Ucrânia: a guerra volta-se contra quem a atiçou

Aos poucos, EUA dão-se conta de que não sufocaram a Rússia, não amedrontaram a China e arriscam-se a perder até mesmo o apoio da Europa. Uma lenda da Antiguidade pode explicar seu desastre

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Michael Hudson, com tradução em A Terra é Redonda | Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel

Heródoto (História, Livro 1.53) conta a história de Creso, rei da Lídia (c. 585-546 a. C.), Estado antigo situado no que é hoje a parte mais ocidental da Turquia, na costa do Mar Egeu. Creso conquistou Éfeso, Mileto e os reinos vizinhos de língua grega, obtendo botins e tributos que o tornaram um dos governantes mais ricos de seu tempo. Mas essas vitórias e riqueza o conduziram à arrogância e à desmesura. Creso voltou então seus olhos para o leste, com a ambição de conquistar a Pérsia, governada por Ciro, o Grande.

Tendo dotado o cosmopolita templo grego de Delfos com substancial quantidade de ouro e prata, Creso resolveu consultar seu oráculo quanto a se ele teria sucesso na conquista que planejava. A sacerdotisa Pítia lhe respondeu: “Se você for à guerra contra a Pérsia, destruirá um grande império”.

Assim, Creso partiu para atacar a Pérsia em 547 a. C. Marchando para o leste, atacou a Frígia, estado vassalo da Pérsia. Ciro montou uma operação militar especial para repelir Creso, derrotando o exército de Creso e capturando-o. Aproveitou a oportunidade para apreender o ouro de Lídia e introduzir sua própria cunhagem de moeda de ouro persa. Assim, como previra o oráculo, Creso, de fato, destruiu um grande império: o seu próprio.

Olhando para a campanha atual do governo Joe Biden de avançar o poderio militar norte-americano contra a Rússia e, depois dela, a China, parece que esse presidente também pediu conselhos aos seus análogos contemporâneos do oráculo de Delfos: a CIA e os think tanks da sua órbita. Mas ao invés de alertar contra a arrogância, eles encorajaram o sonho neoconservador de atacar a Rússia e a China, na esperança desmesurada de consolidar de uma vez por todas o controle norte-americano da economia mundial e alcançar o “Fim da história”.

Tendo organizado um golpe de estado na Ucrânia em 2014, os Estados Unidos enviaram seu exército de procuração da OTAN para o leste, dando armas à Ucrânia para travar uma guerra étnica contra sua população de língua russa, na esperança também de transformar a base naval russa da Crimeia em uma fortaleza da OTAN. Na mesma perspectiva de Creso, essa ambição visava atrair a Rússia para o combate e esgotar sua capacidade de se defender, destruindo sua economia nesse caminho e, de quebra, sua capacidade de fornecer apoio militar à China e a outros países visados pelos Estados Unidos por buscar a autossustentação como alternativa à hegemonia norte-americana.

Depois de oito anos de provocações, um novo ataque militar contra os ucranianos russo-falantes foi preparado de forma muito evidente, para ser lançado em direção às fronteiras russas em fevereiro de 2022. A Rússia protegeu seus compatriotas russos étnicos de mais violência, montando sua própria Operação Militar Especial. Os Estados Unidos e seus aliados da OTAN imediatamente apreenderam as reservas cambiais da Rússia mantidas na Europa e na América do Norte, e exigiram que todos os países impusessem sanções contra a importação de energia e grãos russos, esperando que isso derrubasse a taxa de câmbio do rublo.

O também délfico Departamento de Estado esperava que isso causasse a revolta dos consumidores russos e derrubasse o governo de Vladimir Putin, abrindo caminho para as manobras norte-americanas de instalar uma oligarquia clientelar, como a que havia sustentado na década de 1990, sob a presidência de Boris Yeltsin.

Um dos subprodutos desse confronto com a Rússia seria o de garantir o controle dos Estados Unidos sobre seus satélites da Europa Ocidental. O objetivo dessa manobra intra-OTAN era impedir o sonho da Europa de lucrar com relações comerciais e de investimento mais estreitas com a Rússia, trocando suas manufaturas industriais por matérias-primas russas. Os Estados Unidos descarrilaram tal expectativa, ao explodir os gasodutos Nord Stream, impedindo o acesso da Alemanha e de outros países ao gás russo de baixo preço. Isso deixou a principal economia da Europa dependente do gás natural liquefeito (GNL) norte-americano, de custo mais alto.

Além de ter que subsidiar o gás doméstico europeu para evitar a insolvência generalizada, uma grande proporção de tanques Leopard alemães, mísseis Patriot dos Estados Unidos e outras “armas milagrosas” da OTAN estão sendo destruídas em combate contra o exército russo. Tornou-se claro que a estratégia norte-americana não é apenas “lutar até o último ucraniano”, mas lutar até o último tanque, míssil ou outras armas que estiverem disponíveis nos estoques da OTAN.

Esperava-se que esse esgotamento das armas da OTAN criasse um vasto mercado de reposição, para enriquecer o complexo militar-industrial norte-americano. Os clientes na OTAN estão sendo instruídos a aumentar seus gastos militares para 3 ou até 4% do PIB. Mas o fraco desempenho das armas americanas e alemãs no campo de batalha ucraniano pode ter destruído esse sonho, enquanto as economias da Europa mergulham na depressão. E com a economia industrial da Alemanha perturbada pelo corte de seu comércio com a Rússia, o ministro das Finanças alemão, Christian Lindner, disse ao jornal Die Welt em 16 de junho de 2023 que seu país não pode empenhar mais recursos no orçamento da União Europeia, para o qual, há muito tempo, vinha sendo o maior contribuinte.

