Ascensão e queda dos povos Tupi

A partir exames de DNA, pesquisadora traça história do tronco de etnias que, em mil anos, espalhou-se da Amazônia a toda a costa brasileira. Chegaram a ser 5 milhões, assimilaram diversas culturas e foram dizimados após chegada do colonizador

Guerreiros Mundurukus, parte da família linguística tupi – Foto: Lunae Parracho/Reuters
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Por Ricardo Zorzetto, na Pesquisa FAPESP

Por um período de quase 10 séculos, os povos nativos da América do Sul falantes de línguas tupi prosperaram e se dispersaram por vastas áreas do continente. Em um evento demográfico e migratório iniciado há quase 3 mil anos, eles partiram do sudoeste da Amazônia e, percorrendo rios e terra firme, ocuparam da costa do Atlântico ao sopé dos Andes, alcançando também territórios ao sul do rio da Prata – algumas dessas regiões estão a mais de 5 mil quilômetros (km) de distância umas das outras. Conhecida como expansão tupi, essa diáspora durou mais de um milênio e possivelmente só encontra paralelo na disseminação dos povos de língua banto do oeste para o centro e sul da África, ocorrida mais ou menos no mesmo período. Nessa conquista de boa parte da América do Sul, inferida a partir de registros arqueológicos, etnográficos e linguísticos, os Tupi expulsaram alguns povos e assimilaram outros, espalhando sua cultura e língua, sem perder o domínio sobre os territórios antigos.

Análises das características genéticas de 75 indivíduos de 13 povos atuais falantes de línguas tupi sugerem agora que essa expansão territorial pode ter sido acompanhada de um expressivo crescimento demográfico, que multiplicou por 100 a população tupi. Comparando a extensão de trechos do genoma compartilhados pelos integrantes dessas etnias, a equipe coordenada pela geneticista Tábita Hünemeier, da Universidade de São Paulo (USP), concluiu que esse incremento populacional teria começado por volta de 2.100 anos atrás e atingido seu auge próximo ao ano 1000, quando, de acordo com os cálculos, a população tupi pode ter somado entre 4 milhões e 5 milhões de indivíduos, um contingente quase comparável ao que integraria séculos mais tarde a população do Império Inca na cordilheira dos Andes.

Imediatamente após o ápice, a vasta nação tupi teria entrado nos cinco séculos seguintes em um acentuado declínio, agravado após a chegada do colonizador europeu, segundo estimativas apresentadas em um artigo publicado em 7 de dezembro na revista Molecular Biology and Evolution. “Não se fazia ideia de quão devastadora teria sido a redução populacional dos Tupi. Estimativas anteriores sugeriam uma diminuição de 90% nessa população. Nossos dados indicam que foi de 99%, menor apenas que o colapso enfrentado pelos Asteca após a chegada dos conquistadores espanhóis”, afirma Hünemeier.

O censo populacional de 2010, o mais recente realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indica a existência de aproximadamente 270 mil indígenas que falavam algum dos mais de 40 idiomas desse tronco linguístico. O tamanho da população indicado pelas análises genéticas (a chamada população efetiva), no entanto, é quase sempre menor do que o tamanho real que essa população teve. O método usado pelos geneticistas mede com mais precisão expansões e retrações populacionais ocorridas no passado e perde acurácia quanto mais próximo do presente, em especial em populações que diminuem muito de tamanho e perdem diversidade genética, como a dos Tupi. Apesar dessas limitações, esses cálculos permitem ter uma boa ideia do que ocorre ao longo do tempo.

“Esse trabalho é tudo o que um arqueólogo gostaria de ler sobre a expansão tupi, porque traz informações genéticas para um debate que até então se baseava em dados de arqueologia e linguística”, comenta a arqueóloga Adriana Schmidt Dias, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em história indígena e arqueologia do período pré-colonial.

O expressivo aumento populacional sugerido pela genética reforça a hipótese apresentada em 1984 pelo arqueólogo gaúcho José Proenza Brochado. A partir de evidências de que os ancestrais dos povos de língua tupi já produziam objetos de cerâmica e praticavam uma forma inicial de agricultura, Brochado propôs que o motivo da dispersão dos Tupi teria sido o aumento contínuo da população e a necessidade de novas terras para produzir alimento, e não apenas consequência de mudanças no clima. Em uma hipótese inicial, dos anos 1920, antropólogos e linguistas sugeriam que a redução nas áreas de floresta, decorrente de mudanças no clima naquela época, teria forçado os ancestrais dos falantes de línguas tupi, que viviam da caça, pesca e coleta de frutos, a migrar em busca de alimento (ver Pesquisa FAPESP nº 288).

