Titan, ou o declínio cultural dos burgueses

Retrato das mudanças de mentalidade das elites. Se o magnata do Titanic representava o ideal capitalista de legitimar a dominação, o do Titan revela a busca de inovação vazia pelos super-ricos em nome do fetiche da experiência única

Aliás, toda inovação remonta a uma catástrofe:

novas ferramentas, teorias e sentimentos – isso se chama evolução.

 Hans Magnus Enzensberger

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Por Jerônimo Teixeira, na Piauí

Stockton Rush queria salvar o mundo. O presidente da OceanGate acreditava que o futuro está na exploração dos oceanos, não do espaço: “Não teremos uma base em Marte, ou na Lua. Vamos tentar e desperdiçar muito dinheiro nisso. Vamos ter uma base embaixo d’água”, disse ele, em 2021, em entrevista ao mexicano Alan Estrada, que mantém um popular canal de turismo no YouTube. Rush previa que os oceanos serão nosso “bote salva-vida” quando o planeta estiver irremediavelmente poluído, e que os mares profundos, onde há correntes térmicas e seres que não precisam de luz para viver, abrigarão a humanidade depois que o Sol se apagar. A anunciada salvação da espécie levou seu profeta à danação: Rush morreu, junto com quatro clientes seus, na implosão do submersível da OceanGate, o Titan. 

Benjamin Guggenheim queria cumprir seu dever. Foi o recado que o empresário americano deixou em suas horas finais no navio cujos escombros a OceanGate ambicionava transformar em atração turística: “Se acontecer alguma coisa, diga à minha mulher, em Nova York, que fiz o melhor no cumprimento do dever”, disse o milionário. Houve quem sugerisse que o camareiro Henry Samuel Etches, o sobrevivente que transmitiu a mensagem à família, teria edulcorado esse discurso, de olho em alguma recompensa financeira. Mas outras testemunhas confirmaram que Guggenheim foi incansável nas horas finais do transatlântico, ajudando mulheres e crianças a se instalarem nos botes. Ele e seu valete, Victor Giglio, vestiam traje de gala quando foram vistos pela última vez. “Estamos vestindo o que temos de melhor, preparados para afundar como cavalheiros”, disse Guggeinheim. Encerrado o trabalho no deque, ele se acomodou para beber brandy até as águas geladas finalmente engolirem o Titanic.

Os dois empresários americanos tiveram a vida brutalmente abreviada mais ou menos no mesmo ponto do Atlântico Norte – Guggenheim, aos 46 anos, na madrugada de 15 de abril de 1912; Rush, aos 61, no último dia 18 de junho. A repercussão pública de suas mortes não poderia ser mais contrastante. Epítome da honra e da elegância, o homem que afundou como um cavalheiro incorporou-se à lenda do Titanic. Reputado como responsável por sua própria morte e a de seus passageiros, o visionário da OceanGate sofreu a pior humilhação póstuma que se conhece na era do Twitter e do TikTok: tornou-se um meme.

Nas notícias que li sobre a morte de Rush, nada se dizia sobre sua delirante visão de colônias submarinas que estariam a salvo da catástrofe ambiental (como se os mares já não estivessem bastante poluídos) e teriam autonomia para dispensar até a luz solar (ainda que isso fosse possível, de nada adiantaria: antes de esgotar seu combustível, nosso Sol se expandirá, calcinando a Terra daqui a 1 bilhão de anos). Da entrevista que ele deu ao programa de turismo no YouTube, citou-se apenas a passagem em que Rush admite que “quebrou regras” de segurança na construção do Titan, empregando fibra de carbono em boa parte do casco.

Há uma curiosa ambivalência na condenação universal a Rush. Com justiça, ataca-se o empresário que corta custos colocando em risco os seus clientes. Mas os passageiros do Titan não são vistos como vítimas do descaso da OceanGate. Postagens ironizando os bilionários[1] que embarcam em um submersível comandado por um joystick inundaram as redes. Quando ainda não se sabia que o Titan implodira, uma piada no TikTok sobre o oxigênio que ainda restaria dentro do submersível chegou a mais de 1 milhão de visualizações – e este foi só um entre incontáveis vídeos debochando do desastre. Porque eram muito ricos e muito ruins na avaliação de riscos, Paul-Henri Nargeolet, Hamish Harding, Shahzada Dawood e seu filho Suleman receberam o escárnio póstumo.

