Caio Prado Júnior no país dos sovietes

Em duas ocasiões, nos anos 30 e 60, o intelectual visitou a União Soviética, ambas registradas em livros esgotados há décadas. Boitempo reeditará seus relatos históricos. Sortearemos 2 exemplares. Leia sua apresentação em Outras Palavras

Dispensando maiores apresentações, Caio Prado Júnior foi um dos principais intelectuais marxistas do século XX. Original e contundente, sua interpretação da formação histórica do Brasil marcou de forma indelével os debates políticos e as discussões acadêmicas de seu tempo – e reverbera até hoje.

Em dois livros que nunca ganharam reedição desde as décadas em que foram publicados, o intelectual paulista relatou suas viagens à União Soviética e analisou a construção do socialismo nesse país. O primeiro, publicado com o nome de URSS, um novo mundo, remonta a uma visita realizada em 1933, e o segundo, batizado de O mundo do socialismo, a uma excursão feita em 1960, cuja rota também incluiu a China de Mao Tsé-Tung.

Nossos parceiros da Boitempo Editorial reuniram esses dois escritos em um livro só, lançado agora, que será enviado em primeira mão aos assinantes do Armas da Crítica, clube do livro da editora. Quem se inscrever no clube até o dia 15/2 ainda receberá essa coletânea de grande interesse histórico em casa.

Sortearemos 2 exemplares do volume URSS, um novo mundo e O mundo do socialismo, que contém os dois livros de Caio Prado Júnior, entre os apoiadores do nosso jornalismo.

Para participar do sorteio, acesse apoia.se/outraspalavras/ e faça parte do financiamento coletivo de Outras Palavras. Todos os nossos apoiadores receberão o formulário de participação no sorteio por e-mail: ele ficará aberto até a próxima quinta-feira, 16/2, às 14h. Quem contribui conosco também ganha direito a 20% de desconto no site da Boitempo.

Outros Quinhentos, editoria cultural e rede de sustentação autônoma de Outras Palavras, publica agora com exclusividade um trecho selecionado da apresentação deste lançamento da Boitempo, escrita por Luiz Bernardo Pericás, professor do Departamento de História da USP.

Boa leitura! (Guilherme Arruda)


APRESENTAÇÃO PARA “URSS, UM NOVO MUNDO E O MUNDO DO SOCIALISMO”

Luiz Bernardo Pericás

Desde o triunfo da Revolução de Outubro, em 1917, o interesse do público ocidental pela Rússia soviética cresceu constantemente ao longo dos anos, com leitores ávidos por mais informações e detalhes sobre as características e as particularidades do sistema político e econômico implantado pelos bolcheviques naquela parte do planeta. Clássicos como Dez dias que abalaram o mundo [1], de John Reed, Seis meses na Rússia vermelha [2], de Louise Bryant, e Through the Russian Revolution [Através da Revolução Russa] [3], de Albert Rhys Williams, são apenas alguns exemplos pioneiros desse tipo de bibliografia, que se espalhou por todos os continentes [4]. O desejo de se inteirar sobre os desdobramentos do processo revolucionário e suas especificidades era, sem dúvida, imenso, assim como o de conhecer seus principais personagens, como Lênin, Trótski, Bukhárin, Zinoviev e, mais tarde, Stálin, entre outros. Por isso, não só correspondentes estadunidenses e europeus afluíram para a “pátria do socialismo”. Muitos latino-americanos também iriam para lá a partir dos anos 1920. Jornalistas, escritores e políticos veriam de perto a realidade da União Soviética (constituída em dezembro de 1922) e, depois de retornarem a seus respectivos países, escreveriam livros e artigos sobre o que haviam testemunhado in loco.

Os relatos são abundantes, contundentes e emblemáticos. Julio Antonio Mella, César Vallejo, Aníbal Ponce, José Penelón, Rodolfo Ghioldi, León Rudnitzky, Elías Castelnuovo e Alfredo Varela são alguns nomes que podem ser lembrados aqui.

