A possível descoberta da Astropedagogia

O que o Zodíaco das Faculdades do Conhecimento, construído pela grande filosofia árabe do século XIII pode nos dizer sobre possíveis caminhos para superar as crises da Educação, do Indivíduo e da Racionalidade?

Horóscopo do Príncide Iskandar, por Imad al-Din Mahmud al-Kashi,
do Livro do Nascimento de Iskandar (ca. 1384)
.

“As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa.” (1)

“Os outros saberes, não científicos nem filosóficos, e, sobretudo, os saberes não ocidentais, continuaram até hoje em grande medida fora do debate. (…) Da minha perspectiva, para haver mudanças profundas na estruturação dos conhecimentos é necessário começar por mudar a razão que preside tanto aos conhecimentos como à estruturação deles. Em suma, é preciso desafiar a razão indolente. (…) Do mesmo modo, a presença ou relevância dos antepassados em diferentes culturas deixa de ser uma manifestação anacrônica de primitivismo religioso ou de magia para se tornar uma outra forma de viver a contemporaneidade.” (2)

Uma querida amiga me conta que tem ouvido sistematicamente conversas sobre Astrologia nos corredores do departamento de Filosofia da FFLCH, na USP. “Da FFLCH?”, pergunto-lhe estarrecida. E ela me responde com um sonoro “Sim!”.

Não possuo o instrumental sociológico para examinar com rigor essa moda (será só moda?) entre futuros filósofos, no entanto, ocorre-me que o fato pode conter aspectos de grande e bem-vinda relevância. Sem realmente compreender a fundo do que se trata, aproveito para tratar desse espinhoso tema no campo teórico ao qual dediquei os últimos 38 anos de pesquisa (alguns dos quais, inclusive, em mestrado, doutorado e dois pós-doutorados na própria FFLCH): o da Filosofia da Educação.

Meu contato com a Astrologia antiga começou por meio de Muhyiddin Ibn ‘Arabî, um dos mais influentes pensadores do século XIII, que nasceu na Península Ibérica, no período conhecido por al-Andalus, quando vimos nascer uma das civilizações mais profícuas da História. Em seu livro “Clé spirituelle da l’astrologie musulmane d’après Muhyiddin Ibn ‘Arabî3, Titus Burckhardt expõe brevemente – em apenas 60 páginas – os principais fundamentos dessa ciência medieval, tal como concebida por aquele que passaria a ser conhecido após sua morte como o Doctor Maximus do Sufismo, a via de conhecimento nascida no Islã e que hoje começa a ser mais e mais estudada nas universidades do mundo todo. (4)

O livro é extremamente complexo e exige familiaridade com os termos de referência tanto da obra de Ibn ‘Arabî quanto do pensamento da época. No entanto, ele fornece um material que, em minha pesquisa, tornou-se essencial.

Antes, porém, de tratar da questão, quero abrir um parêntesis para falar teoricamente da Astrologia moderna. Ainda não logramos uma base epistemológica que permita legitimar cientificamente essa, por enquanto, pseudociência – e, fique claro, não me refiro aqui a uma legitimação por parte de um certo tipo de concepção de ciência para a qual nem mesmo a Psicanálise ou a Homeopatia podem considerar-se ciências. Refiro-me a um pensamento rigoroso que dê conta de seus pressupostos no nível de exigência do Pensamento contemporâneo, de modo a abarcar as complexidades pós-modernas. Além disso, desconheço, por parte daqueles que, como eu, pretendem encontrar vias possíveis para esse conhecimento, um trabalho de crítica ideológica, no sentido marxista do termo, e de questionamentos das formações discursivas próprias de alguns fundamentos conceituais propostos por astrólogos e simpatizantes.