“Deixe-me contar sobre os muito ricos. Eles são diferentes de você e de mim”, escreveu F. Scott Fitzgerald no conto O Garoto Rico. “Sim, eles têm mais dinheiro”, respondeu Ernest Hemingway em As Neves do Kilimanjaro. Nos 111 anos que transcorreram entre a colisão do Titanic com um iceberg e a implosão do Titan, a diferença material entre os absurdamente ricos e os restantes 99% da humanidade expandiu-se, dando razão a Hemingway. Mas, concedendo um ponto importante a Fitzgerald, também houve alterações radicais no modo como percebemos aqueles que acumulam quantidades obscenas de dinheiro – e no modo como eles se apresentam ao público.

Em O Burguês, o crítico italiano Franco Moretti examina como a literatura representou os integrantes da classe que, na teoria histórica marxista, domina a economia capitalista. O livro cobre do industrioso náufrago criado por Daniel Defoe aos capitães da indústria do teatro de Henrik Ibsen. No prólogo, surge um herói que não pertence à ficção – Benjamin Guggenheim. Moretti observa que sua morte honrosa, tão celebrada em 1912, parecia inverossímil em 1997, quando estreou Titanic, de James Cameron. O crítico imagina um pesquisador entusiasmado apresentando aos roteiristas do filme a história do empresário que se sacrificou por senso de dever. Embora a anedota impressione os ouvintes, ela não é incluída no enredo, pois ninguém mais acreditaria que os ricos morrem por “princípios abstratos como coragem”. Moretti equivoca-se quando diz que só sobrou no filme uma figura “vagamente parecida” com Guggenheim, que saca um revólver para disputar uma vaga nos botes. O empresário americano aparece rapidamente em Titanic; desarmado, profere a famosa frase sobre o traje adequado para um naufrágio – e então pede um brandy aos garçons.

Entre o ano da primeira e última viagem do Titanic e o ano em que seu naufrágio estourou nas bilheterias, dissipou-se, segundo Moretti, a “legitimidade” da burguesia. Morreu “a ideia de uma classe dominante que não apenas predomina, mas merece predominar”. O crítico acaba transformando Guggenheim em marionete de sua classe social: o empresário estaria obrigado a cumprir seu dever, pois do contrário colocaria em risco o prestígio burguês, essencial para manter o “direito ao domínio” (por acaso a morte por afogamento e hipotermia não seria um impedimento maior ao exercício da dominação?).

Descontado o determinismo marxista, Moretti está, creio eu, correto em afirmar que a legitimidade burguesa se esvaiu – e com ela toda uma vigorosa cultura que se plasmou na obra de Goethe, Balzac e Machado de Assis, entre outros autores examinados em O Burguês. Desconfio que Moretti dá outro passo largo demais ao postular que o relativo conforto material dos trabalhadores no capitalismo avançado colocou a mercadoria no lugar das pessoas – e que o capital hoje triunfaria oferecendo coisas, não heróis ou princípios.

Ora, ainda existem heróis da indústria – ou, pelo menos, pop stars do Big Tech, como Jeff Bezos e Mark Zuckerberg –, e muitos deles fazem profissões de fé em certos princípios genéricos. O atual vocabulário da legitimação abandonou os atributos pessoais – antigualhas como honra, caráter, honestidade, lealdade – em favor de vaporosas virtudes sociais – sustentabilidade, diversidade, inclusão. Na contramão dessa tendência, restam alguns paladinos da liberdade de mercado, como Elon Musk e Peter Thiel. Mas a diferença entre os progressistas e os libertários do Vale do Silício tende a ser mais discernível na retórica do que nas práticas empresariais.

Nesse mundo de tubarões, Rush era, com o perdão da analogia aquática, peixe pequeno. Do pouco que ouvi dele – e creio que não fui o único a tomar conhecimento da OceanGate só depois da morte de seu presidente –, me fica a impressão de que Rush tentava falar a linguagem do empresário que trabalha para um mundo melhor, mas não tinha desenvoltura para tanto. Na entrevista ao youtuber mexicano, ele empregou o mais gasto dos clichês corporativos – disse que a OceanGate “agregava valor à sociedade” – e se perdeu em uma elucubração confusa sobre a natureza da inovação. Até fiquei esperando que ele repetisse a frase de efeito vazia que certa vez ouvi do presidente de uma empresa jornalística: “Para fazer a diferença, é preciso fazer diferente.”

Benjamin Guggenheim não era o homem mais rico no Titanic. Essa posição era ocupada por John Jacob Astor iv, magnata do setor imobiliário que também afundou como um cavalheiro. Por ironia, J. Bruce Ismay – dono da White Star, a linha de transatlânticos do Titanic – hospedou-se no Hotel Waldorf-Astoria, a joia do império comandado pelo falecido Astor, quando desembarcou são e salvo em Nova York em 18 de abril de 1912. Ismay pulou em um dos últimos botes a deixar o Titanic e, como os demais sobreviventes, foi recolhido pelo navio Carpathia. 