Os brasileiros, por certo, não ficariam para trás. De militantes e dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCB), como Astrojildo Pereira, Heitor Ferreira Lima e Leôncio Basbaum, a artistas, intelectuais e periodistas, entre os quais Maurício de Medeiros [5], Osório César [6], Gondin da Fonseca [7] e Claudio Edmundo [8], foram vários os compatriotas que viajaram  para a terra de Lênin e depois produziram narrativas sobre suas experiências (tanto na época em que estiveram lá como em decênios futuros). Isso para não falar dos conterrâneos que continuaram afluindo para a URSS (e as democracias populares da Europa oriental) nas décadas seguintes, de romancistas, contistas e editores, como Jorge Amado  [9], Graciliano Ramos [10], Nestor de Holanda [11], Marques Rebelo [12], Afonso Schmidt [13] e Ênio Silveira [14], a ativistas, sindicalistas e membros de comitivas e delegações oficiais (além, é claro, de autores que lançaram livros bastante críticos à “pátria do socialismo”, textos pejorativos, estereotipados e tendenciosos que também podiam ser encontrados no mercado editorial nacional).

Títulos como Um brasileiro na União Soviética: impressões de viagem [15] , de José Campos; a obra coletiva Operários paulistas na União Soviética [16], dos metalúrgicos Constantino Stoiano, José Pedro Pinto e João Sanches, do tecelão Antônio Chamorro e do portuário Lázaro Moreira; Visão atual da Rússia: observações de um jornalista brasileiro [17], de Freitas Nobre; União Soviética: inferno ou paraíso? [18] , de Rubens do Amaral; Juízes brasileiros atrás da cortina de ferro [19], de Osny Duarte Pereira; Moscou, ida e volta [20], do periodista Edmar Morél; Quatro semanas na União Soviética [21], de Jurema Yari Finamour; Moscou, Varsóvia, Berlim: o povo nas ruas [22], de José Guilherme Mendes; Viagem à União Soviética [23], de Branca Fialho; Visões da Rússia e do mundo comunista [24], de Silveira Bueno; Um engenheiro brasileiro na Rússia [25], de John R. Cotrim; A sombra do Kremlin [26], de Orlando Loureiro; e URSS, a grande advertência [27], de João Pinheiro Neto, são só alguns que podem ser citados aqui.

É nesse contexto mais amplo, portanto, que se devem incluir os dois livros de Caio Prado Júnior sobre aquele país. Em um momento em que os leitores buscavam fontes variadas sobre a URSS e, ao mesmo tempo, era possível encontrar uma série de publicações que atacavam duramente os direcionamentos de Moscou (de matérias em jornais a trabalhos literários carregados de preconceitos contra o “comunismo”), intelectuais progressistas muitas vezes se incumbiam de divulgar suas experiências de viagem e de falar sobre aquele país como forma de contrapor as investidas que este sofria por parte da imprensa e das autoridades da época. Caio Prado Júnior, portanto, seria mais um a cumprir o papel de divulgador daquela experiência que tanto admirava.

O jovem intelectual paulista, que pouco antes ingressara no PCB [28], decidiu ir para a União Soviética [29] pela primeira vez em fevereiro de 1933 (no mesmo ano em que publicou Evolução política do Brasil) [30], com apenas 26 anos de idade, realizando sua viagem entre maio e junho, acompanhado da esposa Hermínia Ferreira Cerquinho da Silva Prado (mais conhecida como Baby). O casal entrou na URSS de trem pela fronteira polonesa e seguiu diretamente a Leningrado (atual São Petersburgo). Depois, eles visitariam Moscou, Kiev, Kharkov, Ialta, Kazan, Kislovodsk, Saratov, Rostov do Don, assim como outras localidades da Rússia, da Ucrânia, da Geórgia e do Cáucaso do Norte, acompanhados de guias e visitantes estrangeiros [31]. Ainda que posteriormente, em seu livro, ele afirmasse que o percurso tivesse se prolongado por dois meses [32], a visita, em realidade, durou um pouco menos que isso, em torno de um mês e meio [33]. Vale ressaltar que as rotas, em geral, eram previamente preparadas pelos soviéticos (em 1933, a Intourist, a agência de viagens local, constituída em 1929, possuía 36 itinerários pelo país) [34].

