Quando o futebol virou alegria do povo

Há 100 anos, conquista da Copa América pelo Brasil abriu caminho para que futebol deixasse de ser esporte de elite, e se tornasse popular. Vale conhecer a história, tão distante dos megaeventos milionários e palanques políticos de hoje

O público brasileiro no Estádio das Laranjeiras. Chapéu era um adorno comum naquela época. Foto: Acervo Flu-Memória
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Por Caio César de Souza Gomes, no Ludopédio

Os onze jogadores de camisa branca que entraram em campo no dia 21 de Julho de 1914 não faziam ideia da história que começariam a escrever. Era o aniversário do pentacampeão carioca Fluminense, que sediava a partida amistosa em comemoração aos seus doze anos de existência. Do outro lado do Campo da Rua Guanabara, em Laranjeiras, havia um clube inglês que vinha de uma excursão acachapante na Argentina: o Exeter City, com cinco vitórias, um empate e apenas uma derrota. Enfrentar o time britânico mobilizou uma solução inusitada, até então: reunir os melhores jogadores do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nascia, assim, o embrião da primeira seleção brasileira.

Seleção brasileira campeã no Campeonato Sul-Americano de 1919, disputado também no Brasil. Foto: Acervo Flu-Memória

O Brasil entrou em campo com Marcos Carneiro de Mendonça; Píndaro, Nery e Lagreca; Ruben Salles, Rolando, Abelardo e Oswaldo Gomes; Friedenreich, Osman e Formiga. O combinado tinha sete jogadores de times cariocas e quatro de times paulistas. Os grandes destaques eram o goleiro Marcos de Mendonça, jogador já reconhecido por seu talento, Campeão Carioca pelo América-RJ em 1913 e recém chegado ao Fluminense, e para o artilheiro Arthur Friedenreich, do Ypiranga-SP, considerado um dos maiores jogadores brasileiros da era amadora do futebol nacional.

O Exeter, clube da região Sul da Inglaterra, por pouco não deixou de escrever essa história. Primeiro, porque o Tottenham foi, de início, o clube a ser convidado para a viagem. Segundo, porque, apesar dos resultados positivos na Argentina, os ingleses se incomodaram com a violência nos jogos, as arbitragens e até mesmo com as ameaças feitas fora de campo. Irritados, quase decidiram voltar à Europa. Mas antes decidiram passear por São Paulo e Rio de Janeiro, quando então receberam o convite para o amistoso em comemoração de aniversário do Fluminense. O time brasileiro formado em pouco tempo não demorou a dar liga: em 30 minutos já vencia os ingleses por 2 a 0, gols do tricolor Oswaldo Gomes e do americano Osman. O placar não mudaria dali para a frente, e a seleção começaria sua coleção de vitórias na sede do Fluminense: além daquela teria outras doze.

Marcos Mendonça: líder dentro e fora dos gramados

Em 1918, Marcos era tido como um dos maiores pilares do Fluminense e da seleção brasileira. Mas antes de vestir as cores do clube e do Brasil, já era reconhecido por inovar na posição de goleiro. Dono de reflexos apurados e um estilo inconfundível debaixo das traves com seus 1,87 metros de altura, Marcos de Mendonça foi o goleiro do primeiro título carioca do América, em 1913. Acumulou fama e prestígio, em uma época onde jogar no gol era algo reservado aos menos habilidosos com a bola nos pés.

Marcos Carneiro de Mendonça. Foto: Acervo Flu-Memória

Antes do título com o clube rubro, havia jogado pelo Haddock Lobo, entre 1910 e 1912, quando decidiu se aventurar no gol depois de receber o aval médico. Marcos, nascido na cidade mineira de Cataguases, teve uma infância cercada de doenças e uma saúde frágil: contraiu febre amarela e sarampo, além de problemas intestinais e pulmonares. Sempre cercado de cuidados, foi orientado a não fazer grandes esforços físicos.

Seu amor pelo futebol fez com que as traves tornassem seu refúgio, já que assim não teria o mesmo esforço que seus companheiros de linha e iria correr o menos possível. Após a saída de inúmeros sócios do América, Marcos acompanharia a debandada e acabaria indo para o Fluminense, já em 1914, sendo goleiro titular do clube até 1922. Nesse mesmo período, foi titular da seleção brasileira.

Para o escritor e cineasta Heitor D’Alincourt, fundador e membro do acervo Flu-Memória, Marcos de Mendonça pode ser considerado o primeiro ídolo do futebol brasileiro. 

“Ele era, além de talentoso embaixo das traves, um galã. As moças iam até o Estádio do Fluminense para vê-lo jogar, então ele personificou bem essa coisa de ser o primeiro ídolo do futebol nacional”. 

