Precarização: venda mentiras e ganhe R$ 20

Apps como o VintePila criam mercado subterrâneo de “marketing de influência”. Precarizados fingem-se até de médicos para prestar depoimentos fake em vídeo. “Freelancers do desespero” arriscam-se a processos por estelionato e fraude

Ilustração: Vitória Gomes/Darkstream
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Por Gabriel Daro, na Repórter Brasil

Depoimentos falsos em vídeo, comentários forjados sobre produtos e serviços, aumento artificial de seguidores nas redes sociais e na busca do Google. Por R$ 20, é possível encontrar esses e outros serviços no VintePila e no Vinteconto, plataformas brasileiras de ‘bicos’ on-line.

Inicialmente voltados para a contratação de designers, locutores e outros profissionais freelancers a preços módicos, estes sites acabaram criando um mercado paralelo de “marketing de influência” que pode expor trabalhadores a infrações à lei, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.

No caso da VintePila, por exemplo, a reportagem identificou um anúncio em que o contratante pedia que o freelancer, vestido de jaleco, gravasse um vídeo se passando por médico e falando bem de uma determinada empresa.

Patricia Peck, advogada especialista em direito digital, explica que a ação pode até infringir o artigo 282 do Código Penal, sobre exercício ilegal da medicina.

Em outro anúncio postado no VintePila, o freelancer recebe a missão de gravar um vídeo exibindo a própria conta bancária, dizendo ter obtido dinheiro por meio de um curso de “como ganhar uma renda extra”.

Ao contrário do VintePila, em que o contratante também pode publicar anúncios demandando serviços, o Vinteconto funciona como uma vitrine virtual restrita a prestadores.

Em outras palavras, a plataforma permite apenas que freelancers ofereçam sua mão-de-obra, geralmente com slogans do tipo “eu vou dar meu depoimento para o seu produto”.

Segundo Patricia Peck, vídeos com comentários aparentemente voluntários veiculados na internet, como os encontrados pela reportagem, precisam ser claramente divulgados como propaganda.

Caso contrário, esses freelancers podem responder por crimes contra a relação de consumo e até por contravenções penais, como estelionato.

A Repórter Brasil tentou fazer contato com o VintePile e o Vinteconto, mas não obteve resposta até o fechamento deste texto. A matéria será atualizada caso as empresas enviem um posicionamento.

‘Trabalho de ator’

A reportagem conversou com um prestador de serviço dessas plataformas. Desempregado, ele conta que buscou os sites durante a pandemia de Covid-19, pela necessidade de dinheiro rápido. Desde então, afirma já ter gravado cerca de 50 depoimentos.

No primeiro mês, ele relata ter recebido R$ 300 com o VintePila. Hoje, no entanto, por causa do excesso do que chama de “freelancers desesperados”, sua renda mensal não chega a R$ 100. Cursos online, apps de cassinos virtuais e até estimulantes sexuais já foram tema de depoimentos gravados por ele.

Prestador de serviços oferece “depoimento sincero”

Questionado sobre a veracidade dos produtos e serviços que ajuda a vender, ele compara o trabalho ao de um ator em comercial de TV, por ter de seguir um script mandado pelo cliente.

“Para mim, aquilo ali é um personagem. Eu nunca parei para pensar que existia esse lado aí [de infração à lei]”, diz.

Seu amor por R$ 20

A Repórter Brasil também pesquisou vídeos produzidos por freelancers do VintePila para a promoção de sites acusados de fraudes, como o “Retrato da Alma Gêmea”.

Com mais de 100 reviews negativos no ReclameAqui, o app cobra ao menos R$ 27,90 para que um médium desenhe o retrato da suposta alma gêmea do cliente.

No entanto, usuários relatam o envio de desenhos repetidos por parte do aplicativo. Também há queixas de pessoas que nem chegaram a receber seus pedidos, mesmo tendo pagado por eles. Outros reclamam por não terem conseguido o estorno dos valores.

Contatada pela Repórter Brasil, a empresa também não retornou até o fechamento deste texto. A identidade dos trabalhadores foi preservada para evitar possíveis perseguições virtuais.

Plataformas cientes das negociações

O VintePila se classifica como “uma plataforma na internet que fornece espaços para que vendedores ofereçam seus produtos ou serviços, e compradores possam adquirir esse produtos ou serviços”. Em seus termos de serviço, o site se isenta de qualquer responsabilidade por eventuais infrações à lei.

De maneira similar, os termos do Vinteconto também se eximem de responsabilidade legal, informando ainda que “é vedado aos usuários anunciar à [sic] venda ou comprar produtos que sejam proibidos ou violem a legislação vigente”.

Para evitar que clientes troquem contatos para negociar serviços por fora da plataforma, as empresas informam que todos os anúncios e mensagens são avaliados por moderadores da própria plataforma, antes de irem ao ar. Dessa forma, acabam tomando ciência de tudo o que é anunciado ou negociado.

Trecho do termo de serviço do VintePila, em que a empresa afirma monitorar as mensagens dos usuários

Essa moderação de mensagens e anúncios pode implicar legalmente as empresas, diz a advogada Patrícia Peck. “A partir do momento em que ela monitora e fica ciente de um ato ilícito, ela pode ser implicada por negligência, se não tomar uma providência”, pontua ela.

Os termos de serviço do VintePila e Vinteconto preveem a retenção de 20% de toda transação realizada em seus espaços. Para cada R$ 20 vendidos no site, somente R$ 16 caem no bolso do freelancer.

“A pessoa se envolve em um serviço desse e, no final, além de não ter ganhado o dinheiro que queria, ainda pode se envolver num problema judicial”, afirma Peck.

Frutos da informalidade

Matheus Viana Braz, professor de Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e pesquisador do trabalho digital, aponta que sites como VintePila e Vinteconto estão diretamente ligadas a um “prolongamento da informalidade” no Brasil, em que trabalhadores se mantêm por meio de bicos diversos.

“Agora, além de trabalhar como Uber e no iFood, há também a possibilidade de trabalhar nessas plataformas,” afirma à Repórter Brasil.

Para Braz, a necessidade de pagar as contas leva as pessoas a aceitarem serviços “clandestinos”, em zonas cinzentas da lei. Segundo o pesquisador, cabe às plataformas tomar medidas concretas para impedir a oferta de serviços potencialmente ilegais.

“Se a gente esperar que esse tipo de trabalho vai ser auto-regulado pelos trabalhadores de alguma forma, isso não vai acontecer. Eles estão ali porque precisam de dinheiro.”

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