Tudo naquelas terras impressionou o intelectual marxista brasileiro. Durante sua estada, Caio viu manifestações de rua; conversou com trabalhadores (com a ajuda de intérpretes); esteve no Kremlin, no Palácio de Inverno, na praça Sverdlov e no parque Górki; visitou fazendas coletivas; navegou pelo Volga; presenciou um julgamento e uma cerimônia religiosa na Catedral de Santa Sofia; foi a museus (como o museu antirreligioso de Leningrado, instalado na antiga Catedral de Santo Isaac), a um clube ferroviário, a um profilactorium de prostitutas na capital, ao Palácio de Livadia (na Crimeia), à comuna Seattle, à usina de construção de máquinas agrícolas Selmachstroi, ao sovcoz Verblud e ao Grand Théâtre (Bolshoi), assim como a fábricas, livrarias e bibliotecas populares [35]. Uma experiência, sem dúvida, muito rica, que renderia dezenas de fotografias, além de descrições daquela realidade em cartas a familiares [36], apresentações públicas e um livro.

Ao retornar a São Paulo, o rapaz proferiria, em setembro de 1933, duas palestras para auditórios lotados no Clube dos Artistas Modernos (CAM), fundado em novembro do ano anterior na capital paulista por nomes como Antônio Gomide, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho e Carlos Prado. Vale lembrar que no salão da entidade cabiam em torno de 120 indivíduos, mas aparentemente 600 pessoas teriam ficado apinhadas do lado de fora na primeira apresentação por não haver espaço suficiente nas instalações [37] (neste dia, estavam presentes no público Tarsila do Amaral, Osório César e Orestes Ristori, enquanto na segunda palestra, à qual supostamente compareceram quinhentas pessoas, prestigiaram o evento Flávio de Carvalho, Jaime Adour da Câmara, Mário Pedrosa, Hermínio Saccheta e Octávio Barbosa, entre outras personalidades conhecidas) [38]. Sua conferência [39] seria a base de seu livro URSS, um novo mundo, publicado em 1934.

Já em 9 de setembro de 1933, o diretor da Companhia Editora Nacional (empresa encabeçada por Octalles e Themistocles Marcondes Ferreira) escreveu para Caio dizendo se interessar na publicação de um livro que contivesse suas impressões sobre a Rússia e perguntando se ele estaria disposto a preparar tal relato. Também indagava quais seriam as condições do autor [40]. No dia seguinte, o historiador responderia que já pensara naquilo, mas que não poderia adiantar nenhuma posição no momento. Ainda assim, teria “o maior prazer em oportunamente tratar do caso” [41]. Pouco tempo depois, Caio concordaria em publicar a obra. A proposta era uma tiragem de 3 mil exemplares, que deveriam ser vendidos a Rs. 6$000, com o pagamento de Rs. 1:800$000 na data da publicação do livro [42]. O diretor, então, por nova missiva de 17 de janeiro de 1934, confirmaria ao interlocutor que faria uma edição com as características acordadas [43]. O livro terminou de ser escrito naquele mesmo mês, em janeiro, e foi lançado em março. Em abril seriam efetuados os primeiros depósitos referentes aos direitos autorais na conta do historiador [44]. A Companhia Editora Nacional fora fundada em 1925 por Octalles (seu diretor-geral), junto com o escritor Monteiro Lobato, que deixou a empresa em 1929, vendendo sua parte para o irmão de seu sócio, Themistocles, que atuaria como diretor-presidente da empresa até meados da década de 1960. O autor de Urupês, ainda assim, continuaria colaborando com o antigo colega, editando livros e preparando traduções (Octalles, em 1932, adquiriu a editora Civilização Brasileira, fundada alguns anos antes, a qual ele transferiu, mais tarde, para seu genro Ênio Silveira) [45]. Em 1933 (época em que Caio viajou à União Soviética), “entre os 1.192.000 exemplares produzidos naquele ano, 467 mil eram de títulos educacionais, 429,5 mil de livros infantis (entre eles, 90 mil eram de Lobato) e 107 mil de literatura popular” [46]. O objetivo principal da editora, portanto, era levar ao mercado livros didáticos e de literatura para o público jovem, com tiragens significativas e a preços acessíveis para os leitores. Nesse sentido, seriam criadas coleções emblemáticas, como a Biblioteca Pedagógica Brasileira, a partir de 1931 (dirigida por Fernando de Azevedo), com diferentes séries, que incluíam livros de literatura infantil, obras de ensino popular, de “iniciação científica” e uma “brasiliana”, composta de trabalhos de intelectuais de diversas áreas do conhecimento que discutiam os problemas do país [47]. A Companhia Editora Nacional, portanto, era uma empresa de renome, que sem dúvida poderia fazer chegar a muitos leitores a obra de Caio, ajudando, assim, a difundir suas impressões do país dos sovietes (por sinal, não se pode deixar de recordar, como aponta Edgard Carone, que a maioria esmagadora dos livros de autoria de Caio foi publicada com recursos próprios; neste caso, URSS, um novo mundo destoa do padrão, tendo sido o único de seu catálogo publicado por editora que não fosse de sua propriedade e que não tivesse sido financiado por ele) [48].

