Uma artista Zulu contra o colonialismo

A sul-africana Zanele Muholi, que expõe obras no Brasil, conta suas inspirações: a mãe, doméstica por 42 anos, e a desigualdade numa nação cindida. Aponta: a arte pode ser cura ao compartilhar as múltiplas culturas e vozes silenciadas pela opressão

Foto – Somnyama Ngonyama Buciko
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Zanele Muholi em entrevista a Katia Mello, no Geledés

Não poderia haver melhor título para a exposição de Zanele Muholi, aberta neste sábado, 22, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo: Beleza Valente. A mostra percorre a trajetória fotográfica desta pessoa não binária, da etnia zulu da África do Sul, que se utiliza de uma câmera fotográfica “como a melhor ferramenta para desfazer todas as formas de silenciamento”, como define nesta entrevista exclusiva a Geledés.

Em conversa franca e direta, Muholi, que se considera ativista visual, explica como se apropria de alguns materiais, como pregadores de roupa, para elaborar autorretratos em caracterizações de pessoas e situações de sua vivência, como sua mãe Bester, que por mais de quatro décadas trabalhou como empregada doméstica.

Muholi falou sobre sua natal África do Sul na era pós-apartheid e os legados do colonialismo em seu país. “Viemos de um passado em que o sistema colonial dividiu as pessoas em termos de língua, culturas, etc. Havia uma estratégia de dividir as pessoas em lutas desnecessárias. E acredito que a arte seja a forma para que possamos aprender algo de cada um e evitar qualquer tipo de guerras que nos dividam”, afirma.

Seu engajamento com sua própria comunidade LGBTQI+ também esteve na conversa.
“Quero falar sobre a responsabilidade de pais, famílias e colegas, onde vemos que há uma questão. Qual é a nossa reação imediata para garantir que ninguém seja deixado para trás?”, indaga. “A história deve ser acessível a todos, para que todos possamos aprender com ela”, completa. Veja abaixo a entrevista.

Em um de seus autorretratos, Bester II, você faz referência à sua mãe, que foi empregada doméstica, ao colocar pregadores de roupa em seu corpo. Qual a influência de sua infância em sua fotografia e como escolheu as temáticas de seus autorretratos?

Sou ativista visual, da África do Sul. Nasci no município de Kolomlazi, em Devon South. Estou aqui no Instituto Moreira Sales com um trabalho retrospectivo que fala sobre o arquivamento de pessoas negras, queers e trans. Nasci de Bester Muholi, uma mulher zulu. Falo sobre minha mãe como se ela estivesse ainda aqui, mesmo que ela já tenha falecido. Nasci de uma zulu forte e sou caçula da minha casa.

Em relação a meu trabalho, ele se baseia em minhas experiências diárias, na minha história, no meu entorno, no que vivi. Falar sobre essas influências e como elas me impactam é algo muito importante para mim, porque ninguém pode simplesmente seguir em frente como se nada estivesse acontecendo ao seu redor.

Minha mãe trabalhou como empregada doméstica por 42 anos, para famílias brancas. As imagens que produzi antes e que ainda produzo agora são uma forte referência a ela, à minha mãe e ao trabalho que ela realizou. Os materiais, as pessoas em uma casa, que acolhe os indivíduos nos espaços que ocupam – alguns chamam de lar, outros apenas de casa, no sentido de “não traga isso para dentro de casa”. Abraço todos esses materiais porque eles me falam muito, falam sobre a existência de um povo nesses lugares específicos.

Um material que faz referência à existência dela, ao fato de que ela esteve viva – porque agora ela se foi – são os pregadores de roupa. Eles falam sobre trabalho, porque não os usamos de maneira passiva ou casual. Então, misturo esses pedaços de materiais com a fotografia. A fotografia, sendo algo luxuoso, carrega um significado especial. Antes, a fotografia era para os ricos. Muitas famílias negras não podiam ter uma câmera.

