Nossas Américas, nossos cinemas

Ignorado pela mídia, encontro reúne no Ceará jovens realizadores da América Latina e define agenda avançada pelo audiovisual do continente

 

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Por Manfredo Caldas*

Durante quatro dias, de 23 a 26 de maio de 2012, na cidade de Sobral, sertão do Ceará, aconteceu um evento de grande significação histórica e cultural: o I Nossas Américas: Nossos Cinemas – I Encontro de Jovens Realizadores da América Latina e Caribe.

Ali estiveram reunidos jovens realizadores de quatorze países, incluindo representantes de povos originários, e jovens vindos de todos os Estados do Brasil. Também estiveram presentes cineastas, cineclubistas, produtores, distribuidores e exibidores alternativos e veteranos do cinema das Américas e do Caribe, de Geraldo Sarno a Humberto Rios, de Claudino de Jesus a Alícia Cano, de Lázara Herrera a Marta Rodriguez, de Saudhi Batalla a Mônica Charole, de Helena Ignez a Juliana Rojas, de Eric Rocha a Frederico Machado, de Michel Régnier a Kullyur Saywa, de Isabela Cribari a Carmen Rosa Vargas, de Ivan Sanjinés à minha pessoa.

Muitos países mandaram representantes das suas secretarias de audiovisual. A realização foi da Sereia Filmes e da Prefeitura de Sobral . O patrocínio veio da SAV e da Secretaria de Cultura do Ceará, com apoio do CNC, CBC, Interarte, SESC-Sobral e muitas outras instituições internacionais que financiaram a vinda dos jovens realizadores.

Pois bem, estes quatro dias foram intensos com projeção de filmes (Mostra “Novo Cinema Latino Americano”, com curadoria de Petrus Cariry, Mostra “Santiago Alvarez”, com curadoria de Lázara Herrera, Mostra “Grande Caribe” com curadoria de Rigoberto López e Mostra “Curta o Ceará”, com curadoria de Bárbara Cariry, além das mostras “Visualidades” e “Cinema de Forquilha”).

Existe uma cidade no sertão do Ceará, de nome Forquilha, onde coletivos de jovens realizaram mais de 15 longas digitais nestes dois últimos anos. São filmes tecnicamente precários, de baixíssimos orçamentos, mas de grande popularidade na cidade e na região. Aconteceram debates, palestras, oficinas e shows musicais com grupos locais e um show especial chamado “Nossa Américas” com a cantora cearense Myrlla Muniz, que interpretou grandes compositores da América Latina e do Caribe. Pelas ruas, desfilaram maracatus, bumbas-meu-boi, reisados e pastoris, numa bela manifestação das artes populares.

Todo este acontecimento, que reuniu mais de uma centena de pessoas da América Latina e do Caribe, afora a participação local, foi coordenado e dirigido por uma jovem cineasta e produtora de 24 anos: Bárbara Cariry, com articulação e apoio de outros jovens brasileiros e latino-americanos com destaque para Axel Monzú (Argentina), Luis Alberto Cassol (Brasil), Kuylluler Saywae Tobias (Equador) e David Hernandez Palmar (Colômbia) e o xavante Divino (Brasil) – estes três últimos, representantes dos povos originários. Bárbara Cariry, ao realizar um evento de tamanha grandeza, teve seu batismo de fogo e foi elogiada por todos, já que tudo funcionou muito bem, da formatação do encontro aos princípios de diversidade e do respeito às culturas, das mesas de debates às projeções, do transporte à alimentação.

Os jovens reunidos em Sobral, ao discutirem os princípios do encontro, declararam: ser jovem é um estado de espírito, e a solidariedade é o que nos uniu, independente das nossas idades, línguas ou culturas diferenciadas. Os jovens homenagearam os “avós” Geraldo Sarno e Helena Ignez (Brasil), Michel Régnier (Canadá), Lázara Herrara (Cuba), Humberto Rios (Argentina) e Marta Rodriguez (Colômbia).