Foram alguns os motivos para Caio Prado Júnior se decidir a produzir aquele volume. Em primeiro lugar, ele andava recebendo solicitações constantes para novas palestras. Sabendo das limitações no número de pessoas que poderiam assistir aos eventos e não querendo se repetir constantemente, achou que um livro poderia resolver a questão, assim como ampliar significativamente sua audiência. Além disso, recebia cartas de admiradores que pediam para ele editar uma obra naquele sentido. E, finalmente, a proposta da CEN, fato concreto que estimulava a preparação de um trabalho sobre seu trajeto pelo território soviético.

Aquele seria, em suas palavras, um “depoimento imparcial” sobre o que observara em sua estada na terra de Lênin. Lançado como o volume 3 da coleção Viagens (que já contava com América, de Monteiro Lobato, e Shanghai, de Nelson Tabajara de Oliveira), a obra (composta e impressa nas oficinas da empresa gráfica da Revista dos Tribunais, em São Paulo) recebeu várias recensões (na maioria, favoráveis) na imprensa. Resenhas do livro foram publicadas em revistas e jornais como A Tribuna, Correio da Manhã, A Bahia, Gazeta Popular, O Jornal, Folha da Noite, A Tarde, O Semeador, Fon-Fon e O Radical, escritas por nomes como Álvaro Augusto Lopes e Heitor Moniz (entre os críticos, porém, destacaram-se Benjamin Lima, de O Paiz, e o trotskista Lívio Xavier) [49]. A procura pelo  relato, portanto, foi grande, em especial entre os jovens. Nele, o autor discorreu sobre a organização política, a economia, o setor industrial, a agricultura, a coletivização, o comércio, a família, o papel da mulher, a religião, a educação, a cultura, as relações sociais, as instituições e outras características singulares daquela experiência histórica ainda pouco conhecida dos leitores brasileiros de sua época.

Escrito em estilo sóbrio e, em grande medida, objetivo, o texto, não obstante, mostra uma posição bastante favorável à União Soviética, descrita por ele como um país promotor da “a democracia por excelência das massas, não da minoria” [50] (sempre contraposta, ao longo de suas páginas, ao tsarismo ou ao “regime burguês”). Afinal, para ele, 

a democracia soviética não se resume no direito popular de escolher periodicamente representantes que, uma vez no Parlamento, se destacam por completo de seus eleitores e só se lembram deles diante da eventualidade de novas eleições. A democracia soviética realiza uma participação efetiva do proletariado e dos demais trabalhadores na direção política do país. [51]

Ainda que mencione alguns momentos de sua visita e descreva determinadas experiências pessoais na URSS, o livro não é stricto sensu uma narrativa de viagem como muitos trabalhos análogos (inclusive escritos por colegas), mas um híbrido, que mistura testemunhos com uma descrição mais ampla e direta dos aspectos sociais e econômicos daquele país, intercalada com opiniões sobre diversos temas (como ele mesmo diz, “não lhe dei a forma de um livro de viagem unicamente porque quis escrever com mais método, o que, creio, contribuirá para a clareza da exposição”) [52].

