Por uma “política digital não alinhada”

Com Trump, Big Techs querem blindar-se do escrutínio público e avançar seus projetos de colonialismo digital. Surge nova questão para as esquerdas: como criar alternativas criativas ao poder tecno-feudal que ultrapassa fronteiras, desestabilizando democracias?

Arte: The Electronic Frontier Foundation
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Cédric Durand, no A Terra é Redonda. Publicado originalmente no blog Sidecar da revista New Left Review | Tradução: Julio Tude d’Avila.

No romance O homem sem qualidades, que se passa em Viena, na véspera da Primeira Guerra Mundial, o general Stumm von Bordwehr questiona “Como é que aqueles diretamente envolvidos no que está acontecendo podem saber, de antemão, se aquilo será um grande evento?” Sua resposta é que “tudo que eles podem fazer é fingir para si mesmos que será! E, se me for permitido um paradoxo, eu diria que a história do mundo é escrita antes de acontecer; ela sempre começa como uma espécie de fofoca”.

No final de janeiro, com o retorno de Donald Trump ao poder, a fofoca se espalhou conforme os gigantes da indústria tecnológica se reuniram na inauguração. Assentos nas primeiras fileiras foram reservados para Mark Zuckerberg, da Meta, Jeff Bezos, da Amazon, Sundar Pichai do Google e Elon Musk, da Tesla, enquanto Tim Cook, da Apple, Sam Altman, da Open AI e Shou Zi Chew do Tik Tok, sentaram-se algumas fileiras atrás.

Alguns anos atrás a grande maioria desses bilionários apoiavam abertamente Joe Biden e os democratas. “Eles estavam todos com ele”, lembrou Donald Trump, “cada um deles, e agora estão todos comigo”. A questão crucial diz respeito à natureza desse realinhamento: trata-se de uma simples guinada oportunista, dentro dos mesmos parâmetros sistêmicos? Ou estamos diante de um momento de ruptura digno de ser chamado de grande evento histórico? Arrisquemos essa segunda hipótese.

Donald Trump, como sabemos, aprecia homenagens e gestos extravagantes. Quando cortesãos se reúnem em sua mansão em Mar-a-Lago, não parece uma miniatura de Versalhes? Mas o ex-presidente não é um aspirante a Luís XIV. Seu projeto não é centralizar a autoridade no Estado, mas sim fortalecer interesses privados às custas das instituições públicas. Ele já busca reverter as incipientes tentativas de intervencionismo da administração Joe Biden, revogando seus subsídios verdes, políticas antitruste e medidas tributárias, ampliando assim o campo de ação dos monopólios corporativos dentro e fora do país.

Dois de seus decretos executivos, assinados no dia da posse, sublinham essa tendência. O primeiro revogou um mandato da era Biden que exigia que “desenvolvedores de sistemas de Inteligência artificial que representassem riscos para a segurança nacional, economia, saúde ou segurança pública dos EUA compartilhassem os resultados dos testes de segurança com o governo americano”. Se antes as autoridades públicas tinham alguma influência sobre os avanços na fronteira da Inteligência artificial, agora essa supervisão mínima foi eliminada.

O segundo decreto anunciou a criação do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), chefiado por Elon Musk. Baseado em uma reorganização do US Digital Services – estabelecido sob Barack Obama para integrar os sistemas de informação entre diferentes ramos do Estado –, o DOGE terá acesso irrestrito a dados não classificados de todas as agências governamentais.

Sua primeira missão é “reformar o processo de contratação federal e restaurar o mérito no serviço público” garantindo que os funcionários do Estado tenham um “compromisso com os ideais, valores e interesses americanos” e “sirvam lealmente ao Poder Executivo”. O DOGE também irá “integrar tecnologias modernas” a esse processo, de modo que Elon Musk e suas máquinas terão a responsabilidade pela supervisão política dos funcionários civis federais.

Nas primeiras horas do segundo mandato de Donald Trump, portanto, os empreendedores do setor tecnológico conseguiram blindar do escrutínio público seus projetos mais lucrativos e, simultaneamente, ampliaram significativamente sua influência sobre a burocracia estatal. A nova administração não está interessada em usar o Estado federal para unificar as classes dominantes como parte de uma estratégia hegemônica. Pelo contrário, busca emancipar a fração mais agressiva do capital de quaisquer restrições federais significativas, enquanto obriga o aparato administrativo a se submeter ao controle algorítmico de Elon Musk.

