A arte de forjar atletas pelos afetos

Histórias de um treinador de vôlei que aposta no potencial transformador do esporte. Rechaça a disciplina militar dos corpos. E enxerga a formação nas bases como processo de oportunidade social, cuidado e criação de laços que não se resumem a um futuro de superligas

Foto: Washington Alves/COB
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Essa é a segunda parte do texto, originado do diálogo com o professor e técnico de voleibol Rodolfo Lino da Silva. Leia a primeira aqui

Entre as várias experiências vividas pelo Professor Lino ao longo de mais de 24 anos no esporte, via formação de base e alto rendimento, duas histórias chamam a atenção. A primeira tem a ver com como o esporte pode oportunizar projetos de vida dignos para a juventude em condição de vulnerabilidade econômica e social. Já a segunda, conta uma história de desligamento precoce de um clube que, ao longo do processo, também resultou em uma aprendizagem vitoriosa de vida, imersa no voleibol. Iremos ficcionar os/as personagens como forma de evidenciar que essa história, apesar de própria, narra muitas outras similares.

Foto do arquivo pessoal do professor Rodolfo Lino da Silva. Equipes infanto e juvenil da equipe Santander/São Bernardo em pré temporada na cidade de Caraguatatuba, 2007.

Personagem 1: uma aposta que deu certo

Lino é responsável, entre tantas outras funções, pela captação – dada sua singular característica de conseguir ler, ainda no início, a potencialidade para o voleibol, de alguns/algumas jovens. Em uma competição no sul do Brasil – Taça Paraná -, ainda atuando como profissional do Banespa, Lino viu um jovem em atuação por um time do Rio de janeiro. E imediatamente pensou: precisamos levá-lo para o nosso clube, o rapaz é bom e tende a ser ainda melhor. Feitas todas as conversas com o técnico do atleta, com o próprio clube e com seus grupos de maior confiança no ambiente de trabalho, Lino resolveu viabilizar a ida do jovem. No entanto, os recursos dispensados para isto não eram suficientes para que a família fosse junto, visualizasse como seria essa separação, uma vez que falta de recurso não é, nunca, sinônimo de falta de zelo e de amorosidade por parte das famílias.

Lino, que também passava por um momento familiar particular, dado que sua filha mais nova era recém-nascida, e ele se mantinha no malabarismo dos diversos empregos para pagar as contas, engenhou como viabilizaria a ida do jovem e dos pais para conhecerem o novo estado, o local de treinamento, a escola, entre outras questões novas para a família carioca. Resolveu, dentro do ambiente familiar, que ele se responsabilizaria, pessoalmente, pela ida da família junto com o jovem para que se sentissem mais seguros no processo. Pagou suas passagens, os buscou na rodoviária, os levou para sua casa, os mostrou todos os ambientes em que o jovem vivenciaria e, o mais importante, além da solidariedade do profissional, experimentou, na convivência, o cuidado familiar com aquele jovem de periferia, que tinha tudo para chegar muito longe no voleibol.

Deu tudo certo. Os pais confiaram no processo e no Lino, o menino fez sua parte e os formadores também, e ele chegou lá. Hoje é um dos mais importantes nomes do voleibol brasileiro em evidência. Quem será esse lindo personagem? Desculpem, é confidencial.

Essa história real evidencia muitas questões, entre as quais destacamos duas: 1) a falta de cuidado dos clubes em trabalhar com a base, ficando o sujeito que vê, responsável por garantir o cuidado psicológico, econômico e solidário do processo, na relação com as famílias; 2) a ausência de política pública nos bairros para que tantos outros meninos das periferias joguem, assim como no futebol, o voleibol de forma corrente ao longo do tempo. Situação essa piorada, expressivamente, com a era dos condomínios fechados residenciais, da supremacia das redes sociais e da diminuição de utilização dos espaços públicos, para os encontros e projetos comuns. Lembremos que os espaços públicos, comuns, são o abrigos da diversidade, territórios de convívios diversos ao longo da caminhada.