Foi realmente um encontro de grande importância histórica, já que se trata do primeiro encontro desta natureza ocorrido em nosso país. Fiquei realmente muito contente com a solidariedade, o clima de amizade. Rosemberg Cariry e Tito Almejeiras (dois “avós” que ajudaram na articulação brasileira e latino-americana deste encontro, em Sobral, e muito lutaram pela sua realização) diziam a todos que ali se realizava um sonho de muitos anos e de muitas gerações.

O jornal O Povo, abriu manchete saudando “O Portunhol com sol a Pino”, chamando atenção para a comunicação dos jovens que falavam entre si, com ou sem ajuda de intérpretes, em uma aproximação das culturas. Dizia o jornal: “Para quem torce o nariz para esse híbrido de duas línguas, um aviso: se a informação chega ao seu receptor, pouco importa como ela foi transmitida. E se em quatro dias de intensa troca de informações, meios e, até, construção de identidade de uma América cinematográfica, a regra é se comunicar e criar laços”.

A segunda edição do evento acontecerá em Lima, no Peru e terá o patrocínio da Secretaria do Audiovisual daquele país, por intermédio da ação de Carmen Rosa Vargas, secretária do audiovisual daquele país.

As palavras mais usadas neste encontro, traduzidas em portunhol e outros línguas foram: povo, nação amiga, intercâmbio, solidariedade, cooperação, respeito, planeta terra, pacha mama, cinema, internet livre, democracia. Pela primeira vez, vi alguém chamando um velho cineasta de meu avô e pedir “caminhem conosco, ensinem-nos as sabedorias que aprenderam ao longo da vida. Vocês são nossos avós”. Foi a jovem índia Kuyllur Saywa, do Equador, que disse estas palavras que emocionaram a todos nós. Ficamos pensando na diferença daquilo que estávamos vivenciando com o debate audiovisual no Brasil atualmente, onde só se fala em mercado e em números, numa distorção profunda da vida e do sentido da arte e da possibilidade de encontro e de solidariedade entre os povos.

Na festa de encerramento do Nossas Américas: Nossos Cinemas, no sábado,foi lida a Carta de Sobral (leia abaixo) em línguas originárias aimará, guarani e quíchua. Também em línguas oficiais, espanhol e português, numa afirmação de respeito aos povos e à diversidade cultural. A plateia emocionada aplaudiu de pé. Para não mais me estender nestas palavras que traduzem um sentimento coletivo, recomendo que leiam e divulguem a histórica Carta de Sobral, solicitando que seja colocada em todos os blogs e redes de divulgação do nosso audiovisual.

Emocionado e bronzeado pelo sol do sertão, em nome de todos nós que vivenciamos o evento, envio os mais calorosos abraços latino-americanos e caribenhos.

Manfredo Caldas é cineasta

 

 

 CARTA DE SOBRAL

Nós, reunidos em Sobral, Ceará, Brasil, de 23 a 26 de maio de 2012, no marco do primeiro “Nossas Américas, Nossos Cinemas”, participamos do primeiro encontro de jovens realizadores da América Latina e Caribe, unindo 16 nações, promovendo um

intercâmbio entre gerações.

Entendemos a juventude como um estado de espírito em luta, sem preconceitos e aberto e nos reconhecemos como povos irmãos.

Este encontro tem, como objetivo, refletir, compartilhar experiências dos realizadores audiovisuais e gerar ações sobre a linguagem audiovisual, a comunicação, com o fim de manter vivo um movimento integrador da nossa “AbyaYala” (América Latina e Caribe).

Trabalhamos com as heranças milenárias herdadas dos povos originários, transmitida aos povos transplantados, brancos pobres e escravos africanos trazidos por barcos colonizadores, e reinventados pelos povos presentes neste encontro.

