Por uma Economia além do mercado e do Estado

Um estudioso de redes sustenta: experimentos como a Wikipedia expõem a viabilidade da colaboração sem fins mercantis e sem controle central

Yocahi

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. Esta lógica — a dos Comuns precisa contagiar a sociedade

Yochai Benkler, entrevistado por Bart Grugeon Plana, em El Diario, com tradução do IHU

O autor do já clássico “A riqueza das redes”, de 2006 (leia aqui o livro em inglês), Yochai Benkler, afirma que a economia dos comuns já mostrou sua viabilidade: “Ao contrário do que nos querem fazer acreditar, a ideologia neoliberal, a propriedade privada, as patentes e o livre mercado não são os únicos pilares onde sustentar com eficácia uma sociedade. A produção entre iguais, baseada no bem comum, hoje, nos oferece uma alternativa econômica coerente”. 

Benkler, professor em Harvard e jurista especializado no tema do empreendedorismo, afirma que esta alternativa retira do centro da economia as coisas para colocar as pessoas: “Quando uma sociedade coloca os bens comuns no centro, os protege e contribui para seu crescimento, então podem conviver diversos modelos de organização econômica, tanto projetos do bem comum, como privados, públicos e sem fins lucrativos. Uma economia baseada no bem comum coloca as pessoas no centro, com suas diferentes motivações.”

Você afirma que a crise financeira demonstrou até que ponto a economia neoliberal não funciona. Qual é a alternativa?

A partir de 1980, nos dois países onde mais a visão neoliberal da economia e da sociedade predominou, Estados Unidos e Reino Unido, vemos que a desigualdade aumentou enormemente. O resultado é conhecido: Trump e o Brexit. Seu nacionalismo econômico vem rejeitar de plano o relato que tradicionalmente o centro vendia, tanto a centro-direita como a centro-esquerda, sobre a organização da economia. Defendem uma ordem econômica baseada em uma liberalização sistemática que beneficia uma minoria muito pequena e que apresenta o desejo de lucro como o princípio fundamental. A visão dos dois candidatos de esquerda, Bernie Sanders, nos Estados Unidos, e Jeremy Corbyn, no Reino Unido, retoma um papel mais importante para o Estado… inclusive, aberto a nacionalizações, no caso de Corbyn. Portanto, surge como rejeição ao sistema existente que propõe soluções a partir de um nacionalismo econômico com ódio às minorias, como é o caso de Trump e do UKIP, no Reino Unido, até o socialismo da “velha escola”. Este contraste é muito forte no mundo anglo-saxão e em outros países, mais ponderado.

É a eterna discussão sobre quem organiza melhor a economia: o Estado ou o mercado…

As duas visões sobre o nosso modelo econômico se baseiam na ideia de que as pessoas são seres racionais que perseguem seu próprio interesse. Esta ideia se remonta à filosofia política de Thomas Hobbes e Adam Smith. É uma ideia antiquada e equivocada. Temos que revisar e reescrever todo o nosso sistema econômico de acordo com novas regras. A pesquisa das últimas décadas em ciências sociais, biologia, antropologia, genética e psicologia mostra que as pessoas tendem a cooperar mais do que pensávamos. Portanto, é importante que desenhemos sistemas que impulsionem valores como a colaboração. Muitos dos sistemas sociais e econômicos existentes, desde as empresas hierárquicas até a escola, usam mecanismos de controle e se baseiam em sanções ou recompensas. No entanto, as pessoas se sentem muito mais motivadas quando vivem em um sistema comprometido, no qual exista uma cultura de comunicação clara e onde compartilhem objetivos comuns. As organizações que estimulam nossos sentimentos de generosidade e cooperação são muito mais eficientes que aquelas que assume que nos movemos apenas pelo interesse próprio.

E como esta ideia pode ser aplicada à macroeconomia?

Ao longo da última década, surgiram novas formas de produção criativa através da Internet. São formas que não são controladas nem pelo mercado e nem pelo Estado. O software de código aberto como Linux, a Wikipédia, as licenças Creative Commons, diversos meios de comunicação social e numerosas associações na Rede criaram uma nova cultura de cooperação que, há dez anos, ninguém consideraria possível. Não são um fenômeno marginal, mas a vanguarda das novas tendências sociais e econômicas. Não se baseiam na propriedade privada e nas patentes, mas, ao contrário, na cooperação livre e voluntária entre indivíduos interconectados por todo o mundo. É uma forma de bem comum adaptada ao século XXI: são bens comuns digitais.

Por que isso é tão revolucionário?

Basta pegar o exemplo da licença Creative Commons, que permite compartilhar o conhecimento e a informação sob certas condições. É um sistema flexível que considera o conhecimento como um bem comum ao qual outros podem contribuir. É algo fundamentalmente diferente da filosofia que há por trás dos direitos autorais. Demonstra que a gestão coletiva do conhecimento e a informação não só é possível, mas também é mais eficiente e conduz a muito mais criatividade que quando está capturada em licenças privadas. Após a queda do comunismo, muitos pensaram que os modelos que partem de uma organização coletiva conduziriam necessariamente à ineficiência e tragédia. Esta análise explica a desregulamentação e privatização da economia desde então, cujos efeitos vimos na crise de 2008. A nova cultura de cooperação global abre uma nova gama de possibilidades. Hoje, a economia do bem comum nos oferece uma alternativa coerente à ideologia neoliberal, que resulta ser um beco sem saída.