Se, do ponto de vista teórico, a Astrologia moderna carece de legitimidade, do ponto de vista de sua prática, o problema, parece-me, é ainda maior. Sem citar extensamente algumas barbaridades que ouvi de relatos de consultas astrológicas – as famosas “leituras de mapa astral” – ao longo desses tantos anos de pesquisa (porque, de resto, também já ouvi – quem não? – barbaridades ditas por psicanalistas e psicólogos com diploma na parede), escolho aqui considerar a seguinte questão: qual seria a técnica oriunda da epistemologia astrológica?

O divã na análise freudiana, ou o tempo lógico na lacaniana, correspondem a demandas técnicas necessárias a partir da teoria. Qual seria então a técnica astrológica da leitura do mapa astral? Não há. O astrólogo simplesmente diz o que “lê”, na língua do seu “cliente”, como se não soubéssemos o quanto aquilo que se diz nunca é aquilo que se escuta, o quanto o “saber” sobre o outro é problemático em muitos aspectos, o quanto qualquer leitura, em qualquer campo, está impregnada pelo lugar de onde fala o leitor e, portanto, não há leitura “sobre” ninguém além dele mesmo, a não ser que esse fato seja levado em consideração pela técnica. Alguns meses atrás uma astróloga disse a uma cliente que, caso ela não tomasse ayahuasca com urgência, ela teria uma forte crise de ansiedade “no segundo semestre desse ano”. Cito só esse pequeno exemplo para que o leitor tenha uma ideia da gravidade do problema. (5)

Fecho o parêntesis com uma última observação. Não se trata aqui de pregar contra a Astrologia moderna, ou contra sua prática, como se eu quisesse estabelecer um novo tipo de fundamentalismo. Meu pensamento é crítico, portanto seu propósito é liberador e emancipador. Tirar como consequência qualquer premissa violenta, de invalidação ou de negação a priori do trabalho de outros, conta com a minha mais veemente discordância.

O presente artigo não pretende avançar na discussão epistemológica, para a qual remeto o leitor ao último capítulo de minha dissertação de mestrado (6). O que me interessa aqui é a perspectiva pedagógica, que pretendo apresentar mencionando dois aspectos dessa complexa questão. O primeiro aspecto refere-se às faculdades de conhecimento. O segundo será tratado num próximo artigo.

De modo breve e bastante simplificado apresento aqui o Zodíaco das faculdades de conhecimento (7). Combinando 4 funções cognitivas básicas a 3 tipos de “totalidades” temos 12 faculdades de conhecimento:(IMAGEM)

Teremos então, três tipos de intuição, três tipos de sensação, três de pensamento e três de sentimento. Nesse contexto, tanto o pensamento quanto o sentimento, por exemplo, são “faculdades de conhecimento”, portanto, representam formas de abordagem da realidade.

Se compreendemos que essa estruturalidade (8) funciona por meio da analogia – conhecido procedimento medieval – podemos ver que qualquer coisa – qualquer ideia, experiência ou objeto – “cabe” nesse círculo.

Articular e integrar conhecimentos é atualmente um dos grandes temas da Pedagogia em sua busca por interdisciplinaridades. Porém, se integrar e articular pressupõem a ideia de um todo no qual tudo se integra e se articula, encontramos-nos diante de um interessante problema. Com Foucault, aprendemos a abandonar o pressuposto de uma totalidade causal e explicativa e passamos a pensar as coisas a partir de um “poliedro de inteligibilidade”, por vezes claro e evidente, por vezes opaco e angustiante. Com a Psicanálise, aprendemos a suportar o “não-todo” e a acolher a demanda da neurose que necessita mascará-lo com totalidades imaginárias.

No contexto aqui trabalhado, é preciso então deixar claro de antemão que, para Ibn ‘Arabî (ou para o Sufismo de um modo geral), não se trata de buscar uma multidisciplinaridade inteiramente racional, que seja explicativa e que almeje a “completude”. De fato, o procedimento no Sufismo é totalizante e visa a totalidade, porém, não é nem causal, nem explicativo, nem totalitário. Tampouco, insisto, é estritamente racional.

