Um caminho para frear a devastação do Cerrado

Metade do bioma já foi desmatado para a produção de commodities — e é o destino de 73,5% dos agrotóxicos do país. Organizações pressionam por PEC que pode protegê-lo com arcabouço jurídico especial contra a devastação do agronegócio

Foto: Agência Brasil
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Por Adriana Amâncio, em O Eco

Dezenas de organizações de defesa do Cerrado preparam um processo de mobilização no Congresso Nacional pela votação da PEC 504. A proposta de emenda altera a Constituição Federal, de forma a incluir o Cerrado como patrimônio nacional.

De autoria do senador Demóstenes Torres (DEM-GO), a PEC passou em janeiro de 2023 pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados, após 13 anos de tramitação nesta Casa, e está pronta para ser votada em Plenário.

O artigo 225 da Constituição Federal, da forma como está redigido, define como patrimônios nacionais a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira do Brasil. Por estarem descritos desta forma na lei suprema do país, tais biomas recebem tratamento especial de proteção.

“[Com a inclusão do Cerrado] A gente espera  ganhar força, tanto política quanto juridicamente, para demandar a implantação de políticas públicas voltadas para a defesa do Cerrado e dos seus povos. A gente espera poder citar o artigo 225 da Constituição como fundamento jurídico em processos judiciais que envolvam o bioma”, defende Joice Bonfim, advogada e secretária executiva  da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

Na mobilização planejada, está prevista a retomada da petição “Junte-se a mim na defesa do Cerrado e da Caatinga! Exija que sejam Patrimônios Nacionais!”, que já conta com mais de meio milhão de assinaturas.  

Estão previstos ainda o relançamento de uma nota técnica sobre a importância do Cerrado brasileiro, além de rodadas de negociação com os parlamentares que assumiram compromisso público com o bioma em suas candidaturas eleitorais em 2022. 

Célia Xacriabá (PSOL), deputada federal que faz parte do grupo citado acima,  disse a ((o))eco que “fará todos os esforços para garantir as articulações políticas em torno da PEC em Brasília”. 

Segundo a parlamentar, dentro do Congresso é forte o lobby para que a expansão agrícola avance sobre o Cerrado. “Certamente faremos todo o debate para tentar obstruir toda a tentativa de passar a boiada e também o veneno [agrotóxicos]. Veja se os deputados que vocês votaram estão comprometidos com o Cerrado ou com o PL do Veneno, se são contra ou a favor do bioma”, recomenda, categórica. 

Os deputados Federais Camila Jara, Patrus Ananias e Nilto Tatto, do PT, e Luiza Erundina, Taliria Petrone e Glauber Braga, do PSOL,  devem engrossar o quórum pela PEC 504. Nas eleições de 2022, eles assumiram compromisso público com o bioma, assinando a carta-compromisso em defesa do Cerrado, lançada pela Campanha Nacional.

Bioma sob pressão

Em agosto de 2022, o Cerrado sediou uma sessão especial do Tribunal Permanente dos Povos (TPP). Na sentença do júri, o Estado brasileiro e empresas do agronegócio que atuam no bioma foram condenadas pelos crimes de Ecocídio do Cerrado e genocídio dos seus povos.

O Tribunal Permanente dos Povos é um júri de opinião internacional que julga crimes cometidos contra povos e minorias. Apesar de ser um tribunal simbólico, uma condenação pelo TPP pode criar pressão internacional sobre governos e ter sua decisão encaminhada para o Tribunal de Haia, onde são julgados crimes contra a humanidade, e para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ratificada pelo Brasil.

No âmbito do TPP, o ecocídio é entendido como o extermínio em larga escala de espécies animais e vegetais em ecossistemas. Já o genocídio refere-se ao extermínio total ou parcial de um grupo étnico, religioso ou cultural.

Segundo os dados produzidos para a peça de acusação da sessão, o desmatamento no Cerrado foi o motivo principal para a sentença dada pelo Tribunal Permanente dos Povos. Atualmente, 110 milhões de hectares do bioma (49% do total) já foram destruídos, sendo substituídos pelo cultivo extensivo de commodities agrícolas, principalmente soja, milho, cana-de-açúcar e algodão, ou usado para extração de matérias-primas voltadas à produção industrial.

Além dos prejuízos para flora e fauna, tais culturas também impactam diretamente os recursos hídricos do bioma. Dados do TPP apontam que 60% das outorgas da Agência Nacional das Águas (ANA) estão em nome de empresas do agronegócio que atuam no Cerrado.

Alavancado pela produção de commodities, o Cerrado também está no topo de outro triste ranking, o de maior consumidor de agrotóxicos do Brasil. A região consome 73,5% do total de agroquímicos comercializados no Brasil. Isso resulta em cerca de 600 milhões de litros de veneno despejados, anualmente, por via aérea e terrestre. 

De acordo com Joice Bonfim, da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, o objetivo é que, uma vez aprovada, a PEC 504 possa funcionar como arcabouço jurídico para alavancar propostas que freiem os principais problemas do bioma. “A gente espera que a PEC 504 seja como um guarda-chuva, onde a gente possa implementar todas as pautas de combate aos problemas do Cerrado”, pontua.

