e a angústia na busca de uma identidade. Ver o que está além do óbvio das imagens é captar e dar sentido a coisas banais e sem importância.
“O menino que recebera o privilégio do
Abandono.
Achava que o seu abandono era maior que
O abandono do lugar.
Mas o abandono do lugar era maior
Porque continha o primordial”. (460)
O sentimento de abandono liberta e angustia porque não pode ser compartilhado nem por palavras.
“Eu sustento com palavras o silêncio do meu abandono”.
E mais:
“Com as palavras se podem multiplicar os silêncios”. (477)
É no olhar do andarilho tão íntimo do abandono e da solidão que se dá a liberdade de silenciar sobre os segredos da natureza que incorpora.
“Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
De águas
De árvore
De aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida”. (445)
O catador exercia a função de colecionar objetos que perderam a sua função, coisas insignificantes dando um novo significado a elas. O paradoxo é que o catador em Manoel de Barros e o catador de todas as épocas são pessoas excluídas, abandonadas e solitárias e por algum motivo símbolo de uma certa liberdade invejada pelo poeta e por este fotógrafo quando com seus doze anos.
“Um homem catava pregos no chão.
Sempre o encontrava deitado de comprido,
Ou de lado,
Ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais – o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
Pregos enferrujados.
Acho que esta tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garantem a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter”. (410)
O verdadeiro conhecimento vem do envolvimento da vida com a vida e é deste envolvimento que sentimos a grandeza das coisas ínfimas:
“Aprendo com abelhas do que com aeroplanos
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
E um olhar para o ser menor, para o
Insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
Barata – cresce de importância para o meu
Olho.
Ainda não entendi porque herdei este olhar para
Baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
Machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
Coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
Tanto quanto as soberbas coisas ínfimas. (361)
* As imagens foram realizadas nas ocupações do centro liderados pela FLM e pelo MSTC.
Parabéns pela fotos e texto! Em que livro se encontram esses poemas maravilhosos do M Barros?