Ao lado de Chico Netto e Vidal, Marcos formava o “triângulo de ouro” defensivo do futebol carioca pelo Fluminense, mas somente o arqueiro esteve presente na convocação para o selecionado que disputara o torneio em 1919, confirmando a sua preferência e prestígio na posição.

Chico Netto, Marcos Mendonça e Vidal. Foto: Acervo Flu-Memória

Dhaniel Cohen, historiador e membro do Flu-Memória, departamento do Fluminense responsável por zelar e reviver as histórias e glórias do clube, detalha a importância do arqueiro na elaboração do que viria ser o Estádio das Laranjeiras: “O Marcos falou pessoalmente com Arnaldo Guinle, presidente do Fluminense em 1917, sobre a importância da construção de um Estádio para o Sul-Americano de 1918”.

Público brasileiro lotou o Estádio das Laranjeiras para acompanhar a seleção. Foto: Acervo Flu-Memória

Segundo Cohen, o goleiro percebeu que a pressão dos torcedores fez muita diferença quando o Brasil enfrentou os argentinos em 1916 e os uruguaios em 1917. Era preciso fazer o mesmo em solo brasileiro. Arnaldo Guinle, presidente tanto do Fluminense quanto da CBD (Confederação Brasileira de Desportos) e membro de uma das famílias cariocas mais tradicionais, topou a ideia. O Fluminense iniciou, então, as obras do que seria seu novo estádio, mas, por conta do surto de gripe espanhola, tanto o Sul-Americano quanto a inauguração do Estádio das Laranjeiras foram adiados para 1919.

As arquibancadas de madeira que até então cercavam o Campo da Guanabara foram, curiosamente, compradas pelo Sport Club do Recife e saíram de navio rumo ao Nordeste do Brasil. No lugar delas, uma grande estrutura de concreto passou a formar o Estádio das Laranjeiras. Aqui é preciso pontuar um fato pouco difundido, pois, segundo Cohen, o nome original era “de Laranjeiras” e não “das Laranjeiras”, como acabou ficando conhecido popularmente o primeiro estádio do Brasil construído com esse tipo de material. O campo, que já havia visto o surgimento da seleção brasileira e também do clássico Fla-Flu, em 1912, assistia naquele momento ao Sul-Americano de 1919, o primeiro torneio internacional realizado em solo brasileiro. Em maio de 1919, brasileiros, argentinos, uruguaios e chilenos lutariam pelo título da terceira edição do torneio.

O primeiro jogo, gols e título da seleção

Em 11 de maio, a inauguração do Estádio das Laranjeiras, nova casa do Fluminense e da seleção, contou com uma sonora goleada do Brasil sobre o Chile: 6 a 0, com direito a três gols do craque Friedenreich. A goleada causou burburinho nas ruas do Rio de Janeiro nos dias seguintes. Era, de acordo com Cohen, o famoso “despertar das multidões”. Como em um estalar de dedos, todos queriam estar nas arquibancadas do estádio para acompanhar os jogos do Brasil.

Em 1919, com uma sociedade brasileira borbulhando de mudanças, as arquibancadas do Fluminense tiveram importante papel no início de uma construção de identidade nacional. Um verdadeiro frenesi urbano começou a partir da primeira vitória. Ao menos, este é o discurso de D’Alincourt:

“Laranjeiras foi o ponto de encontro de uma sociedade brasileira repleta de mudanças. Isso foi muito importante pois o Brasil começou a despertar ali a paixão pelo futebol e ter um palco, como o Estádio das Laranjeiras, foi de extrema importância para popularização do esporte no país”.

Aquelas arquibancadas não pararam de ver gols. O Brasil venceu a Argentina por 3 a 1 na segunda partida do Sul-Americano e iria decidir o torneio contra os atuais campeões uruguaios. Franzini destaca a importância da campanha brasileira no Sul-Americano e o fato de a grande final ser contra os uruguaios: “Era a primeira vez que a seleção chegava tão longe no torneio, e o fato de decidi-lo contra os uruguaios, campeões das duas edições anteriores, aumentava mais a expectativa”.

Jogadores disputam bola em Brasil 3 x 1 Argentina pelo Campeonato Sul-Americano de 1919. Foto: Acervo Flu-Memória

Na partida decisiva, o empate em 2 a 2 forçou um novo jogo. De novo, Marcos seria decisivo: uma falha em um dos gols do Uruguai não sairia de sua cabeça até o jogo derradeiro. Em 29 de maio de 1919, 18 mil pessoas se dirigiram ao Estádio das Laranjeiras para ver o embate derradeiro entre Brasil e Uruguai. A importância da partida era tanta que Delfim Moreira, presidente da República em exercício, decretou ponto facultativo nas repartições públicas da capital federal.