A história desse/a personagem 1 é, em grande parte, a história do Brasil contemporâneo. Pais e mães que vivem em condições de vulnerabilidade econômica, projetam em seus filhos, quando podem, a esperança de que dias melhores virão. No caso do/da personagem 1, o mesmo conseguiu trabalhar com o voleibol e ajudar sua família no processo de produção de uma vida minimamente digna em meio às diversas crises do trabalho pelas quais passam nossas juventudes ao longo do tempo. A/O personagem 1, que vemos sempre na superliga, é fruto de uma história exitosa, em que outros personagens, por diversas questões, que também poderiam ter chegado lá, não chegaram. A vida é assim, um vai e vem contínuo de possibilidades, ou da ausência delas.

Personagem 2: um desligamento que deu certo

Em uma outra situação, também com um/uma jovem talento oriunda das periferias do Rio de janeiro, a história se desenrolou diferente, mas com êxito. O talento, em muitos momentos, pode gerar, a depender da própria história dos sujeitos, e da formação como é dirigida, acomodações, dado que esse jovem desponta, para sua idade, como um alguém diferenciado no ambiente. No entanto, somente o talento não gira a máquina das possibilidades reais, pois o trabalho permite que outros, não tão talentosos no início, se tornem excelentes profissionais ao longo do processo. Dadas as diversas variáveis em jogo, a/o personagem 2, ao longo de um período, foi desligado/a do clube.

Parecia ser inaceitável que o clube dispensasse um talento. No entanto, essa dispensa que tende a gerar mágoas, foi educativa. Ela não definia que as portas estariam fechadas, como em várias outras situações com outros jovens. Somente explicitava que, naquele momento, não resultaria bom para nenhuma parte envolvida. Esse/a jovem ficou ainda melhor no voleibol. Obviamente que não sem dores e mágoas. Mas é uma outra história de sucesso cujos caminhos foram diferentes da/do personagem 1, não pelas deficiências técnicas ou táticas, mas pelas necessidades coletivas de um momento concreto.

A/O personagem dois é também uma referência atual importante do voleibol brasileiro. E passou, assim como a/o personagem 1, por muitos processos de aprendizagens, distanciamentos, dúvidas, lesões e necessidades de tomadas de decisões. O que estas duas experiências expõem é que não há um caminho de via única, nem na vida, nem no esporte.

Reflexões sobre o processo

Foto do arquivo pessoal do Professor Rodolfo Lino da Silva. Sesi-SP, 2017, onde tive a oportunidade de dirigir a equipe adulta feminina no retorno a Elite da Superliga (Taça Ouro)

Essas histórias se mesclam com milhares de outras que poderiam ter sido e não foram, ou que foram, e que não se esperava que poderiam vingar. Mas as duas precisaram, em um momento concreto, que alguém, ou algum espaço coordenado por interessantes pessoas, apostasse(m) neles/nelas. Sem essa aposta na juventude, sem a democratização real do acesso a mais meninos e meninas em condições econômicas e sociais diversas, inerentes a um país explicitamente desigual, as/os personagens 1 e 2 não se tornarão 3, 4 mil, milhões.

O voleibol no Brasil é um esporte tornado espetáculo, mercadoria. Funciona com base em um negócio com cotação na bolsa de valores. A questão a saber é: é possível trazer para o ambiente da base os mesmos objetivos traçados para o profissional? A formação de base no Brasil, que não se restringe ao Sudeste e Sul do país, tem recebido recursos e fomentos necessários para que os/as formadoras/es e os atletas de fato vivam do voleibol? No esporte espetáculo, mercadoria, a base é tão ou mais vital que o profissional, ou sua função é de descobrir apenas “talentos natos” que podem tornar-se profissionais, sem a real condição do desabrochar para tudo o que envolve o voleibol no futuro. Ou seja, tanto se tornar um atleta, como se tornar um profissional de uma área com condições, formativas, vinculadas também à experiência que teve como jovem, no meio do voleibol.