[…]

URSS, um novo mundo teve uma segunda edição, impressa em agosto de 1935, ano de intensa atividade da Aliança Nacional Libertadora e do Levante Comunista (não custa lembrar aqui que, naquele ano, Caio Prado Júnior foi o presidente regional da ANL em São Paulo). A obra, contudo, seria confiscada e retirada de circulação por ordem do governo Vargas, algo que, por sinal, não era incomum na época [74] (um exemplar desta segunda edição pode ser encontrado na biblioteca particular de Caio Prado Júnior, no IEB/USP). Desde então, nunca mais foi reeditada.

Outras Palavras e Boitempo Editorial sortearão dois exemplares de URSS, um novo mundo e O mundo do socialismo, volume com dois livros de Caio Prado Júnior, entre os apoiadores do nosso jornalismo. O formulário de participação será enviado por e-mail e as inscrições serão aceitas até a próxima quinta-feira, 16/2, às 14h. Quem é Outros Quinhentos tem 20% de desconto no site da editora.

[…]

O mundo do socialismo, por sua vez, foi elaborado após outra jornada  URSS e à China, neste caso, com sua segunda mulher, Helena Maria Magalhães Nioac (a Nena), entre julho e setembro de 1960, viagem realizada pouco depois de ele ajudar a fundar a União Cultural Brasil-União Soviética (também designada por alguns como Sociedade Brasil-URSS), em São Paulo, juntamente com Sérgio Milliet, Afonso Schmidt, Florestan Fernandes, João Belline Burza, Elias Chaves Neto, Mário Schenberg e Eduardo Guarnieri, entre outros [75] . Na época, Caio estava com 53 anos, em plena maturidade intelectual. Desde o ano anterior, o historiador pensava em voltar à URSS, mas encontrava dificuldades, por questões burocráticas. Por isso receberia o apoio de seu amigo Jacob Bazarian, que vivia naquele país desde 1950 (onde trabalhava como pesquisador científico no Instituto de Filosofia da Acus) [76] (Bazarian voltaria ao Brasil em 1966 e posteriormente, desiludido com o regime soviético, publicaria um livro crítico à União Soviética) [77]. Tudo seria resolvido. E sua viagem seria realizada.

Naquele momento, a URSS, o maior país do mundo, com um território de 22 milhões de quilômetros quadrados que se estendia por dois continentes e que reunia quinze repúblicas, contava com aproximadamente 215 milhões de habitantes. Era, sem dúvida, uma superpotência militar, tecnológica e nuclear, ainda que a qualidade de seus bens de consumo ainda deixasse bastante a desejar se comparada à dos países ocidentais [78]. Quando o autor de História econômica do Brasil foi à União Soviética, o PCUS possuía, então, em torno de 8.239.000 membros e tinha como primeiro-secretário Nikita Khruschov, que chegou a ocupar ainda as posições de líder do Presidium do Comitê Central e presidente do Conselho de Ministros. No XX Congresso do PCUS, em 1956, Khruschov foi o responsável por encabeçar a denúncia dos crimes de Stálin e por atacar o culto à personalidade. Ao longo dos anos, implementou uma série de reformas culturais e econômicas (muitas vezes polêmicas), iniciando um período mais “liberal” e supostamente flexível, que incluía também a defesa de uma política de coexistência pacífica no campo internacional [79]. Foi neste novo momento pelo qual passava a URSS (que também teria reflexos no setor do turismo) [80] que Caio Prado Júnior chegou ao país.