O aumento da concentração de poder nas mãos de tecno-oligarcas não é, de forma alguma, inevitável. Na China, a relação entre o setor tecnológico e o Estado é volátil, mas o primeiro em geral é forçado a se acomodar aos objetivos do desenvolvimento do segundo. No Ocidente, órgãos públicos, em algumas ocasiões, também enfrentaram monopólios corporativos – quando o Congresso, o Departamento do Tesouro e o Fed se uniram para bloquear o Libra, projeto de cripto moeda do Facebook, em 2021.

Para o economista Benoît Cœuré, “a mãe de todas as questões é o equilíbrio de poder entre o governo e as Big Tech [as maiores empresas de tecnologia] na definição do futuro dos pagamentos e no controle dos dados relacionados”. Mas Donald Trump agora está inclinando ainda mais esse equilíbrio a favor das Big Techs. Na sequência de seus decretos executivos, ele tomou medidas instruindo os reguladores a impulsionar investimentos em criptomoedas, ao mesmo tempo em que impediu os bancos centrais de desenvolverem suas próprias moedas digitais, que poderiam atuar como um contrapeso. Podemos esperar mais políticas desse tipo no futuro: desregulação, isenções fiscais, contratos governamentais e proteções jurídicas.

Esse projeto radical, levado a cabo pela maior potência mundial, pode ter sérias implicações na redefinição da relação entre capital e o Estado, classes e países, por muitos anos. Isso ameaça acelerar um processo que, em outro lugar, descrevi como ‘tecno-feudalização’. À medida que grandes corporações monopolizam o conhecimento e os dados, elas centralizam os meios algorítmicos de coordenação das atividades humanas – desde as práticas de trabalho até o uso de redes sociais e os hábitos de consumo.

Com as instituições públicas cada vez mais incapazes de organizar a sociedade, essa tarefa passa para as Big Techs, que adquirem uma capacidade extraordinária de influenciar o comportamento individual e coletivo. A esfera pública se dissolve, assim, em redes online, o poder monetário se desloca para as criptomoedas e a Inteligência Artificial coloniza o que Marx chamou de “intelecto geral”, anunciando a progressiva apropriação do poder político por interesses privados.

O enfraquecimento de instituições mediadoras caminha de mãos dadas com um impulso antidemocrático, ou melhor, com um ódio à igualdade. Desde a publicação do manifesto tecno-otimista “Ciberespaço e o Sonho Americano”, em 1994, grandes partes do Vale do Silício aderiram ao princípio randiano [de Ayn Rand] segundo o qual criadores pioneiros não podem ser limitados por regras coletivas. O empreendedor tem o direito de passar por cima de seres mais fracos que ameaçam restringi-lo: trabalhadores, mulheres, minorias raciais e trans.

Daí a rápida aproximação entre os liberais californianos e a extrema direita, com Musk e Zuckerberg agora se apresentando como guerreiros culturais lutando para reverter a maré do “wokeness”. A governamentalidade algorítmica consagra o direito de “inovar” sem qualquer prestação de contas ao demos.

Esse regime de acumulação emergente também substitui a lógica da produção e consumo pela lógica da predação e dependência. Embora o apetite pelo excedente continue tão voraz quanto em períodos anteriores do capitalismo, o motivo do lucro das Big Techs é único. Enquanto o capital tradicionalmente investe para reduzir custos ou atender à demanda, o capital tecno-feudal investe para trazer diferentes áreas da atividade social para seu controle, criando uma dinâmica de dependência que enreda indivíduos, empresas e instituições.

Isso ocorre em parte porque os serviços oferecidos pelas Big Techs não são mercadorias como outras. Muitas vezes, são infraestruturas críticas das quais a sociedade depende. O gigantesco apagão da Microsoft no verão de 2024 foi um lembrete contundente de que aeroportos, hospitais, bancos e agências governamentais, entre outros, agora dependem dessas tecnologias – permitindo que os monopolistas cobrem aluguéis exorbitantes e gerem fluxos intermináveis de dados monetizáveis.

O resultado final desse processo é estagnação generalizada na economia global. Empreendimentos lucrativos em outros setores estão observando um enfraquecimento de sua posição de mercado conforme se tornam mais dependentes da “nuvem” e Inteligência Artificial, enquanto a população como um todo está sujeita às predações do capital rentista. A imensa necessidade de recursos dos tecno-feudalistas também leva a uma crescente destruição ecológica, com novos data centers de alta emissão de carbono surgindo em todo o mundo. À medida que o crescimento desacelera, a polarização política e a desigualdade econômica se aprofundam, com os trabalhadores disputando uma parcela cada vez menor da riqueza.