Com Boaventura, começamos a pensar em uma ecologia de saberes e aqui, sim, podemos pensar o zodíaco das faculdades cognitivas quase que inteiramente como uma “resposta” à proposta da ecologia de saberes. Comecemos com esta última.

É próprio da epistemologia da ecologia de saberes não conceber os conhecimentos fora das práticas de saberes e estas fora das intervenções no real que elas permitem ou impedem. Por esta razão, as práticas sociais e os agentes em que se plasmam as práticas de saber têm também de caber no espectro do perguntar epistemológico. A pragmática da epistemologia justifica-se porque aos oprimidos interessa sobretudo uma epistemologia de consequências. São elas que determinam a necessidade ou até a conveniência de a complementar com uma epistemologia de causas. (9)

Se a prática fundamental da analogia é conectar experiências, a ideia expressa na citação cima, de uma concretude no sentido marxista do termo, ganha uma nova abertura. Imaginemos a seguinte situação: um grupo está construindo uma horta sintrópica. Estão, nesse momento, plantando as primeiras bananeiras que, ao crescerem, fornecerão tanto bananas quanto água para outras plantas. Também estão dispondo os eucaliptos que fornecerão matéria orgânica para a horta e mandioca para afofar a terra para as outras raízes crescerem mais facilmente. O João está cansado e com dores nas costas, mas isso não tem nada a ver com o trabalho. A Antônia acaba de ter uma ideia para um quadro que está tentando pintar, mas isso não tem nada a ver com o trabalho. Ângela está se separando, mas isso não tem nada a ver com o trabalho. Zé está pensando em sua flauta, mas isso não tem nada a ver com o trabalho. Dolores está com o pé machucado, mas isso não tem nada a ver com o trabalho.

De que modo lidamos com todas essas coisas que não têm nada a ver com o trabalho? Ou são experiências que passam, ou coisas que contamos aos outros, muitas vezes sem saber por que, ou são coisas que calamos, simplesmente. Ou etc. Mas, e aqui recupero uma pergunta marxista por excelência: por que não têm nada a ver com o trabalho? E se tiverem? Ou, dizendo de um modo contemporâneo: e se o trabalho for uma linguagem enquanto outras experiências forem igualmente linguagens de modo que tudo é traduzível entre si? Parece pueril? Que nem conversa de índio? Sim, é disso que se trata.

Na medicina chinesa, um mesmo ponto do corpo onde uma agulha pode ser colocada pode servir para melhorar o fígado, tratar a raiva, promover a revisão de ressentimentos antigos, abrir para uma síntese intelectual que estava faltando, etc., etc.


De modo análogo, o trabalho agroflorestal – como qualquer tipo de trabalho – pode dar voz – ou dar forma – a alguma experiência particular, pessoal e, muitas vezes, interior da pessoa que está trabalhando nessa terra que é, numa expressão sufi que vem a calhar, a sua “terra natal”.

A conexão analógica é um recurso técnico-imaginativo para trabalhar em níveis, como na acupuntura, na homeopatia, na medicina ayurvédica, nos tratamentos com ervas feitos por pajés antigos e atuais.

Não se trata, é preciso assinalar, de uma crença de que as coisas estão conectadas (10). Trata-se de uma utilização de uma propriedade da linguagem – a analogia – para estabelecer conexões e tirar proveito disso.

Um dos proveitos é a integração entre saúde, educação e trabalho, ou, em outras palavras, um recurso para integrar nas práticas atuais um conhecimento antigo presente em todas as ciências pré-modernas.

Em uma pequena síntese que corre o risco de parecer simplificadora: uma mesma faculdade cognitiva pode ser aprendida e desenvolvida por meio de uma série analógica que envolve práticas na terra, leituras, sentimentos, pensamentos, conversas, arte ou ciência. Por exemplo: a “sensação espiritual” compreende, entre outras, uma série analógica que conecta o intestino, a fisiologia, a crítica (entendida como a separação entre o “joio e o trigo”, como faz o intestino, que separa os nutrientes daquilo que deve ser descartado), a harmonia (entendida como articulação sofisticada entre diferentes), a saúde, a ciência, a inteligência, a capacidade organizativa, a ciência da cura, etc. Ela está analogicamente ligada ao ressentimento, fruto da frustração pelo malogro de uma busca de harmonia.