Trago esse tipo de material de trabalho para contrastar com essa ferramenta luxuosa chamada câmera. No meu espaço e no meu entorno, isso significava quebrar as convenções de como a fotografia deveria ser. Especialmente na moda, onde há um determinado padrão sobre os temas abordados. Mas e quando isso acontece em um espaço onde as pessoas vivem vidas difíceis? Estou virando o jogo, usando materiais de trabalho dentro de um contexto de moda e fotografia.

Foto – Qiniso The_Sails Durban

Sempre pensamos que fotografia é sinônimo de moda, porque captura a beleza, captura realidades. E essas realidades se tornam história. Tudo o que estou tentando fazer é garantir que tenhamos o melhor arquivo de nosso povo neste tempo. Lutamos contra todas as formas de discriminação e falamos alto, dizendo que ninguém deve ser silenciado, ninguém deve ser deixado para trás. A história deve ser acessível a todos, para que todos possamos aprender com ela.

A fotografia é uma boa arma contra o racismo e o neocolonialismo?

A fotografia, ou a câmera, torna-se a melhor ferramenta para desfazer todas as formas de silenciamento. É um instrumento com o qual podemos nos manifestar contra qualquer tipo de discriminação ou exclusão. Se não pudermos escrever, hoje temos acesso a outros recursos, como as câmeras, e podemos registrar e compartilhar com o mundo o que está acontecendo em diferentes espaços, mesmo que as pessoas não estejam lá.

Por exemplo, agora, você e eu estamos em uma sala. Ninguém saberia dessa nossa conversa se uma fotografia não fosse tirada. Ninguém saberia das lutas e das duras realidades vividas por outras pessoas em diferentes partes do mundo se elas não fossem documentadas.

Temos a responsabilidade de garantir que esses materiais, essas vidas, esse tempo, esses momentos e esses movimentos sejam registrados da maneira mais honesta possível. Assim, aqueles que não estavam presentes podem compreender.

Colonização e colonialismo são temas profundos e complexos. E depende de com quem estamos falando. E se alguém perguntasse: “quais formas de colonialismo?”. Qualquer forma de exclusão já remete às duras realidades do passado, quando nem todos tinham acesso à educação e a privilégios que outros tinham.

Portanto ao falarmos sobre colonialismo, estamos falando de vozes silenciadas, de pessoas com deficiência, de racismo persistente, de desigualdades na educação, no emprego e no acesso à terra.

A fotografia pode ser uma ferramenta contra isso? Sim, pode, porque é outra forma de escrita. É um meio pelo qual as pessoas podem expressar suas verdades e desafiar qualquer tipo de discriminação em seus ambientes.

Você disse que a fotografia também pode curar. De que forma?

Muitas pessoas negras passaram por traumas profundos. Elas sofreram muito e não tiveram o direito de falar. O silêncio pode partir um coração, pode destruir um espírito.

Mas podemos curar quando nos é dado espaço para compartilhar nossas histórias orais e visuais. Dessa forma, conseguimos quebrar algo por dentro, de dentro para fora.

É como quando uma pessoa está passando por um estresse ou uma depressão e um terapeuta sugere atividades como esportes para ajudar na cura. A pessoa pode tentar os esportes e dizer: “Isso me ajudou a aliviar o estresse e a depressão que eu estava enfrentando. Gastei energia e me senti melhor.” A fotografia também pode ser esse espaço de cura.

Foto – Zanele Muholi

Trinta anos após o fim do apartheid, a África do Sul ainda luta com seu legado: acesso desigual à educação, salários desiguais, comunidades segregadas e disparidades econômicas gigantescas. Como a arte pode se tornar um instrumento para colocar fim às desigualdades?

Estamos falando de um sistema diferente, que não é como aqui, porque não sei o quanto as pessoas que estão longe (da África do Sul) podem falar, em termos de raça. Estamos falando de um espaço em que temos pessoas de diferentes raças que falam diferentes línguas, vindas de diferentes tribos, como os zulus.