Em Moscou, ele e a esposa ficaram hospedados no renomado Hotel Ucrânia, um prédio de 34 andares e 198 metros de altura que, segundo João Pinheiro Neto, era “o maior e mais moderno” da capital, um “dos poucos edifícios novos da cidade”, com um serviço ruim, “nenhuma organização interna de restaurantes” e repleto de turistas americanos [81]. Com Nena, o historiador paulista faria visitas a colcozes, creches, ao estádio de futebol Lênin (com capacidade para 100 mil pessoas) e ao Instituto de Filosofia da Acus, onde teve conversas com vários professores (que, neste caso, não lhe teriam causado boa impressão). De resto, adorou tudo o que viu e achou que a União Soviética estava indo no caminho certo. Em carta de 27 de julho de 1960, enviada ao filho caçula, Roberto, ele comentou: “Estou aprendendo muita coisa e, sobretudo, que realmente o regime político e social deste país é o futuro de toda a humanidade” [82].

Da União Soviética, o casal seguiu para a China. Conheceu Pequim, Wuhan, Xangai e outras cidades no sul daquela nação. Durante a viagem, esteve na Ópera de Pequim, assistiu a um espetáculo de acrobatas, foi ao teatro, esteve em uma represa, em uma fundição de aço e em um templo budista de Hang Tcheu, além de visitar fábricas, comunas e monumentos, sempre acompanhado de uma guia local. De Wuhan (onde, segundo Caio, “não temos parado, visitamos mil coisas, numa agitação permanente”) [83], ele mandaria uma missiva, datada de 21 de agosto, mais uma vez para seu filho mais novo, na qual dizia:

Aqui na China, podem-se ver muito bem as vantagens do socialismo, porque a China capitalista não deixou nada, e só o moderno e recente, que é do socialismo, representa o progresso e perspectiva futura. Você, quando vier à China (e com certeza algum dia virá), terá a ocasião de ver o maravilhoso país que se está construindo aqui, para uma vida feliz de todo mundo. [84]

O passeio continuou, e a impressão favorável do país só aumentava. Em nova correspondência a Roberto, desta vez escrita em Pequim, em 1º de setembro, Caio diria que estava

vendo e compreendendo este mundo enorme de 650 milhões de pessoas, dominadas e exploradas até há poucos anos pelos imperialistas europeus, e um punhado de grandes proprietários, e que constroem hoje um país rico e poderoso, que assegurará o bem-estar de todos [os] seus habitantes (mais de uma quinta parte da humanidade). Há muito ainda por fazer, mas que a obra está sendo levada a cabo, não pode ter dúvidas: em dez anos no máximo, a China é o primeiro país do mundo. [85]

[…]

Em O mundo do socialismo, publicado em 1962 pela Brasiliense, impresso na gráfica Urupês e dedicado aos filhos Danda, Caio Graco e Roberto, o intelectual paulista discutirá a questão da liberdade, do Estado (burguês e socialista), da imprensa, do trabalho, da religião, dos sovietes, da “polícia popular”, dos “tribunais de camaradas” e do Partido Comunista. Desta vez, ele seria mais explícito em suas intenções e faria questão de tomar posição em relação a seu objeto:

Sem ser um simples relato de viagem – pois me arrisco a certas “teorizações” –, ainda assim este livro não tem mais pretensões que refletir impressões e conclusões de um viajante. Impressões de um comunista, o que desde logo as inquinará para muitos de “suspeitas”. Livros sobre os países socialistas costumam ser sumariamente divididos em duas categorias: contra e a favor. E, nesta última, está claro, se classificará o livro de um comunista. [95]

Apesar disso, completava que 

não foi para “julgar” que visitei os países socialistas, e sim para analisar as soluções dadas nesses países aos problemas da revolução socialista, isto é, da transformação socialista do mundo. Estou convencido dessa transformação e de que a humanidade toda marcha para ela. […] Foi a experiência acumulada nos países socialistas, experiência orientadora da transformação socialista, pela qual, a meu ver, todos os povos e nós, brasileiros, inclusive, haveremos mais cedo ou mais tarde de passar, o que me interessou. E é isso, portanto, que procuro trazer para as presentes páginas, a fim de que o muito ou o pouco que aprendi (muito, a meu ver; os leitores que julguem se realmente significa alguma coisa) não fique apenas para mim e possa, eventualmente, servir também a outros. [96]

Este também não pode ser colocado, em sentido estrito, exclusivamente dentro da categoria de literatura de viagem, ainda que, como em sua primeira obra do gênero, também mencione por vezes algumas de suas experiências no exterior. 