Se tratarmos a questão a partir da chamada causalidade eficiente – o sistema de causa e efeito a que estamos habituados –, seremos levados a apoiar uma crença infelizmente muito comum em certos meios: a de que uma ação externa, por exemplo, um trabalho na terra, pode curar um sintoma interno, por exemplo um problema intestinal ou a dor de um ressentimento. Não é disso que se trata. Estamos tratando de analogia, não de causa e efeito. A analogia não visa estabelecer “uma verdade”, ela é uma operação linguística que possibilita aos sujeitos conectar afetos, pensamentos, imagens, memórias, etc. a fim de criar aberturas, possibilidades, visão holística, flexibilidade – em vez de certezas abstratas, sentimentos repetitivos, pobreza imaginativa, etc.

A escolha de trabalhar com exemplos deve-se ao fato de que a formulação estritamente filosófica torna-se muito árida para um artigo. Portanto, não nos apressemos em tirar conclusões. Estamos apenas começando. Ainda há muito a explorar sobre as consequências implicadas neste instrumental.

Passemos a um outro conjunto de questões.

Se uma criança aprende mais facilmente por meio de uma faculdade emocional, nós podemos começar dialogando com ela por meio dessa faculdade e, aos poucos, ir trabalhando outras faculdades. E é possível fazer isso com a classe toda, conforme formos criando programas que contemplem diversos arranjos dessas faculdades, de modo que os alunos participam contribuindo com as faculdades com as quais se sentem mais familiarizados, para, num processo orgânico, ir desenvolvendo a capacidade de aprender outras faculdades com seus companheiros.

Ou seja, temos uma questão muito importante para os educadores: podemos oferecer tanto às crianças quanto aos adultos, caminhos diferentes para aprender e, ao final, chegar aos mesmos lugares que alguns chegam normalmente por meio das faculdades racionais. Só que isso representa uma grande ampliação do nosso repertório.

Vejamos outro tipo de exemplo.

O que é o pensamento corporal? É o pensamento que funciona como o corpo. No corpo, todas as informações são compartilhadas em tempo real num sistema completo de feedback. Tudo se conecta com tudo, a ponto de alguns neurocientistas dizerem que o cérebro é o corpo todo. Analogicamente, esse pensamento é o que o Edgar Morin chama de Complexidade, ou o que o Derrida descreveu como sendo “combinações infinitas na clausura de um conjunto finito”. É, como o leitor já deve ter imaginado, o pensamento em rede, a internet, e é também a globalização. É o pensamento holístico, a sustentabilidade e a agrofloresta. É a medicina chinesa. Trata-se de um tipo de pensamento que muitas crianças já dominam para espanto de seus pais, embora, muitas vezes, a escola possa parecer atuar de modo a atrapalhar o seu desenvolvimento. O nosso modo habitual de ensinar matemática é por meio da faculdade do pensamento espiritual (que contém em sua série analógica o raciocínio silogístico), mas como seria, por exemplo, ensinar matemática de um modo holístico, isto é, por meio do pensamento corporal? Alguns educadores já estão propondo isso (sem, obviamente, usar a terminologia que estou utilizando aqui).

Nesse caminho, podemos propor uma multidisciplinaridade muito radical: por exemplo, normalmente consideramos que uma coisa é aula de geografia, outra coisa é aula de ginástica, numa trabalhamos com a mente, noutra com o corpo. Mas por que não podemos aprender geografia com o corpo e ginástica com a mente?