Uma evidência do impacto que essa expansão pode ter causado à época é a provável assimilação cultural do povo Kokama, da porção peruana da Amazônia. Há muitas gerações eles falam tupi, mas a equipe da USP viu agora que eles são geneticamente muito mais próximos dos Chamicuro, seus vizinhos, de língua arawak, do que dos demais grupos falantes de tupi. “Essa pode ser uma primeira confirmação de assimilação cultural decorrente da expansão tupi, algo já sugerido por estudos linguísticos, mas que ainda não havia sido demonstrado por outras ferramentas”, conta Hünemeier.

Fonte: Revista Pesquisa FAPESP

A estimativa do que ocorreu com a população tupi ao longo de quase 100 gerações integra uma análise mais ampla realizada pela equipe da USP, que vem ajudando a compreender como interagiram as etnias nativas antes da chegada dos europeus ao continente sul-americano e como a influência recíproca que exerceram umas sobre as outras ajudaram a moldar os grupos indígenas atuais. No trabalho publicado na Molecular Biology and Evolution, que reúne uma das maiores amostras já estudadas de material genético de populações nativas da América do Sul, o geneticista Marcos Araújo Castro e Silva, primeiro autor do artigo, comparou também as características genéticas dos grupos falantes de línguas tupi com os de outros 229 indivíduos de 39 populações indígenas que falam outras línguas e se distribuem pelo Centro-Oeste do Brasil, pela Amazônia e pelos altiplanos dos Andes e pela região costeira do oceano Pacífico.

Dessa comparação, parte do doutorado de Castro e Silva feito sob a orientação de Hünemeier, emerge uma conclusão que contradiz uma visão antiga da arqueologia e da antropologia: a de que, por influência de uma separação física imposta pela cordilheira dos Andes, os povos dos altiplanos andinos e da costa do Pacífico, no extremo oeste do continente, guardariam distinções genéticas importantes dos habitantes das vastas extensões de terras baixas e planas cobertas por florestas e savanas da porção leste da América do Sul.

Talvez influenciada pela narrativa histórica dos conquistadores espanhóis das terras andinas, que, assim como os Inca, viam a floresta amazônica como temível e impenetrável, essa ideia – a chamada Divisão Andes-Amazônia – só começou a ser posta em dúvida com mais vigor nos últimos 15 anos. Esse questionamento decorre de uma maior interação de linguistas, arqueólogos e historiadores com geneticistas, antropólogos e etnógrafos, como relatam o historiador Adrian Pearce, o linguista Paul Heggarty e o arqueólogo David Beresford-Jones no livro Rethinking the Andes-Amazonia divide, publicado em 2020 pela UCL Press.

Por muito tempo os estudiosos da formação dos povos nativos da América do Sul viram a drástica e repentina transição de paisagem entre os cumes da cordilheira dos Andes e as terras baixas da Amazônia, possivelmente sem par em outras regiões do mundo, como uma barreira física quase intransponível. Por essa razão, após a chegada à América do Sul há pelo menos 15 mil anos, as populações que se estabeleceram a oeste e a leste do continente teriam se comunicado pouco. Essa interpretação era corroborada por evidências históricas e até dados genéticos iniciais que indicavam que os Andes e a costa do Pacífico eram lar de sociedades grandes e complexas, conectadas entre si, enquanto na Amazônia predominavam grupos populacionais pequenos e isolados.