Isso levanta diversas questões estratégicas para a esquerda. Como a luta contra as Big Tech se relaciona com outras já existentes na disputa anticapitalista? Como devemos pensar o internacionalismo em uma era em que o poder tecno-feudal transcende fronteiras nacionais?

Aqui talvez valha a pena ter em mente os principais preceitos de Mao no clássico Sobre a contradição (1937), habilmente sintetizados por Slavoj Žižek: “A contradição principal (universal) não se sobrepõe à contradição que deve ser tratada como dominante em uma situação particular – a dimensão universal reside literalmente nessa contradição particular. Em cada situação concreta, uma ‘contradição particular’ diferente é a predominante, no sentido preciso de que, para vencer a luta pela resolução da contradição principal, deve-se tratar uma contradição particular como a predominante, à qual todas as outras lutas devem ser subordinadas”.

Hoje, a contradição universal continua sendo a da exploração capitalista, que opõe o capital ao trabalho vivo. No entanto, a ofensiva tecno-feudal representada por Donald Trump e Elon Musk pode alterar essa situação, criando uma nova contradição principal entre as Big Techs americanas e aqueles que elas exploram. Caso cheguemos a esse ponto, a tarefa da esquerda mudaria drasticamente.

Tomando as guerras coloniais da China como exemplo, Mao explica que “quando o imperialismo lança uma guerra de agressão contra um país desse tipo, as diversas classes dentro desse país, com exceção de um pequeno número de traidores da nação, podem temporariamente se unir em uma guerra nacional contra o imperialismo. A contradição entre o imperialismo e o país em questão torna-se então a contradição principal, e todas as contradições entre as várias classes dentro do país (incluindo a contradição, que antes era a principal, entre o regime feudal e as massas populares) passam temporariamente para segundo plano e assumem uma posição subordinada”.

No nosso contexto, isso significaria formar uma frente anti-tecno-feudal que vá além da esquerda, incluindo diversas forças democráticas e frações do capital em conflito com as Big Techs. Esse movimento hipotético poderia adotar o que poderíamos chamar de ‘política digital não alinhada’, com o objetivo de criar um espaço econômico fora do domínio dos monopólios, onde tecnologias alternativas pudessem ser desenvolvidas.

Isso, por sua vez, implicaria uma forma de protecionismo digital – negando acesso às empresas de tecnologia dos EUA e desmontando sua infraestrutura sempre que possível – além de um novo internacionalismo digital, no qual as pessoas compartilhariam soluções tecnológicas de forma cooperativa.

É claro que uma aliança desse tipo precisaria confrontar diversas barreiras estruturais. Por conta da complexa interpenetração de interesses capitalistas, com investimentos ligados uns aos outros atravessando diferentes setores e territórios, é difícil determinar que frações do capital estão mais alinhadas com as Big Tech e quais poderiam ser pressionadas a participarem de um movimento como esse.

Há também o fato de que as burguesias nacionais são, notoriamente, parceiros pouco confiáveis quando se trata de projetos de desenvolvimento fora do núcleo imperial; elas geralmente estão mais interessadas em aumentar sua própria riqueza rentista do que em promover o tipo de mudança estrutural que poria fim à dependência. E existe também o risco que, mesmo que tal reunião de forças fosse possível, uma frente anti-tecno-feudal fosse vulnerável à captura burocrática – confiando o desenvolvimento de alternativas digitais a especialistas, em vez de envolver ativamente as massas populares.

No entanto, os bilionários da tecnologia também têm seus próprios obstáculos a enfrentar. Seu projeto – usar uma aliança com Donald Trump para derrubar os últimos obstáculos remanescentes ao controle algorítmico – tem uma base social extremamente estreita, e a velocidade com que avança certamente gerará resistência tanto da população em geral quanto das elites.

Além disso, deve lidar com a capacidade digital da China, à medida que empresas rivais, como a DeepSeek, tentam minar a imagem de invencibilidade do Vale do Silício. Poderia, então, o tecno-feudalismo americano revelar-se um Leviatã frágil? O retorno de Donald Trump ao poder será lembrado como um “grande evento”, ou isso não passará de mera fofoca?

*Cédric Durand é professor na Universidade de Sorbonne Paris-Norte. Autor, entre outros livros, de Techno-Féodalisme: Critique de l’économie numérique (La Découverte).

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