Uma criança gosta de contar estórias, outra gosta de ficar no seu canto em silêncio imaginando coisas, outra gosta de conversar na aula. Para cada uma dessas atividades, cada criança está usando uma faculdade de conhecimento. E se nós agora fôssemos trabalhar a geografia utilizando todas as faculdades? Como ficar em silêncio num canto ou contar estórias ou conversar na aula pode ser uma forma de aprender geografia?

Uma outra coisa muito interessante desse conjunto de faculdades é que quando alguém usa o conjunto todo e aprende a fazer combinações dentro dele, obtém resultados de alta qualidade.

Podemos fazer uma tese, por exemplo, usando conscientemente todas essas faculdades, isso pode tanto facilitar o seu trabalho quanto torná-lo muito mais completo e vigoroso – na verdade, os grandes trabalhos já possuem essa característica de usar várias dessas faculdades em conjunto, ainda que, novamente, seu autor não utilize tal terminologia.

Ou é possível usar esse conjunto para projetar e construir uma casa. Imagine um projeto de casa que leve em conta tantas abordagens e necessidades diferentes. Ou criar uma coreografia, ou fazer um roteiro de filme. Ou montar um curso. Ou planejar uma vida. Ou, melhor ainda, aprender a aprender com a vida, sem planejamento…

Outra coisa fundamental desse conjunto de faculdades é a seguinte: grande parte dos desentendimentos entre as pessoas vem do fato de que elas usam faculdades diferentes para olhar o mundo e para agir nele. Quando podemos ser conscientes das estruturas que cada um está utilizando, podemos perceber que muito do que parecia uma imensa discordância, na verdade, é uma diferença de abordagem.

Em uma conversa com o admirável e muito querido Paul Singer, ouvi dele o lamento de que, em inúmeras iniciativas coletivas, de gente com excelente propósito, depois de um tempo, as pessoas se desentendem e o trabalho se interrompe. Esse é um grande mal do nosso tempo.

Quando compreendemos que é possível abordar as questões de maneiras muito diferentes, então, não é que a gente passa a falar a mesma língua, (o que seria uma redução, uma homogeneização e, portanto, um rebaixamento de possibilidades). Muito mais real e concreto é que todos possamos falar diversas línguas e nos entender de fato, o que é uma outra maneira de falar em ecologia de saberes.

Portanto, esse conhecimento permite que as pessoas possam trabalhar efetivamente em conjunto. Vi isso acontecer de muitas maneiras ao longo de mais de 30 anos de pesquisa. Do ponto de vista da construção de um espaço público concreto – que, em nossa proposta, passamos a designar como “espaço público simbólico” – esse entendimento entre as pessoas também deve ser observado em muitos níveis.

O uso da astrologia antiga como instrumento pedagógico pode ser visto como um caleidoscópio, de infinitas combinações: o processo de aprendizagem transita entre o singular e o total, o que é de cada um e o que é de todos ao mesmo tempo. O que nos permite tomar a forma que cada situação exige e sermos profundamente flexíveis uns com os outros.

Outro exemplo: estamos habituados com a ideia de que possuímos uma identidade. Embora o pensamento contemporâneo já tenha criticado essa ideia de inúmeras maneiras, o senso comum parte do princípio de que é natural pensar que cada pessoa possui uma identidade ou uma personalidade, adquirida desde cedo e que, em certa medida, nunca muda inteiramente. Podemos melhorar ou transformar alguns aspectos, mas dificilmente acreditamos que podemos um dia mudar tão completamente a ponto de nos tornarmos “outra pessoa”.

Sendo assim, muitos de nós ficariam surpresos ao descobrir que essa ideia não é tão natural assim e que, na verdade, ela está presente, desse modo, apenas na nossa cultura e a partir de um certo momento na História. Outros povos, em outros tempos, não pensavam desse modo. A citação que coloquei na epígrafe desse artigo é uma das incontáveis maneiras de pensar os homens fora do registro identitário: “As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa”.