Sem as exportações alemãs para apoiar a taxa de câmbio do euro, a moeda ficará sob pressão frente ao dólar à medida em que a Europa comprar GNL e a OTAN reabastecer seus estoques esgotados de armas com a compra de novo armamento norte-americano. Uma taxa de câmbio mais baixa reduzirá o poder de compra da mão-de-obra europeia, enquanto a redução dos gastos sociais para pagar o rearmamento e fornecer subsídios ao gás já está afundando o continente em uma depressão.

Uma reação nacionalista contra o domínio norte-americano está crescendo em toda a política europeia e, em vez de os Estados Unidos manterem seu controle sobre a política europeia, podem acabar perdendo-o –e não apenas na Europa, mas em especial em todo o Sul Global. Em vez de transformar o “rublo em escombros”, como prometeu o presidente Joe Biden, a balança comercial da Rússia disparou e seu suprimento de ouro aumentou. O mesmo aconteceu com as reservas de ouro de outros países cujos governos agora pretendem desdolarizar suas economias.

É a diplomacia norte-americana que está lançando a Eurásia e o Sul Global para fora da órbita dos Estados Unidos. O impulso arrogante do país para dominar um mundo unipolar só poderia ter sido desmantelado tão rapidamente por dentro. A administração Biden-Blinken-Nuland fez o que nem Vladimir Putin nem o presidente chinês Xi Jinping poderiam esperar alcançar em um período tão curto. Nenhum dos dois estava preparado para lançar o desafio e criar uma alternativa à ordem mundial centrada nos Estados Unidos. Mas as sanções norte-americanas contra a Rússia, Irã, Venezuela e China tiveram o efeito de barreiras tarifárias protetoras para forçar a autossuficiência, naquele espaço que o diplomata da União Europeia, Josep Borrell, chamou de “selva” mundial, fora do “jardim” dos Estados Unidos/OTAN.

Ainda que o Sul Global e outros países se queixem do domínio norte-americano desde a Conferência de Nações Não-Alinhadas de Bandung, em 1955, eles careciam de massa crítica para criar uma alternativa viável. No entanto, sua atenção se concentrou agora no confisco americano das reservas oficiais em dólares da Rússia nos países da OTAN. Isso dissipou qualquer imagem do dólar como recurso seguro para manter uma poupança internacional. A apreensão anterior, pelo Banco da Inglaterra, das reservas de ouro da Venezuela mantidas em Londres – prometendo doá-las a quaisquer oponentes não eleitos (ao seu regime socialista) que os diplomatas americanos designassem – mostra como a libra esterlina e o euro, assim como o dólar, foram transformados em armas. A propósito, o que aconteceu com as reservas de ouro da Líbia?

Os diplomatas americanos evitam pensar nesse cenário. Eles confiam na única vantagem que os Estados Unidos ainda têm a oferecer: abster-se de bombardear suas vítimas, de encenar revoluções coloridas para “pinochetá-los” pelo National Endowment for Democracy, ou instalar novos “Yeltsins” que entreguem as economias locais a oligarquias clientelares. E tal abstenção é tudo o que os Estados Unidos podem oferecer. Eles desindustrializaram sua própria economia, e sua ideia de investimento estrangeiro não é mais que criar oportunidades monopolistas de rendimento, concentrando monopólios tecnológicos e o controle do comércio de petróleo e grãos em mãos norte-americanas, como se isso fosse eficiência econômica, e não mera predação de riqueza.

O que aconteceu, então, foi uma mudança na consciência. Estamos assistindo à maioria global buscar a criação de uma opção independente e pacificamente negociada a propósito de que tipo de ordem internacional ela quer. Seu objetivo não é apenas criar alternativas ao uso do dólar, mas todo um novo conjunto de alternativas institucionais ao FMI e ao Banco Mundial, ao sistema de compensação bancária SWIFT, ao Tribunal Penal Internacional e a toda a gama de instituições que os diplomatas americanos sequestraram das Nações Unidas.

O resultado será civilizacional em escopo. Não estamos vendo o “Fim da história”, mas uma nova alternativa ao capitalismo financeiro neoliberal centrado nos Estados Unidos e à sua economia ruinosa de privatização e de guerra de classes contra o trabalho. A ideia de que o dinheiro e o crédito devem ser privatizados nas mãos de uma estreita classe financeira, em vez de ser uma utilidade pública para financiar as necessidades econômicas e aumentar os padrões de vida, está finalmente enfrentando seu acerto de contas.

A ironia é que o papel histórico dos Estados Unidos tem sido o de que, ainda que eles mesmos não tenham sido capazes de liderar o mundo nesse sentido, suas tentativas de prender o mundo em um sistema imperial antitético, pretendendo bater a Rússia nas planícies da Ucrânia e isolar a tecnologia chinesa (em seu esforço de quebrar o monopólio norte-americano de TI), foram os grandes catalisadores que acabaram afastando a maioria global dos Estados Unidos.

Michael Hudson é professor na Universidade de Missouri, Kansas City. Autor, entre outros livros de Super Imperialism: the economic strategy of american empire (Islet).

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente no site do autor.

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