Retrofits: salve-se quem puder pagar!

Prefeitura de SP despeja R$ 1 bilhão nas incorporadoras para reformar prédios antigos, alimentar a especulação e expulsar populações de áreas centrais. Vale olhar, em Portugal, esforço de política urbana para reabilitação de edifícios com função social

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Por Julia Azevedo Moretti e Ricardo de Sousa Moretti, na Le Monde Diplomatique Brasil

O que faz com que, no Brasil e em Portugal, se encontrem tantas edificações degradadas, vazias e ociosas num contexto em que há tantas pessoas precisando de um lugar para morar?

Assim como há milhões de pessoas com fome, num contexto em que há produção de alimentos suficientes para toda a gente, a estratégia hegemônica do salve-se quem puder pagar ajuda a responder essa discrepância estrutural. É uma estratégia que esmaga as tentativas de construção de políticas públicas voltadas para oferecer igualdade de oportunidades, que miram o bem estar de toda a gente e não somente daqueles que têm condições financeiras de pagar por bens e serviços.

Prédio desocupado no Centro de Belém

O que se pretende aqui apresentar e debater são algumas possíveis lições das políticas de reabilitação urbana e de edifícios de Portugal, na perspectiva de uma abordagem inclusiva de reabilitação no Brasil. Entende-se por abordagem inclusiva aquela que assegura permanência dos residentes nos imóveis debilitados após a reabilitação ou a destinação de habitações reabilitadas para atendimento da demanda de moradia por pessoas em condição de maior vulnerabilidade, especialmente nas faixas de menor renda onde se concentra o déficit habitacional.

Prédio desocupado em Baixa de Coimbra, em Portugal

Entende-se que a política de reabilitação de edifícios que está sendo conduzida atualmente em São Paulo não é uma iniciativa com foco na inclusão, nem está amparada em uma regulação urbanística que integra a reabilitação no ordenamento territorial e em políticas urbanas condizentes com a afirmação do direito à cidade. Em outubro de 2023 foi anunciado pela prefeitura de São Paulo um investimento de R$ 1 bilhão para apoiar as construtoras na ação de reabilitação de prédios na área central da cidade. Essa reabilitação está amparada por legislação aprovada em abril de 2021 (Lei Municipal nº 17.577/21) que concedeu generosos incentivos fiscais e urbanísticos para os interessados em promover o chamado retrofit de imóveis antigos. No retrofit, o prédio vazio (ou esvaziado) é objeto de reforma completa e posterior venda para aqueles que podem pagar o preço do imóvel reabilitado. É uma estratégia focada na viabilidade do negócio imobiliário. Essa orientação difere significativamente daquela que busca promover gradativa e progressiva melhoria dos edifícios, com moradores permanecendo neles enquanto se promovem as medidas e obras de melhoria do imóvel – em consonância com a pauta da regularização fundiária. Essa ideia do retrofit como mecanismo para promoção de alterações profundas na área de intervenção também difere de uma ideia de reabilitação capaz de valorizar os recursos e relações existentes enquanto garante o aproveitamento de espaços já construídos: o centro não está morto, mas as formas de comércio ou moradia existentes talvez não sejam valorizadas no circuito hegemônico do capital imobiliário e financeiro.

Mundo afora a reabilitação de edifícios faz parte das ações consideradas estratégicas, entre outros motivos, pelos fortes impactos ambientais provocados pela construção e, principalmente, pela demolição de edifícios. Essas ações integram, de forma mais abrangente, a proteção ao patrimônio construído, que neste texto se considera como a somatória das edificações produzida, incluindo aquelas de caráter histórico e monumental, mas também a edificação ordinária, envelhecida pelo passar do tempo e que precisa de manutenção e adequação de condições de uso. Vale destacar que as demolições estão acontecendo de forma escandalosa em São Paulo, com prédios em ótimas condições, de mais de dez andares, sendo colocados no chão para viabilizar outros, que se mostram mais lucrativos, em função de uma legislação absolutamente permissiva com relação ao direito de construir (figura 3).

Prédio a demolir em São Paulo

A reabilitação urbana e de edifícios pode ser vista sob dois diferentes prismas. Como forma de assegurar o prolongamento da vida útil do espaço urbano construído, para assim continuar prestando sua função de atendimento às necessidades humanas, ou seja, um prisma em que o valor de uso é destacado. Ou como forma de aumentar o valor de ativos imobiliários degradados, uma oportunidade para realização de negócios com maiores rendimentos para o capital, dinamização da economia e obtenção de lucros. O segundo é um prisma no qual o valor de troca é iluminado. No primeiro é importantíssimo assegurar a permanência daqueles que habitam essas edificações ou a região em que se inserem. No segundo, a ótica de negócios e de maximização dos lucros exige uma massiva substituição da população residente por uma parcela de mais alta renda, para viabilizar as margens de lucro da operação.