Todo um portal de novas questões abre-se diante de nós quando levamos a sério a dimensão política do problema, especialmente esta, discutida por Judith Butler:

Se as identidades deixassem de ser fixas como premissas de um silogismo político, e se a política não fosse mais compreendida como um conjunto de práticas derivadas dos supostos interesses de sujeitos prontos, uma nova configuração política surgiria certamente das ruínas da antiga. (11)

Se não somos “sujeitos prontos”, se, como diz Riobaldo, “as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas” (12), ou se, no dizer de Hampaté Bâ, “Nunca se acaba de conhecer Maa…” (13), isso não significa que somos massa informe, desprovidos de singularidade ou de lugares simbólico-políticos. Podemos, sim, assumir formas, isto é, se tomarmos como perspectiva o trânsito livre pelas linguagens e suas implicações, em permanente diálogo com o Outro, resgataremos um sentido pouco explorado da noção antiga de que o homem é um “universo em miniatura” (14). O Zodíaco das faculdades de conhecimento é esse universo, tudo está contido nessa estrutura. Nesse sentido, uma consequência que as pessoas normalmente se esquecem de tirar dessa ideia de que o homem é um “microcosmos” (para usar o conhecido termo medieval), é que o outro também é um “universo inteiro”.

Estar diante de outra pessoa é poder perceber os mais variados usos de faculdades diferentes de conhecimento e, com isso, já não se trata apenas de respeitar o outro mas também de aprender com ele.

Quando a escola for um lugar em que experimentamos que os outros são universos inteiros, cheios de modelos próprios de conhecimento, muito diferentes do nosso mas, ainda assim, perceptíveis, compreensíveis e comunicáveis, e que cada um pode ser sempre diferente, talvez possamos passar para um outro patamar, no qual ninguém tem mais interesse em afirmar sua identidade, muito menos em impor seu próprio funcionamento aos outros. Ao contrário, todos saberemos que podemos sempre mudar de forma e assumirmos outras perspectivas. E, em vez de uma escola que prepara para o mercado teremos uma escola que prepara para o Outro. Então talvez possamos re-avaliar a dimensão do que diz Ibn ‘Arabî, neste que é um de seus mais famosos poemas:

“Meu coração tornou-se capaz de qualquer forma, pasto para gazelas e convento para o monge

e um templo para ídolos e Ka’aba para os peregrinos

e as tábuas da Torah e o livro do Corão.

Eu sigo a religião do Amor: por onde forem seus camelos,

eis minha religião e minha fé.” (15)

Notas

1 Bâ, Amadou Hampâté, A noção de pessoa entre os fula e os bambara, Revista Thot, n. 64, 1977 (texto originalmente editado em francês como capítulo do livro Aspects de la Civilization Africaine, Paris, Présence Africaine, 1972).

2 Boaventura de Sousa Santos, Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências, Revista Crítica de Ciências Sociais, n.63.

3 Ed. Archè Milano, 1974.

4 Para uma introdução ao Sufismo e à obra de Ibn ‘Arabî: Michel Chodkiewicz, Le Sceau des Saints, Gallimard, 1986, Idries Shah, Aprender a Aprender, Ed. Tabla, 2017.

5 Esclareço, ainda que óbvio, que o prolema não está na ayahuasca e sim na quase imposição de uma ação terapêutica para um problema que acaba de ser criado por um outro (a astróloga)! Se já é um problema epistemológico crer (e dizer!) que um sintoma vai necessariamente “acontecer”, que dirá a indicação de uma terapia conforme o sistema de crenças do próprio astrólogo.

6 Sentidos do Caleidoscópio – uma leitura da Mística a partir de Ibn ‘Arabî, Humanitas. Trata-se de uma discussão bastante incipiente, limitada pelo pequeno escopo de uma dissertação.

7 Para operar uma “tradução” da perspectiva de Ibn ‘Arabî para um sistema minimamente próximo dos nossos dias, adotei parte da terminologia proposta por Arnold Kyeserling, ele também um estudioso do Sufismo, embora meu trabalho tenha se distanciado bastante das formulações desse filósofo alemão.