No estudo atual, a equipe da USP não observa uma divisão genética marcante entre os povos atuais do oeste e do leste, esperada caso houvesse uma patente Divisão Andes-Amazônia. Em vez disso, os dados mostram uma transição gradual de oeste para leste, com um leve, mas perceptível, decréscimo da diversidade genética. Essa redução de variabilidade é explicada pelo fato de a cordilheira e a costa do Pacífico terem abrigado populações que em certos momentos foram muito grandes e bastante conectadas, o que favorece que, ao longo de gerações, elas tenham se tornado mais homogêneas entre si sem perder diversidade. Já populações menores e com menos interações, como as das terras baixas da Amazônia, costumam apresentar redução da variabilidade e se tornar homogêneas internamente (há uma maior homogeneidade intrapopulacional) e mais distintas de outras populações. “A Amazônia pode ser a região das Américas em que os povos nativos apresentam a mais baixa diversidade genética, provavelmente uma das menores do mundo”, conta Castro e Silva.

Apesar da redução de diversidade, não há isolamento genético entre oeste e leste. As populações do oeste da Amazônia e da encosta oriental dos Andes mantêm um nível de conexão genética com as do altiplano e da costa do Pacífico semelhante ao observado entre elas e as das terras baixas da Amazônia. Por essa razão, os Kokama e Chamicuro, no Peru, e os Suruí, Karitiana, Munduruku e Gaviões, no oeste da Amazônia, funcionariam como populações de sutura entre as do leste e do oeste do continente. Se a interação – e a consequente troca de material genético – entre os povos das terras baixas da Amazônia e os dos Andes e da costa do Pacífico diminuiu a partir do contato com o colonizador europeu, ela foi bem mais alta no período pré-colombiano, revelam segmentos idênticos do genoma compartilhados por diferentes populações atuais.

“A mistura genética de linhagens andina e amazônica em populações da encosta oriental dos Andes elimina os equívocos sobre uma divisão estrita entre os Andes e a Amazônia, mas ainda temos de conciliar esse sinal genético com as evidências culturais do comércio e troca na direção oposta, da Amazônia aos Andes”, afirma a antropóloga molecular italiana Chiara Barbieri, da Universidade de Zurique, na Suíça, que anos atrás esteve na América do Sul e coletou amostras de material genético de povos andinos do Peru, Colômbia e Bolívia.

A comparação das características genéticas das 52 populações da América do Sul feita pela equipe da USP permitiu ainda a identificação de sete grupos de acordo com o grau de similaridade genética: três na porção mais oeste do continente e quatro na leste (ver mapa). “Nas regiões de floresta e savana do Brasil, o que corresponde à maior parte do território nacional, identificamos quatro agrupamentos de similaridade genética que refletem parcialmente a diversidade linguística”, conta Hünemeier.

Fonte: Revista Pesquisa FAPESP

Um desses clusters reúne os povos das regiões central e leste da Amazônia, incluindo a costa do Atlântico. Ele indica que os Apalai e Arara (falantes de língua karib) e os Wajãpi, Asurini, Urubu-Kaapor, Parakanã e Tupiniquim (de língua tupi) têm mais semelhanças genéticas entre si do que com os outros grupos. Um segundo cluster reúne sete etnias falantes de tupi (Piapoco, Kokama, Gavião, Karitiana, Munduruku, Suruí e Zoró) distribuídas pelo oeste da Amazônia e as faldas da cordilheira dos Andes – a separação entre os Tupi do leste e os do oeste já havia sido sugerida, mas não registrada como agora. De tradição linguística jê, os Xavante, do Centro-Oeste do Brasil, e os Xikrin, da região central da Amazônia, formam um grupo à parte, mais diferente geneticamente de todos os demais, enquanto as três etnias Guarani (Mbyá, Ñandeva e Kaiowá), todas da região do rio da Prata e falantes de tupi, constituem o quarto cluster.

“O artigo revela aspectos da história nativa do continente difíceis de reconstruir apenas a partir de dados arqueológicos”, comenta Barbieri. “Casos locais de conexão genética entre falantes de famílias de línguas diferentes descrevem processos complexos de etnogênese [formação dos grupos étnicos] decorrentes de migrações culturais e demográficas”, explica a pesquisadora italiana.

Projeto

Diversidade genômica dos nativos americanos (nº 15/26875-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Tábita Hünemeier (IB-USP); Investimento R$ 1.362.808,03.

Artigo científico
CASTRO E SILVA, M. A. et al. Population histories and genomic diversity of South American natives. Molecular Biology and Evolution. 7 dez. 2021.

Livro
PEARCE, A. J. et al. Rethinking the Andes-Amazonia divide. UCL Press, 2020.

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