O que é este modelo de gestão do bem comum?

A produção e a gestão entre iguais têm séculos de antiguidade, mas como tradição intelectual consistente nasce com Elinor Ostrom, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia. Ostrom demonstrou que quando os cidadãos governam infraestruturas e recursos compartilhados como um espaço comum, muitas vezes em consulta com as instituições públicas, isso conduz a um modelo sustentável, tanto ecológico como econômico. Igualmente, o modelo de gestão do bem comum é capaz de integrar a diversidade, o conhecimento e a riqueza da comunidade local. É capaz de levar em conta a complexidade das motivações e compromissos humanos, ao passo que a lógica do mercado reduz tudo a um preço e é insensível aos valores ou às motivações que não são inspirados pelos lucros. Nas últimas décadas, a gestão do bem comum adquiriu uma nova dimensão através do movimento do software de código aberto e toda a cultura dos bens comuns digitais.

Como podemos aplicar este modelo à economia moderna, extremamente complexa? É possível apresentar alguns exemplos?

Exemplos de bens comuns na economia moderna são, além dos bens comuns digitais, anteriormente mencionados, o modelo de gestão do espectro Wi-Fi. Diferente das frequências de rádio FM-AM, que requerem licenças de usuário, todos são livres para usar o espectro Wi-Fi, tendo em conta certas normas, colocando um roteador em qualquer lugar. Esta abertura e esta flexibilidade são incomuns no setor das telecomunicações. Fez do Wi-Fi uma tecnologia indispensável nos setores mais avançados da economia, como hospitais, centros logísticos ou redes inteligentes. Também no mundo acadêmico, cultural, musical e da informação, o conhecimento e a informação são considerados cada vez mais como um bem comum que é possível compartilhar de maneira livre. Os músicos já não ganham sua renda das gravações, mas, sim, dos shows. Os acadêmicos e os autores de não ficção publicam seu trabalho mais sob licenças Creative Commons, porque ganham seu pão ensinando, fazendo consultoria ou mediante fundos de pesquisa. Uma mudança similar se produz no jornalismo.

O mercado e a economia do bem comum são incompatíveis?

O bem comum é imprescindível para qualquer economia. Sem um acesso aberto ao conhecimento e à informação, às vias públicas, aos espaços públicos nas cidades, aos serviços públicos e à comunicação, não é possível organizar uma sociedade. Os mercados também dependem do livre acesso aos bens comuns para existir, ainda que depois tentem privatizá-los mais de uma vez. Mas, os bens comuns e os mercados podem existir uma ao lado do outro. Se a ideia de que uma empresa deve obter o máximo lucro para satisfazer seus acionistas domina como corrente principal é porque a ideologia neoliberal conseguiu marcar a agenda, nos últimos 40 anos, na política e na regulamentação. Contudo, não existe nenhuma lei natural que diga que a economia deva se organizar assim. A Wikipédia mostra que as pessoas têm motivações muito diversas para contribuir voluntariamente com esta comunidade global que cria valor para toda a comunidade. Os exemplos dos bens comuns digitais podem inspirar na criação de projetos similares na economia real. Quando uma sociedade coloca os bens comuns no centro, os protege e contribui para seu crescimento, então podem conviver diversos modelos de organização econômica, tanto projetos do bem comum, como privados, públicos e sem fins lucrativos. Uma economia baseada no bem comum coloca as pessoas no centro, com suas diferentes motivações.

Parece muito otimista sobre o futuro da produção e da gestão compartilhada…

Há muitos exemplos inspiradores de auto-organização segundo o modelo comum, mas está claro que sua expansão não ocorrerá de forma automática. São necessárias decisões políticas para transformar a economia e levá-la para além da lógica do mercado. É necessário um governo que regulamente, que tenha uma atitude decidida contra a concentração econômica, e que apoie com o mesmo marco legislativo tanto modelos de bem comum, como diferentes tipos de cooperativas. Ao mesmo tempo, mais pessoas deveriam embasar seus ingressos em empresas com uma lógica de bem comum. Neste sentido, o movimento do cooperativismo de plataforma é uma evolução muito interessante. Desenvolve novos modelos de cooperativas que operam através de plataformas digitais e trabalham juntas em redes globais. São um contrapeso aos modelos de negócios da Uber e Airbnb, que aplicam a lógica de mercado à economia digital.

Isso nos leva às transformações do trabalho…

A crise econômica atual e os ajustes proporcionam condições favoráveis para a experimentação com novas formas de organização. Por sua vez, e como resultado da automatização crescente da produção, expande-se o debate sobre o futuro do trabalho que separa “trabalhar” de “ganhar dinheiro”. Uma renda básica ofereceria a possibilidade de construir um sistema que permita ter diversas motivações para trabalhar. Outra opção poderia ser uma semana de trabalho mais curta. Deparamo-nos com uma tarefa enorme e não temos um manual detalhado que nos mostre o caminho

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