8 Tomo esse termo no sentido com que Derrida o concebeu.

9 Boaventura de Sousa Santos, A gramática do tempo, Ed. Cortez, 3a. Ed. 2017, p. 164.

10 Evidentemente, em diversas épocas, em diversas culturas, havia pessoas para quem tal possibilidade traduzia-se em uma crença, o que é diferente de afirmar que se tratava de uma crença. Os sufis, por exemplo, afirmam explicitamente que se trata de uma técnica.

11 Judith Butler, Gender Trouble, Routledge, 1990, p. 149.

12 “O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão”. João Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas, p. 20-1.

13 “O psiquismo do homem é, portanto, um conjunto complexo. Como um vasto oceano, sua parte conhecida não é nada comparada à ainda por conhecer. O ditado malinês é eloqüente a esse respeito: ‘Nunca se acaba de conhecer Maa…'”. A noção de pessoa entre os fula e os bambara, op. cit., nota 1.

14 Amadou Hampaté Bâ, idem, ibidem.

15 Ibn ‘Arabî, Tarjuman al-Ashwaq, XI, 13-15, trad. Nicholson, Theosophical Publishing House Ltd., London, 1978, p. 67.

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7 comentários para "A possível descoberta da Astropedagogia"

  1. Oslav disse:

    Os outros posts do blog parecem ser muito interessantes.
    Mas devo dizer que este é realmente uma decepção, perdão pelo uso do termo.
    Ele está repleto de um academiquês entranhado que não tem outro sentido senão a confusão de conceitos, a dificuldade de dialogar e justificar uma série de generalizações e argumentos críticos vazios. Em certos momentos parece que o que a autora implica é que qualquer coisa pode ser dita que será verdadeiro.
    O intuito, perceptível ao final, é muito digno, o de explorar diferentes formas de apreensão do conhecimento múltiplas como ferramenta pedagógica. É possível chegar a isso sem apelar aos trocentos assuntos periféricos que permeiam o texto, sem obscurantismo e sem criticar o fazer científico.
    Sem falar no título que nada agrega ao assunto. Astrologia é um assunto abordado cientificamente, sim. Mas geralmente para confirmar que essa não é uma via decente de conhecimento da verdade, que me perdoem os saberes antigos.
    O obscurantismo é capaz de fazer quase qualquer coisa parecer interessante, mesmo que o leitor depois não consiga refletir sobre o que foi lido de maneira decente. É realmente uma ferramenta pérfida, que, não me entenda mal, não quero dizer que foi intencional, muito menos tenho a intenção de puramente denegrir a autora, mas distancia o pensamento sério da academia das pessoas em geral e corrói qualquer possibilidade de diálogo.

  2. Celina disse:

    Muito obrigada pelo artigo, que ilumina e norteia possibilidades de pensar/sentir/agir. Além das referências históricas, tão ricas.

  3. Lucas disse:

    Muito obrigado por compartilhar esse valioso trabalho Bia, parabéns, está belo e profundo como sempre!

  4. João disse:

    Não, quem perde o respeito é você com esse tipo de comentário.

  5. Fernanda D' Angelo disse:

    Bia Machado maravilhosa. Sua palavra é ouro! Obrigada por compartilhar.

  6. Prezada Bia, superinteressante a problemática abordada. Creio que os neurólogos Roger Sperry e Paul MacLean respondem, em parte, a seus questionamentos. Se me permite, sugiro que veja minha página http://www.triadicmind.com e, se quiser saber algo mais, veja meu livro Construção Familiar-Escolar dos Três Cérebros (como está esgotado, talvez possa adquiri-lo na http://www.estantevirtual.com.br). Apreciaria muito continuar esse diálogo com você.
    Beijos,
    Waldemar De Gregori

  7. John disse:

    AFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF ESSE BLOG PERDE TODO O RESPEITO COM ESSE TIPO DE ARTIGO IDIOTA.

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