No campo, o Brasil venceria por 1 a 0, com novo gol de Friedenreich, dessa vez aos três minutos da prorrogação depois de um rebote do goleiro Saporiti após chute de Heitor. Por fim, uma partida soberba de Marcos de Mendonça com grandes defesas, superando o erro do jogo anterior. Era o primeiro título que germinava uma grande rivalidade com argentinos e uruguaios. Para Franzini, era também a primeira sensação de orgulho patriótico proporcionado pelo futebol: “apesar do forte sotaque britânico, o football unia o país e proporcionava a vívida manifestação popular”.

O título no Sul-americano transforma o futebol em principal esporte no país

O título conquistado sobre os uruguaios no Sul-Americano de 1919 despertou não só o sentimento dos brasileiros pelo futebol, mas mostrou a todos o potencial que a seleção brasileira poderia atingir dentro do esporte. Para Filipe Mostaro, Doutor em Comunicação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), “A vitória do Brasil em 1919 marca a condição do futebol como uma expressão muito forte do imaginário nacional sobre algo que seria capaz de representar a nossa nação”.

O impacto da conquista foi bastante forte, já que a soberania de Argentina e Uruguai era muito grande no continente Sul-Americano: “vencer em casa estimulou o amor pelo futebol, essa paixão pelo esporte e essa ideia de que a nação estava bem representada por aqueles 11 homens em campo”, argumenta Mostaro. Mais do que isso, na opinião do pesquisador, o Sul-Americano de 1919 marca o início, mesmo que tímido, do profissionalismo do esporte no país, já que os jogadores paulistas receberam uma espécie de “ajuda de custos da CBD para participar do torneio em território carioca”.

As palavras de Franzini sintetizam a transformação vivida pelo futebol no Brasil com o título sul-americano e seus componentes nacionais:

“O inédito título continental transformara as chuteiras em expoentes de um traço nativo, no caso a individualidade brasileira, que distinguiria e colocaria, a partir dali, o Brasil em uma posição de superioridade diante de outras nações, ao menos dentro das quatro linhas”.

O futebol, então, toma o posto de principal esporte no país que, antes, era ocupado pelo turfe e remo.

Para o Brasil levantar seu segundo troféu, o sul-americano precisou retornar às Laranjeiras

Sem sucesso nos sul-americanos de 1920 e 1921, o Brasil solicitou a organização da edição de 1922 junto à CONMEBOL para celebrar o primeiro centenário de sua independência. O pedido foi prontamente atendido e, novamente, o Estádio das Laranjeiras receberia os jogos da competição. Mas o Brasil seria escolhido também para sediar os Jogos Olímpicos Latino-Americanos, precursor do Pan-Americano, recebendo a alcunha de “Jogos do Centenário ”, também em referência aos 100 anos da Independência do país.

Vista aérea do Estádio das Laranjeiras. Foto: Acervo Flu-Memória

O Fluminense foi procurado novamente e, devido à importância do evento, o estádio foi ampliado para 25 mil pessoas. Pela primeira vez, o Sul-Americano foi disputado por cinco seleções, já que o Paraguai se juntou aos tradicionais competidores. Como em 1919, as Laranjeiras provaram ser um local especial para a seleção. Brasil, Paraguai e Uruguai terminaram o torneio com um triplo empate na pontuação. Os uruguaios, no entanto, decidiram abandonar o campeonato como forma de protesto contra a arbitragem. A final, realizada em 22 de outubro de 1922, acabou com o placar de 3 a 0 do Brasil sobre o Paraguai, garantindo assim o segundo título brasileiro no torneio.

Após o bicampeonato, o Brasil jogaria apenas mais sete vezes no estádio do Fluminense. Entre eles, o primeiro jogo de uma seleção europeia no Brasil, contra a França, e a primeira partida entre o Brasil e os Estados Unidos, ambas em 1930. No total, foram 18 partidas no Estádio das Laranjeiras, com 13 vitórias e 5 empates, além de 51 gols a favor (média de 3,92) e 16 contra (média de 0,88). A história que começou frente aos ingleses do Exeter, em 1914, terminaria frente aos cariocas do Andaray, em 1932. A seleção brasileira seguiu seu caminho de glórias, mas seu início estará sempre vinculado àquele estádio e à conquista do sul-americano de 1919. A própria CBF, em seu site oficial, comemorou o centenário desse título e agradeceu ao Fluminense “pelo fato de o Estádio das Laranjeiras ter sido a primeira casa a receber, sempre tão bem, a Seleção Brasileira”.

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