A peruca loura, a coleira de cachorro, uma pistola

Bolsonaro ensinou: não basta ter opiniões, é preciso virar meme. E assim, deputados ultradireitistas pervertem o espaço público e disparam truculência impunemente. Perto deles, as palhaçadas do Tiririca foram pura inocência

Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
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Por Marcelo Coelho, na Revista Rosa

Há não muito tempo, um sujeito fazia palhaçadas para se eleger deputado, obtinha grande votação, e no fim entrava na Câmara sem incomodar mais ninguém. Ficava só vagando obscuramente pelas bancadas e comissões. Penso em Tiririca, por exemplo.

É provável que o sistema esteja mudando. A palhaçada precisa ser feita mesmo depois das eleições, quando o político já garantiu seu cargo. Foi o caso desse Nikolas Ferreira, do mesmo PL de Tiririca, Bolsonaro e Carla Zambelli, que no dia 8 de março colocou uma peruca loura e discursou no plenário da Câmara contra homens e mulheres trans.

Vai ficando claro que não basta ter opiniões de extrema-direita, ser golpista, homofóbico, transfóbico, armamentista para ganhar destaque na vida política brasileira. A concorrência é grande.

O extremista, hoje em dia, precisa produzir memes: esta é a grande lição ensinada por Jair Bolsonaro, no impeachment de Dilma Rousseff. Sua declaração de voto, elogiando o torturador Brilhante Ustra, foi o que de fato lançou sua candidatura à presidência.

Bolsonaro seria apenas um direitista a mais nos cafundós do Legislativo, não tivesse decidido escancarar de vez a violência de suas convicções. Mostrou que ninguém mais precisaria respeitar os limites de coisa nenhuma. Décadas de enrolação conservadora, daquele tipo em que as pessoas diziam desconhecer os “excessos” do regime militar, tornavam-se dispensáveis.

AAA, Renata Pedrosa

Quanto mais radical, melhor; quanto mais bizarro o discurso, mais visualizações e mais adeptos irá obter. A palhaçada no gênero de Tiririca, que tinha sua inocência, ou que era, pelo menos, modesta em seu oportunismo, deu lugar à profissionalização da obscenidade fascista.

Na questão dos direitos trans, muitos discursos são perigosos, e talvez muita coisa seja difícil de avaliar. Há falas de ódio, há incitações ao crime, há discursos ofensivos, há besteiras, há opiniões infelizes — e tudo o que quisermos de nuance entre uma coisa e outra.

Mas penso que talvez seja mais prático, e mais básico, recorrer a um conceito mais antiquado e menos discutido — o do decoro parlamentar.

É decoro o que falta. O comportamento de Bolsonaros e Ferreiras, como o de Zambelli, se baseia na ideia de que não há diferença entre o espaço público (um lugar de respeito ao outro, de tolerância, e de alguma compostura) e aquilo que podemos fazer dentro de casa, na roda dos amigos fascistas de sempre.

Zambelli sai armada pela rua, como se desfrutasse do direito (também questionável, mas vá lá) de defender a própria casa de um invasor ou assaltante. Bolsonaro, de chinelão Rider, xinga a jornalista e dispensa o uso de máscara no rosto porque não reconhece nenhum espaço coletivo; está sempre “em casa”. O outro põe peruca loura e se autodenomina “deputada Nicole” porque vive nesse espaço misto, que é o da casa e o da tela de computador ao mesmo tempo.

Eles se tornam visíveis, viram celebridades, ganham milhões de votos, mas não sabem o que é viver em público.

Comportam-se como agentes privados: é a bravata doméstica, a piada de churrasco, a obscenidade de boteco, a muamba na bagagem, a amizade miliciana, o segurança privado na guarita, a execução no terreno baldio. Tudo é feito abertamente. O Brasil é a “casa” deles: daí tanto patriotismo. “Na minha casa mando eu”.

É o ultraliberalismo desembestado. Em São Conrado, uma mulher se recusa a compartilhar a calçada com entregadores de rua. Sai dando chicotadas no negro que estava no seu caminho.

Arquiteturas antropomórficas 1, Renata Pedrosa

É crime, claro. Mas o problema começa bem antes. Começa nessa sensação de que não existe lugar público, de que o direito dos outros não vale nada, de que posso alegar minha condição de classe e minha cor (também chamada de “nível cultural”) para fazer o que bem entendo.

Além disso é falta de decoro, falta de educação, falta de boas maneiras. Essa terminologia parece meio antiga e hipócrita, mas a meu ver tem um significado político fundamental. Não falo nem de justiça, igualdade de direitos, democracia. É o contrato civilizatório que, entre uma palhaçada e um espancamento, uma corrida de moto e um massacre, eles não respeitam mais.

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