A complexa arte da simplicidade de Satyajit Ray

Homenageado na Mostra Internacional de SP, cineasta indiano foi na contramão de Bollywood. Viu nisso uma resistência cultural a partir da intrínseca relação humano-Natureza. E abordou a miséria do país de forma crítica, sem romantismos ou clichês de tristeza

Satyajit Ray em A Esposa Solitária (1964)
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“Nunca ter visto um filme de Ray é como nunca ter visto o sol ou a lua”

A frase acima, atribuída a Akira Kurosawa, resume bem a importância da obra de Satyajit Ray para a história do cinema. O cineasta indiano, que não lembra em nada o exagero de Bollywood, é o homenageado da Mostra Internacional de São Paulo deste ano.

Seu primeiro filme e talvez o mais conhecido é “Pather Panchali” ou “A Canção da Estrada” de 1955. Usando não-atores ao estilo do clássico “Ladrões de Bicicleta”, que o diretor tanto gostava, o cineasta procurou se ater à estética naturalista e seguir a vida de uma família muito pobre pela província de Bengali. Esse é também o primeiro filme do conjunto de obras que ficou conhecido como trilogia de Apu, dos quais também fazem parte “O Invencível” e “O Mundo de Apu”.

Segundo contou em uma entrevista, Ray, que era publicitário e portanto estava acostumado a trabalhar em estúdios com luz controlada e sem intervenção do mundo externo, decidiu que seu cinema seria o oposto de toda a parafernália industrial, até porque esse seria o único jeito de viabilizar financeiramente seus filmes também.

O subdesenvolvimento industrial, tomado como fato ao invés de como falta, ajudou a criar uma nova forma estética e, como toda boa arte, serviu para tornar o invisível parte do vocabulário visual do mundo, colocando na tela aqueles para quem a hegemonia jamais olharia por conta própria. Ray foi um dos pioneiros da nova vanguarda do cinema do sul global e se dispôs a falar em e por seu país ao invés de esperar pela produção estrangeira.

A escolha por filmar ao ar livre, por exemplo, trouxe a fusão entre as emoções representadas pelos atores e os elementos naturais, Ray incorporou ventos e chuvas em seus filmes como metáfora para as aflições e felicidades de seus personagens. Além disso, serviu para reforçar a relação intrínseca entre indígenas e natureza em contraposição ao universo urbano industrial.

Mesmo com menos recursos, a imaginação de Ray não tinha limites e suas soluções visuais sempre foram criativas e divertidas, como na cena de “Pather Panchali” em que ele anuncia a chegada da chuva pela careca de um senhor.

A obra não poderia ser mais oposta à megalomania clássica de Bollywood, o que faz o espectador atual lembrar como a simplicidade já foi mais valorizada no cinema. A vanguarda não fazia questão de se equiparar ao complexo industrial hollywoodiano, mas ao contrário, pretendia criar um universo próprio com as ferramentas que tivesse à mão.

“Pather Panchali” também fala da condição feminina, assunto que, aliás, será tratado em outros filmes de Ray, como em “A Esposa Solitária”, um drama burguês com ares de novela flauberiana pudica onde a traição se dá no intelecto e não na carne. Já em sua primeira obra, a mulher é oprimida pelo isolamento na casa e pela falta de recursos que seu marido, um poeta sonhador, nunca se preocupa em garantir.

O filme também fala muito da pobreza, da miséria sem romantismo, nem redenção, sem final feliz e nem “vencer na vida”. O que não quer dizer que ele seja triste o tempo todo, pois se a pobreza é indefensável, a relação indígena com a natureza e a amizade na infância, trazem para a tela o tipo de beleza simples e universal com a qual é impossível não se emocionar.

É senso comum dizer que as imagens reduzem, desumanizam e padronizam, mas a real pergunta é: qual imagem? Como criar universos visuais que aproximem ao invés de estereotipar? Como construir uma imagem, que ainda que mecanizada e com potencial para ser reproduzida milhares de vezes, ainda possa ampliar e não reduzir imaginários?

Satyajit parecia saber a resposta para todas essas perguntas.

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