[…]

O livro teve duas edições em 1962 e uma terceira em 1967, sem alterações no texto (na última tiragem houve a inclusão de uma pequena biografia de Caio preparada por Elias Chaves Neto), mas todas com capa diferente (o formato da terceira edição também seria menor que os das edições anteriores). Nenhuma delas possui página de créditos que indique nomes de diagramadores, revisores, preparadores de texto e capistas das respectivas edições.

Essa também foi uma obra de relativo êxito editorial, com vendas expressivas, pelo menos no primeiro ano de sua publicação. Ainda assim, desde 1967, quando teve sua terceira tiragem em plena ditadura militar, o livro não passou por novas edições em seu formato integral.

[…]

Por fim, vale indicar o lugar em que se encontram URSS, um novo mundo e O mundo do socialismo no quadro maior da obra caiopradiana. Esses, certamente, não são os livros mais importantes de sua produção. Apesar disso, ambos mostram um retrato (mesmo que parcial) da União Soviética em decênios bem distintos, apresentando as características do país em momentos diferentes de sua história.

Além disso, é interessante apontar para o fato de que dois passeios relativamente curtos no exterior se tornaram livros, algo incomum em sua bibliografia. Caio viajou para muitos locais ao longo da vida, mas isso não se refletiu em obras como as duas em questão. É verdade que uma viagem para a Polônia e a Tchecoslováquia em 1949, por exemplo, rendeu um artigo em duas partes publicado em 1950 pela revista Fundamentos [121]. Mas nem nesse caso a experiência se transformou em livro. Sem dúvida o historiador paulista dava importância a viagens – são conhecidos seus périplos pelo Brasil (inclusive em um fusca) para conhecer de perto a realidade do país. Essa dinâmica deixou marcas em suas obras. Mas um “livro” baseado em viagens no estrangeiro não era algo comum. Ele esteve, desde a juventude até a década de 1970, em várias partes das Américas, do norte da África, do Oriente Médio, da Ásia e da Europa ocidental e oriental (assim como em várias regiões do próprio Brasil), deslocando-se em trens, ônibus, aviões e automóveis. Ele fazia anotações, escrevia cartas, dava palestras, fotografava todos os lugares por onde passava… Mas nem assim essas experiências específicas (como uma viagem que fez a Cuba) se transformaram em “livros”, o que mostra a ênfase que ele quis dar à divulgação e ao apoio à União Soviética e a seu sistema político [122].

URSS, um novo mundo e O mundo do socialismo podem ser inseridos, também, no contexto das obras de viagem de latino-americanos e, especificamente, de brasileiros à União Soviética (e, no segundo caso, também à China), com todas as ressalvas feitas em relação às características “híbridas” e heterogêneas desses trabalhos. Ambos os volumes igualmente representam uma fotografia do próprio autor no início dos anos 1930 e começo da década de 1960. Afinal, neles é possível encontrar suas ideias e seus posicionamentos em relação a vários assuntos, como o comunismo, o fascismo, o Estado, a revolução, a liberdade, o partido, o trabalho e os muitos aspectos filosóficos, jurídicos, culturais, políticos e econômicos do “mundo do socialismo” discutidos pelos setores progressistas de sua época.

Por tudo isso, a leitura desta edição dupla, composta de livros há muito fora de catálogo, ajuda a entender pontos menos conhecidos da vida e da obra de Caio Prado Júnior e é fundamental para ampliar e completar o quadro geral de seu ideário político e econômico, representando um material singular e muito interessante para todos aqueles que estudam seu pensamento.


NOTAS

[em construção]

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