O império de mineração dos Guggenheim foi erguido no século xix pelo patriarca da família, Meyer (1828-1905), um imigrante suíço judeu. Benjamin, seu filho, abdicou de parte de sua herança em 1901, quando deixou a sociedade com a família para se dedicar a negócios próprios. Ao embarcar no Titanic, no porto francês de Cherbourg, vinha de uma temporada de negócios em Paris, como presidente de uma empresa de máquinas a vapor. Entre outros empreendimentos, havia trabalhado na instalação de novos elevadores na Torre Eiffel. A empresa, porém, andava mal das pernas, por erros de gerenciamento.

Houvesse sobrevivido ao naufrágio, o que seria de Benjamin? Talvez levasse a vida suntuosa mas medíocre dos herdeiros que dissipam fortunas sem nada construir de novo. E seria lembrado apenas como pai de Peggy Guggenheim, a indomável colecionadora de arte que levou boa parte dos mestres modernistas para a cama.

A história de Rush não convida a especular sobre futuros alternativos. Se em 18 de junho o Titan houvesse emergido incólume do Atlântico, provavelmente implodiria em uma próxima viagem, pois é isso que costuma acontecer quando se negligencia a segurança de um veículo que precisa suportar a pressão da água a 4 mil metros de profundidade. A OceanGate oferecia esse item que é o fetiche de tantos ricaços: a experiência única, exclusiva, e ainda por cima embalada como a vanguarda da tecnologia e da pesquisa oceânica. Mas tudo se resumia a um passeio caro – 250 mil dólares (cerca de 1,2 milhão de reais) – a bordo de um veículo desconfortável e inseguro, para ver de perto a carcaça de um naufrágio que já foi extensamente filmado por submersíveis melhor equipados. Pode-se questionar a moralidade das piadas e memes sobre o acidente, ou acusar o ressentimento social que atravessa boa parte desse humor cruel. Mas é inegável que o empreendimento de Rush, com seu submarino-anão que se proclamava um titã, convida à ridicularização.

O Titanic, ao contrário, foi feito da matéria dos mitos: derrotado por um bloco de gelo flutuante, o navio de 46 mil toneladas que se elevava sobre o mar como um prédio de dez andares carrega a húbris humana frente às forças da natureza. O naufrágio capturou a imaginação do século xx já na primeira hora: três filmes sobre a tragédia foram realizados em 1912, o primeiro deles estrelado por uma atriz que sobreviveu ao naufrágio, Dorothy Gibson. Dos 2.200 passageiros, cerca de 1.500 morreram, e a proporção de vítimas por classe tornou-se uma representação eloquente da injustiça social: salvaram-se só 25% dos passageiros da terceira classe, contra 60% da primeira.[2] Até a infâmia que cobriu Ismay por não ter afundado com seu navio parece mais digna do que o vexame do pobre Rush – que, no entanto, morreu em seu submersível.

Em O Naufrágio do Titanic, notável ciclo de poemas publicado em 1978, o alemão Hans Magnus Enzensberger – morto em 2022, aos 93 anos – deu voz a um engenheiro que contempla seu fim iminente com frieza cínica enquanto o navio vai a pique. Bebendo um bom vinho do Porto, ele prevê que a catástrofe do Titanic abrirá caminho para inovações maravilhosas: “Enormes veleiros aéreos, baleias amestradas, nuvens de ferro.” A ambivalência do progresso moderno, criativo e destrutivo, está bem capturada no monólogo do engenheiro. Stockton Rush apresentava-se como um inovador, mas a modesta catástrofe do Titan não permite vislumbrar nem terror nem maravilha. A velha ambição burguesa produziu mitos. A empáfia dos novos super-ricos inspira memes.

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[1] Os mortos do Titan vêm sendo qualificados como bilionários na imprensa e nas redes sociais, mas nenhum deles constava na lista dos mais ricos do mundo da Forbes. De certo, pode-se afirmar que uma pessoa no submersível era apenas milionária: Stockton Rush.

[2] Números citados em How to survive the Titanic or the sinking of J. Bruce Ismay (Como sobreviver ao Titanic, ou o Naufrágio de J. Bruce Ismay), de Frances Wilson. Como esclarece a própria autora, a contagem de vítimas não é exata, por várias razões – talvez houvesse clandestinos a bordo, e a lista de passageiros incluiu pessoas que não chegaram a embarcar etc.  

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