Criança indígena segura cartaz da campanha em defesa do Cerrado. Foto: Eanes Silva.
Campanha em defesa do Cerrado. Foto: Eanes Silva

Direitos humanos violados

“Futuramente todos nós vamos ser um zumbi”, afirma Erileide Domingues, uma das lideranças do povo indígena Guarani Kaywoá, referindo-se ao efeito provocado pelo agrotóxico aplicado nas culturas de commodities que cercam o seu território. Junto com outras famílias, ela vive no território indígena Guarani Guyraroká, na área rural de Caarapó, no Cerrado sul matogrossense.

Essa região é cercada por imensas lavouras onde, de forma intercalada, são produzidas soja, milho e cana-de-açúcar. A cada 15 dias, se o tempo for chuvoso, a produção recebe agrotóxicos por pulverização aérea. Sem a ocorrência de chuva, a aplicação é feita a cada trinta dias. Segundo Erileide, “no tempo [do cultivo] da soja é pior, pois a pulverização é mais por via aérea e mais frequente”, completa.

Além de atingirem as pessoas, os produtos aplicados já afetam os cultivos tradicionais – como milho, feijão, arroz e batata-doce – e a produção de sementes nativas. “Dá coceira, dor de barriga, coceira no olho.  A gente não conseguiu colher porque o veneno não deixa as plantas crescerem. As que nascem não germinam. Nós não conseguimos mais as sementes nativas, está tudo contaminado”, lamenta.

Com a perda da plantação, os Guarani, continua Erileide, contam com cestas básicas doadas pelo governo para complementar a alimentação. Infelizmente, diz ela, além de conter muitos ultraprocessados, que não fazem parte da cultura alimentar de seu povo, muitos alimentos chegam sem condições de consumo. “Os indígenas cultivam seus próprios alimentos. O que o governo dá, às vezes, vem até estragado.” 

Em 2019, uma pulverização aérea de pó de calcário e agrotóxico atingiu estudantes em uma escola e idosos da comunidade, provocando irritação na pele, enjoo, diarreia e dores de cabeça. A nuvem de agroquímicos permaneceu na aldeia Kaiowá por cinco dias. 

Com a contaminação e perda da vazão, a utilização dos principais rios que cortam o território Guarani Kaywoá também foi afetada. De acordo com a cultura indígena, o rio é terapêutico. “A gente acredita que a água que corre leva as dores. Infelizmente, como está tudo poluído, a gente deixou de tomar banho. O rio Puitã perdeu o volume de água, fecharam as nascentes [quer dizer que a nascente secou], o rio ficou mais seco”, afirma Erileide, em tom de lamento.

Além da pressão dos agrotóxicos, as cerca de 120 famílias Guarani Kaiowá esperam pela demarcação das suas terras. Em 2004,  a Fundação Nacional do Índio (Funai) identificou e delimitou 11 mil hectares de terra para a etnia. Cinco anos mais tarde, em 2009, o Ministério da Justiça declarou as terras como sendo de ocupação tradicional indígena. 

Em 2014, no entanto, o Superior Tribunal Federal (STF) anulou a demarcação e, atualmente, as famílias vivem em 55 hectares de terra, cercadas pelas fazendas de commodities. Nessa demarcação, as famílias perderam acesso a um rio importante localizado em sua comunidade.

“A gente tem que suportar isso e esperar a demarcação. O governo anterior era anti-indígena. Nós sofremos muito. Nós, indígenas, somos mais vulneráveis. A gente precisa de terra para continuar a nossa vida, com a nossa cultura. Nós do Mato Grosso do Sul, os indígenas, falam que terra é vida. Para um indígena, não se pode viver sem terra”, conclui Erileide.

Assim como Guarani Kaiowá, diversos outros povos e comunidades tradicionais do Cerrado sentem a pressão das imensas fazendas de soja à sua volta. Na sessão Cerrado do Tribunal dos Povos, foram denunciados 15 casos que reúnem graves violações de direitos humanos. 

Milhares de comunidades e povos tradicionais têm vivenciado esta realidade no bioma, como mostra o portal da sessão Cerrado do TPP. As fontes ouvidas nesta reportagem afirmam que há muitos outros espalhados pelo bioma. 

A Convenção para Repressão ao Genocídio, em seu artigo 2, diz que também se configura crime de genocídio a “submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão à sua destruição física, total ou parcial”. 

A  jurista e ex-procuradora da República Débora Duprat explica que o artigo indica que genocídio também se caracteriza por retirar as condições de existência de um povo. “Com a intenção de eliminar esses grupos, você os submete a situações que os impeça de existir como tradicionais”, explica. 

O que se espera alavancar com a PEC 504

Na avaliação da integrante da Campanha Nacional do Cerrado, Joice Bonfim, os últimos anos foram de “retrocessos graves para o Cerrado, especialmente na política fundiária e socioambiental”. 

Com o novo cenário político, a advogada afirma que espera que sejam implementadas políticas públicas para reparar esses danos ambientais. Segundo ela, a aprovação da PEC 504 pode contribuir com isso.

“Contamos com a aprovação da PEC como um fundamento para exigir alterações nas políticas de ampliação das áreas protegidas do Cerrado, na revisão do Código Florestal, passando o limite da área de reserva florestal de uma propriedade para 40%, e na revisão profunda da política de água, dando prioridade ao consumo humano. Considerando que os povos e comunidades tradicionais é que protegem o Cerrado, [também se espera que a PEC 504 alavanque] a realização da titulação das terras indígenas e outras comunidades tradicionais. Hoje, menos de 40% das 338 terras indígenas do Cerrado são tituladas”, conclui Joice.

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