Reconhecendo e recusando a ditadura do mercado que oprime nossos povos e seus imaginários culturais, seguiremos os seguintes

Princípios:

1. Considerando a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, da Unesco, entre outros instrumentos internacionais que garantem a identidade e diversidade cultural a partir da produção cultural, entendemos a realização audiovisual como um direito humano;

2. Exigir e proteger a plena vigência do direito à linguagem cinematográfica e audiovisual dos nossos povos, promovendo legislações que o garantam a cada uma de nossas nações;

3. Entendemos o audiovisual como um fato político e artístico de ressignificação e transformação sociocultural;

4. Apoiar os direitos do público com base nos conceitos marcados pela Carta de Tabor (1987), criada pela FICC (Federação Internacional de Cineclubes), para a formação de públicos pela ação dos cineclubes e das salas de cinema cultural, também apoiando e difundindo o dia 10 de maio como o dia do público;

5. Garantir a alfabetização e educação audiovisual dos nossos povos, na sua dimensão artística e política, encorajando a leitura crítica dos meios de comunicação;

6. Exigir o direito a livre comunicação, informação, expressão e acesso aos meios audiovisuais para todos os povos da

América Latina e do Caribe;

7. Defender o espectro radioeletrônico e a internet como bens públicos comunitários com a finalidade de preservar o espaço da comunicação sem censuras, tendo como referência a Ley de Medios y Servicios de Comunicación Audiovisual, da Argentina, e a nova Ley de Telecomunicaciones, da Bolívia. Também nos declaramos abertamente contra o projeto “ACTA”, a lei “SOPA” e qualquer outro ato que ameace a liberdade de expressão dos povos e nos propomos a fomentar o uso das licenças creative commons e bases

operativas como o linux e outros softwares livres;

8. Acompanhar e estimular os processos já existentes na organização do setor audiovisual, que compartilhem os mesmos princípios levantados por essa Carta, e recomendar a sua criação a níveis locais, regionais e nacionais, onde não existam;

9. Exigir dos Estados garantias constitucionais para os realizadores que sofrem perseguição e ameaças a sua integridade física e intelectual. Exigimos o tratamento especial diferenciado do realizador e realizadora audiovisual, da mesma forma que recebem os jornalistas com relação à proteção e reserva das suas fontes;

10. Incrementar espaços e oportunidades de acesso à informação e capacitação integral, bem como tecnologias já existentes e por serem inventadas, com o fim de garantir o direito de produção e circulação do audiovisual dos povos da América Latina e do Caribe;

11. Promover mecanismos de fomento, sustentabilidade e continuidade dos processos de produção audiovisual dos povos da América Latina e do Caribe;

12. Promover a integração cultural latino-americana e caribenha, respeitando a nossa diversidade cultural com o fim de exercer um processo de compreensão de uma identidade comum;

13. Fomentar o pensamento, trabalho e tomada de decisões de maneira coletiva, respeitando as particularidades e construindo nossos laços com base na transparência e horizontalidade;

14. Estabelecer a regularidade e itinerância deste espaço, de caráter aberto em “AbyaYala”, com rotatividade dos representantes, que devem socializar localmente os debates levantados nos encontros;

15. Instituímos a rede virtual como meio válido de vinculação e discussão;

16. Defendemos a liberdade criativa de formatos e estéticas na linguagem audiovisual, respeitando e fomentando a diversidade dos imaginários culturais dos nossos povos e nações latino-americanos e caribenhos, não permitindo nenhuma hegemonia estética imposta;

17. Promover a solidariedade, a cooperação e o trabalho associativo entre os nossos povos;

18. Promover a produção audiovisual com atitude critica e superadora sobre os nossos imaginários, realidades, histórias, espaços comuns, semelhanças e contradições;

19. Gerar uma interação direta entre as produções audiovisuais e os públicos, por meio de todos os formatos e linguagens existentes e por serem criados;