Esses dois prismas, do uso e da troca (com alguma rentabilidade) não são excludentes, sendo difícil identificar uma iniciativa de construção ou reabilitação com apenas uma dessas finalidades – veja-se a construção de múltiplas casas num lote para atender necessidades familiares ou gerar uma renda extra. Porém, sob a influência da forte onda neoliberal que se observa, algumas iniciativas de reabilitação de edifícios são hegemônicas na direção apenas de viabilizar um bom negócio imobiliário e atender a população de maior renda. Isso é o que acontece hoje em São Paulo, que tomou da experiência portuguesa apenas o que ela tem de problemática.

As diferenças ficam mais claras ao se analisar as respostas do Brasil e de Portugal à crise de 2008, que foi desencadeada pela transformação de imóveis residenciais em ativos financeiros que passaram a ser comercializados de forma especulativa. O Brasil, como uma das estratégias de enfrentamento da crise, buscou a ativação da economia por meio da construção massiva de habitações de interesse social, no Programa Minha Casa Minha Vida. Infelizmente, no afã de ampliação das margens de lucratividade, os empreendimentos foram produzidos predominantemente em terrenos periféricos das cidades brasileiras. Os países da Europa tiveram, entre suas estratégias principais de enfrentamento da crise, os investimentos na reabilitação urbana e de edifícios.

Em Portugal, em 2009 é aprovada uma legislação (Decreto-Lei 307) que cria o RJRU- Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, visando fomentar a indústria da construção com abertura de novas oportunidades de intervenção dos proprietários e outros parceiros privados na conservação dos espaços urbanos existentes. Faz isso por meio de uma ação concentrada do poder público nas áreas de reabilitação urbana, com ações associadas de caráter urbanístico nesses espaços, inserindo a reabilitação na estrutura de ordenamento territorial integrado e escapando a lógica clássica de controle (licenciamento e fiscalização) de obras em edificações. Conseguiu-se consolidar em um texto legal, com validade nacional, o conjunto das regulamentações fragmentadas que valiam para a reabilitação.

Em 2014, algumas regras de reabilitação são alteradas para fazer frente ao baixo investimento privado na reabilitação. Essa orientação segue a tendência no direito do urbanismo português que aposta num Estado regulador, que se afasta de uma intervenção direta e se apoia em captação de investimento privado com atuação concertada por meio de contratos. E assim surge o Decreto-Lei nº 53/2014 que estabelece um regime excepcional e temporário a ser aplicado à reabilitação de edifícios ou de frações cuja construção tenha sido concluída há pelo menos trinta anos ou localizados em áreas de reabilitação urbana, sempre que estejam afetos ou se destinem total ou predominantemente ao uso habitacional. Ou seja, é uma legislação que passa a ser aplicada não somente nas áreas de reabilitação urbana e flexibiliza padrões técnicos, ampliando o entendimento do princípio da proteção do existente, além de simplificar procedimentos de licenciamento de obras. A justificativa desse Decreto-lei, que instituiu o Regime Excecional de Reabilitação Urbana (Reru), indica que:

“a reabilitação do edificado existente em Portugal representa apenas cerca de 6,5% do total da atividade do setor da construção, bastante aquém da média europeia, situada nos 37%. Acresce que, de acordo com os Censos 2011, existem cerca de dois milhões de fogos a necessitar de recuperação, o que representa cerca de 34% do parque habitacional nacional (…).

Prevê-se a flexibilização e simplificação dos procedimentos de criação de áreas de reabilitação urbana, criando um procedimento simplificado de controlo prévio de operações urbanísticas e regulando a reabilitação urbana de edifícios ou frações, ainda que localizados fora de áreas de reabilitação urbana, cuja construção tenha sido concluída há pelo menos 30 anos e em que se justifique uma intervenção de reabilitação destinada a conferir-lhes adequadas caraterísticas de desempenho e de segurança.

O decreto-lei adota medidas excecionais e temporárias de simplificação administrativa, que reforçam o objetivo de dinamização, de forma efetiva, dos processos administrativos de reabilitação urbana e dispensa as obras de reabilitação urbana da sujeição a determinadas normas técnicas aplicáveis à construção, quando as mesmas, por terem sido orientadas para a construção nova e não para a reabilitação de edifícios existentes, possam constituir um entrave à dinamização da reabilitação urbana”.

Essa interface da regulação urbanística com as normas técnicas é um dos gargalos da reabilitação. A viabilidade de reabilitar edifícios antigos no Brasil encontra dificuldades associadas à tentativa de aplicar normas recentes de acessibilidade, instalação elétrica, proteção contra incêndio, segurança estrutural, entre outras, em edificações produzidas quando não existiam essas regras. Já em Portugal, desde 1999 a legislação previa que não se deve aplicar as regras previstas para novas edificações nas reformas e reabilitações de edificações antigas (artigo 60 do Decreto-lei 555/99, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – Rjue). Porém, como dito, em 2014 o princípio da proteção do existente é ampliado e, na dimensão técnica, passa a ser exigido apenas que se demonstre que as obras avançam com relação à situação anterior.