O tema problema aqui não é somente sobre o que entendemos por formação. E sim, o cuidado, o projeto, e o recurso que a formação necessita para projetar, no médio e longo prazo, novos futuros profissionais que atuam no ou com o voleibol, ou para além dele, mantendo-se como um/a apaixonado/a pelo esporte. Nesse sentido, a história e a memória do professor e técnico Lino nos convoca a pensar para além da compra e venda das mercadorias, força de trabalho de diferentes idades presentes no esporte brasileiro. Exige que reflitamos sobre esse buraco que existe entre a paixão pelo esporte e a possibilidade, ou não, de sobreviver nesse trabalho, sem com isto, ter que abdicar do convívio familiar, afetivo, e de estudos tão necessário à integridade humana.

As quatro horas de conversa com o técnico Lino da Silva nos deram a dimensão da tragédia e da festança que mediam o voleibol brasileiro. Acompanhar sua memória e sua história, é sorrir e chorar com a situação inerente ao esporte da realidade do desenvolvimento econômico e social brasileiro, mediado por um Estado cada vez menos presente na produção do espaço público, como projeto comum de sociabilidade.

Lino é uma figura muito educada em um meio tremendamente truculento, dados os ainda presentes vestígios da ditadura como ambiente militar do disciplinamento dos corpos. Deve sofrer muito, para além do que contou. Afinal, na era dos titãs que “dão certo”, como o retrato dos vitoriosos do Brasil, aqueles silenciados e silenciosos, aprendem a aparecer pouco enquanto, na realidade, fazem muito pelos jovens e pelo Brasil.

Lino é fruto de seu tempo. Tem uma formação que se não se mantiver continuada, vai ficando para trás no entendimento das mudanças geracionais que impactam as relações em geral, e o esporte em particular. Sem tempo para estudar, limita-se o sentido do formar. Vale para ele, o que vale para todos. O projeto de desenvolvimento do Brasil exige ser reestruturado com urgência. E pautado por uma outra leitura de democracia que, para além da formalidade constitucional, seja realidade cotidiana. Permitir que a juventude e os profissionais do esporte possam, com dignidade, manter-se e desenvolve-se no ambiente que escolheram.

Ao vermos um jogo de superliga, ou um mundial, ou os jogos olímpicos, precisamos aprender a ler as histórias presentes naquele processo. E são essas invisíveis situações que nos expõem as marcas indeléveis de um potencial sistema bem sucedido ou não. Vencer ou perder é transitório, mas no caso do voleibol é sempre algo coletivo, ainda quando insistam em consagrar algumas figuras frente às demais que se manterão invisíveis no processo.

Como torcedores a gente torce, briga, se incomoda, dita vereditos, mas a realidade nua e crua é que realmente desconhecemos essas vidas para além do espetáculo que pagamos para ver, seja ao vivo, ou mediada pelos tendenciosos patrocinadores que definem as linhas de transmissão dos meios de comunicação. O imediato do jogo é sempre mediado pelo longo processo formativo e pelas próprias histórias de vida cotidianas no momento em que ele ocorre. Assim, o jogo é muito mais que o jogo. E os jogadores, profissionais diversos e técnicos são sujeitos repletos de contradições, cujas vidas, vão muito além do cotidiano do voleibol.

São muitas as questões que nascem de um diálogo. Entre elas, olhar para a diversidade de temas que envolvem o cotidiano esportivo, voltar a fazer perguntas, demarcar encontros dialógicos sobre, repensar rotas, rever as atitudes individuais e coletivas ao longo do caminho, e, quiçá, projetar algo verdadeiramente formativa para além do ganhar ou perder, na somatória das medalhas que adquiriremos na vida. Talvez o maior ouro seja o trabalho bem realizado na base. Será?

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