20. Fomentar o uso das línguas ancestrais dos povos originários, e dialetos da América Latina e do Caribe para ampla difusão dos conteúdos audiovisuais produzidos pelas comunidades, tendo como referência o artigo 16 da “Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas” e outros instrumentos internacionais;

21. Convocar para este espaço as nações e povos hoje ausentes neste encontro, procurando a integração e representação de todos os povos e nações que habitam os países da América Latina e do Caribe;

22. Reconhecer como válida a experiência e formação não-acadêmica, acreditando na importância dos conhecimentos vivenciais nas áreas não-pedagógicas;

23. Fortalecer o eixo fundamental dos espaços de formação e capacitação acadêmicos e não-acadêmicos, de realizadores audiovisuais, no exercício da memória e história de nossos povos;

24. Cremos importante gerar o intercâmbio e distribuição de obras audiovisuais traduzidas nas línguas faladas no nosso continente. Nesse sentido, comprometemo-nos, de forma colaborativa, a traduzir, dublar e legendar as obras audiovisuais e documentos que produzirmos;

25. Este processo não obedece a interesses político-partidários. Sendo este grupo multinacional, composto por diversos setores da sociedade civil, entidades governamentais, grupos prontos ao debate e à recomendação de propostas de políticas públicas para o audiovisual e à comunicação dos nossos povos.

Ações:

Decidimos pela criação de diversos grupos de trabalho responsáveis pelas seguintes ações:

Comunicação:

1. Criação e manutenção de uma lista de comunicação via internet. O moderador da rede se alternará em cada um dos encontros;

2. Criação de um portal;

3. Criação de um boletim eletrônico mensal.

Intercâmbio e Residência Audiovisual:

1. Formar um grupo de coordenadores, um em cada país, para o desenvolvimento desta experiência na América Latina e no Caribe, com o compromisso de criar uma lista de anfitriões e residentes;

2. As modalidades de residência serão definidas pelas partes envolvidas caso a caso.

Declarações:

1. Declaramos nosso apoio à promulgação da nova lei cinematográfica e audiovisual do Peru, por parte das instituições de que participamos neste encontro, e o faremos, formalmente, por meio de uma carta;

2. Manifestamos o apoio à criação e aplicação das leis de cinema e audiovisual que estão sendo debatidas no Paraguai, atualmente em etapa de construção;

3. Expressamos nossa preocupação e exigimos de nossos governos cessar a guerra, o genocídio e a perseguição infligidos aos povos indígenas e afrodescendentes da Colômbia, e deter a onda de violência vivenciada em países como México que limitam o livre desenvolvimento dos direitos a justiça e a comunicação democrática;

4. Apoio à continuidade e permanência da Jornada de Cinema da Bahia, encontro que já tem 40 anos de atividades e que corre o risco de não se realizar este ano. Ressaltamos que, no seu contexto, nasceu a Lei do curta-metragem no Brasil e a Associação Brasileira de Documentaristas;

5. Apoiamos a realização do encontro Cariri / Caribe;

6. Saudamos a designação de 2012 como “Ano Internacional da Comunicação Indígena” e a celebração do XI Festival de Cinema Indígena de cineastas dos povos originários, na Colômbia, em setembro deste ano;

7. Expressamos nossa profunda preocupação diante do próximo Encontro de Desenvolvimento Sustentável Rio+20, diante da forma autocrática como foi definida sua agenda em muitos casos, e diante do fato de os acordos tomados pelos presentes governos comprometerem gerações presente e futuras;

8. Solidarizamo-nos com o fim do bloqueio a Cuba;

9. No mês de novembro deste ano, realizaremos uma reunião na Tríplice-Fronteira, na cidade de Iguazú, Misiones, Argentina, com a finalidade de preparar o segundo encontro de Jovens Realizadores da América Latina e do Caribe, a ser realizado em 2013, no Peru.

Sobral, Ceará, Brasil, 26 de maio de 2012.

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