São pessoas que falam africâner, inglês, são de diferentes partidos políticos. Acredito que quanto mais documentarmos todas essas diversidades, todas essas desigualdades, essas demografias, podemos aprendemos algo e compartilharmos com pessoas diferentes. Isso porque a comida que comemos, as vestimentas, as nossas línguas de origens, falam de diferentes tipos de ancestralidades, de ancestrais. Portanto, eu posso falar como uma pessoa negra, zulu, já uma pessoa xhosa é outra pessoa. Entendem o que estou dizendo? Estamos falando dessas múltiplas camadas que se entrelaçam.

Agora, como podemos combater tudo isso em diferentes formas de arte? Precisamos falar com cada um e aprender sobre as culturas de outras pessoas, porque há uma cultura dentro de uma outra cultura. Há a cultura negra, há tribos, que formam parte das culturas negras, há idiomas, há comida (típica), e isso significa que precisamos nos relacionar como os povos daquele país. E entendermos, talvez, os idiomas de cada um para não que ninguém seja deixado para trás. Entendermos as tribos de cada um e a forma como essas tribos vivem. Precisamos aprender sobre cada um como um país. Aprender o que significa a arte zulu, a ndebele, a xhosa. Temos 11, 12 ou 13 idiomas oficiais e cada uma dessas tribos tem sua maneira de fazer as coisas.

A arte pode nos ajudar a nos relacionar com cada pessoa de forma a aprender com ela e compartilhar sua cultura, para que possamos ouvir o que o outro está dizendo. Se tivesse sido assim, ninguém nos teria dividido. Viemos de um passado em que o sistema colonial dividiu as pessoas em termos de língua, culturas, etc. Havia uma estratégia em apartar as pessoas em lutas desnecessárias. E acredito que através da arte possamos evitar qualquer tipo de guerra que nos divida novamente.

Em 2001, em sua cidade, Durban, aconteceu a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, da qual surgiu a Declaração de Durban, em que os países signatários se comprometeram a combater o racismo. Porém, não há determinação das nações em cumprir com essa declaração. Como vê isso?

Temos que ser muito cuidadosos ao falarmos sobre política, em termos gerais, porque é tão complicado e complexo. Estou tentando documentar o que está diretamente relacionado a mim, que é a política de gênero e que precisa fazer parte de um sistema que nos excluiu anteriormente. Quando falamos da política, em geral, estamos falando de um sistema ou talvez de uma estratégia formada por um grupo de pessoas que fizeram algo injusto.

Quando falamos desse sistema, estamos falando de outras gerações. Ao mencionarmos a Declaração de 2001, estamos falando de 24 anos atrás. E há24 anos, tínhamos uma outra geração no poder. E não havia as tecnologias que nos permitem fazer coisas que podemos fazer agora. Também eram diferentes partidos políticos. Brasil e a África do Sul tinham outras governanças em 2001. Portanto, não posso afirmar que os sistemas falharam em se adaptar à essa declaração em razão das mudanças nos Parlamentos.

Estamos falando de como a arte pode salvar as vidas, de como a arte pode ser a melhor estratégia para falar do que não é muito falado, de como a arte pode ser usada para a educação, de como a arte pode nos ajudar a aprofundar histórias que poucas pessoas estavam dispostas a falar. Estes são acontecimentos passados, que agora os artistas estão se aprofundando a pesquisar e a recontar essas histórias. Portanto, os artistas têm um papel importante e corajoso para pesquisar e falar sobre todas essas verdades.

Sobre a Declaração de Durban, é apenas um acordo entre muitos governos e isso aconteceu na África do Sul. Não sei o quanto o governo atual está olhando para essa geração mais jovem de líderes que ainda sofrem com as diferenças. Podemos dizer que eles continuam com o que trabalho que foi feito anteriormente.