Em 2019 o regime excepcional (Reru) é revogado e são aprovados novos parâmetros normativos pelo Decreto-Lei n.º 95/2019, que define diferentes patamares de intervenção de reabilitação de edifícios, buscando assegurar que a obra se aproxime tanto mais do atendimento das normas técnicas aplicáveis para edificações novas quanto maior for o investimento a ser executado na reforma da edificação. Definem-se as situações em que podem ser usadas medidas alternativas às da regulamentação aplicável a edifícios novos. É definido o valor de 300 euros por metro quadrado como um divisor de águas e há uma regulamentação que prevê o investimento associado a cada tipo de intervenção, para se verificar se a intervenção ultrapassa esse patamar. O marco legal de 2019 constitui avanço no sentido de estimular a melhoria progressiva do imóvel, consolidando o conceito de que a pequena melhora também é importante e não se pode exigir nela as normas atuais. Define-se claramente os casos e situações em que é possível flexibilizar a aplicação das normas atuais.

Enfim, passos importantes foram dados na estruturação de um regime jurídico integrado de reabilitação em Portugal, inserindo essas intervenções num quadro mais amplo da regulação urbanística, ordenamento e gestão do território. Porém, à semelhança dos desafios brasileiros, pouco se conseguiu avançar em modelos de governança mais cooperativos nem na acessibilidade de habitação para os moradores locais, conforme relatado por Rosa Branco e Sonia Alves[1] e constatado em visitas de campo (imagens 4 e 5).

Organização popular de luta pelos direitos à moradia

A trajetória da reabilitação urbana e de edifícios em Portugal sinaliza alguns avanços necessários no Brasil. É urgente que se inclua no Estatuto da Cidade a reabilitação como contraponto a um modelo de desenvolvimento urbano com constante expansão das cidades e espraiamento territorial, especialmente num contexto de coexistência de crises como a crise climática. Nesse contexto, manter e recuperar edifícios e áreas urbanas centrais significa valorizar o espaço construído, resultado de esforços e investimentos públicos, uma riqueza coletiva que está relacionada à própria cidade e à vida urbana. Entender a reabilitação como parte do ordenamento territorial e importante política urbana é medida urgente para romper com estratégias fragmentadas, descontínuas e centradas apenas nas iniciativas dos proprietários em seus lotes já edificados. Também é importante incluir na legislação federal orientações gerais que deverão ser seguidas pelas leis estaduais e municipais que regulamentam os projetos de reabilitação urbana e de edifícios. É fundamental que se estabeleça que as normas aplicáveis a edifícios novos não podem ser exigidas integralmente na reabilitação urbana e de edifícios antigos e que, de forma semelhante ao previsto na legislação portuguesa, se consiga definir os casos e situações em que podem ser usadas medidas diferenciadas daquelas aplicadas aos edifícios novos, prevendo-se mecanismos gradativos e progressivos de manutenção e melhoria. Faz-se necessário também o estabelecimento de regras gerais que possam coibir a demolição orientada apenas pela ótica de maximização de lucros imobiliários, sem considerar a função social da propriedade, prevista no texto constitucional brasileiro.

Imóvel à venda na perspectiva de rentabilização, na cidade do Porto

Acima de tudo, é preciso posicionar o debate a partir da proteção da riqueza social materializada na cidade (e não só nos prédios e nas infraestruturas) e da legitimação das diversas formas, usos, saberes envolvidos na construção do território. Só assim será possível impulsionar uma reabilitação inclusiva, orientada pela permanência dos moradores e por medidas de intervenção progressivas e gradativas atreladas a estratégias territoriais capazes de afirmar o direito à cidade – um direito coletivo, de todos os habitantes da cidade, presentes e futuros, permanentes ou transitórios, de usar, ocupar, produzir, transformar, participar da gestão e usufruir de uma cidade justa, inclusiva, segura, sustentável e democrática.

Constata-se que o rumo adotado por São Paulo, que ilumina e prioriza a lógica do valor de troca e de viabilização da operação imobiliária, toma da experiência portuguesa o que ela tem de problemático e não consegue avançar em alguns tópicos estruturais que já foram por eles superados. Salve-se quem pode pagar!

Julia Azevedo Moretti é advogada e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo e pós-doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo nº 2022/16700-0.

Ricardo de Sousa Moretti é engenheiro civil, mestre e doutor pela Escola Politécnica da USP e professor visitante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.

[1] BRANCO, Rosa; ALVES, Sonia. “Urban rehabilitation, governance, and housing affordability: lessons from Portugal” in Urban Research and Practice, vol. 13, nº 2, p. 157-179, 2020.

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