Também, estamos falando sobre uma jovem democracia, porque em 2001 eram apenas nove anos (das primeiras eleições multirraciais). E quantas mulheres foram excluídas destas reuniões, sem lhes darem o direito de fazer qualquer coisa? De repente, as leis foram mudadas e elas tiveram que se adaptar a um sistema que as exclui e não lhe permite ter seus direitos. E como lidamos com isso? Talvez essa declaração possa falar sobre o agora ao mencionarmos essas mulheres na África do Sul. É uma questão difícil. Porque, sim, o mundo estava na Conferência Mundial contra o Racismo na África do Sul. Ainda existe o racismo naquele país? Sim, certamente.

Em 2006, a África do Sul admitiu o casamento gay. Gostaria de saber como você considera seu país nesse assunto, considerando outras nações africanas como a Uganda, que penalizam as comunidades gays.

A Uganda é um estudo de caso, onde sabemos que as leis foram mudadas para derrotar as pessoas gays e os homossexuais, o direito de existência deles, como nos é delatado. Mas eu quero falar sobre a responsabilidade dos pais, das famílias e dos colegas, que veem que há uma questão. Qual é a nossa reação imediata para garantir que ninguém seja deixado para trás? Por isso sigo falando sobre as desigualdades.

Não quero ir longe, estou aqui agora, no Brasil, e venho da África do Sul. Estamos falando de grandes governos. Estamos aqui, em um país onde muitas mulheres trans são mortas. O que acontece no Brasil? Não ouvimos muitas histórias de mulheres trans mortas em Uganda. Estou certa? Sim. Então como não nos concentramos no aqui e no agora? Como lutamos contra todas essas discriminações e essa violência que permanece em nossos países? Na África do Sul, escrevemos sobre isso na mídia.

Agora estamos falando de uma Uganda que não pode ter uma exposição desse tipo. E o que podemos aprender com a Uganda, como seres humanos? Entendeu o que estou dizendo? Porque agora todos nós falamos sobre a Uganda, mas a Uganda não tem tanta violência.

E um grupo de ativistas jovens na Uganda conseguiu desafiar o sistema deles. Agora, vamos falar daqui. Como podemos garantir que todas as pessoas trans deste país estejam seguras? E o que devemos fazer para que elas encontrem refúgio na presença de seus companheiros. E o que dizem os movimentos sociais sobre os maiores níveis de desigualdades neste país?

Qual é a sua impressão sobre o Brasil? Há alguma semelhança com a África do Sul?

Gosto daqui, é um país bonito, cheio de possibilidades. Há semelhanças em termos de clima, porque o clima impacta nossa saúde, nossos corpos, nossas energias e como funcionamos, sabe? São pessoas muito lindas. E há tanto amor nas comunidades. Passei um tempo em Salvador, com uma comunidade de Iemanjá que vive nas alturas! Isso me deixou com uma impressão tão amorosa. Foi uma experiência. Há muito o que falar sobre o que aprendi neste país. Não posso dizer que posso mudá-lo. Mas pude aprender e talvez compartilhe o que acho que sei. Tenho histórias de pessoas daqui que estão na exposição do Instituto Moreira Salles.

Como vê o avanço da extrema direita no mundo?

É uma questão de nos comunicarmos com os outros. Porque se falarmos de direita ou de esquerda, estaremos falando de pessoas, como você e eu. E no minuto em que essas pessoas se tornarem agressivas, precisamos encontrar maneiras de fazê-las se entenderem.

Para cada pessoa que projeta alguma forma de ódio, porque estamos nos referindo a dominadores, precisamos nos engajar em maneiras que não projetem a violência.

Na África do Sul, dizem que foram mais de 400 anos para lidar com a apatia, para lidar com a escravidão e com todo esse tipo de ódio racial. E as pessoas repetem a desordem que acontece hoje. Portanto, precisamos encontrar uma maneira razoável de nos aproximar. Porque não há necessidade de brigar. As pessoas precisam estar em paz consigo mesmas, inclusive para poder amar as outras pessoas. Porque se você não se ama, obviamente você quer que tudo seja uma desordem. No momento em que decidirmos nos engajar para resolver isso da melhor maneira possível, então a paz irá chegar.

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