Por dentro do maior gueto de imigrantes da Itália

Há 15 anos, quase mil estrangeiros dividem, em condições desumanas, complexo de barracas. São clandestinos, porém tolerados: país precisa de seus braços

Por Marco Valli, na Vice

10. VAM2013025G01137

.

Há 15 anos, quase mil estrangeiros dividem, em condições desumanas, complexo de barracas. São clandestinos, porém tolerados: país precisa de seus braços

Por Marco Valli, na Vice

Néons coloridos e música alta rasgam o silêncio de uma área rural próxima de Foggia, na região da Apúlia, sul da Itália. Eu deveria estar no meio do nada, mas há bastante tráfego aqui: carros, motos e pessoas indo e vindo. São quase dez da noite e depois de quase duas horas vagando pelas estradas de Foggia, eu me vejo em frente ao que os locais chamam de “O Grande Gueto” ou, simplesmente, o Gueto Rugnano.

O “gueto” se formou espontaneamente há mais de 15 anos, depois da evacuação de uma usina de açúcar abandonada que servia de acomodação para homens trabalhando no “triangulo escravo” de Foggia. A exploração de imigrantes na agricultura não é uma particularidade de Apúlia — isso é comum em toda a Itália, especialmente no sul. Um relatório de 2012 da Flai Cgil (a Confederação Geral do Trabalho italiana, afiliada à União dos Trabalhadores Agroindustriais), afirma que 700 mil trabalhadores regulares e irregulares atuam nos campos e que 400 mil deles são recrutados ilegalmente por salários muito baixos.

O interior de um barraco.

Na última década, a “vila” de Rignano se expandiu. A demografia do gueto depende da estação e da demanda de trabalho nos campos de tomate. Durante o inverno, o lugar abriga 200 imigrantes (principalmente vindos de países africanos falantes de francês); no verão, a população sobe para 800. Alguns de seus habitantes mais antigos chegaram à Itália de avião há 20 anos, já os que chegaram há pouco tempo tiveram que cruzar o deserto e pagar milhares de dólares para viajar em barcos pesqueiros precários através do Mediterrâneo, torcendo para não morrer como aqueles que se afogaram em Lampedusa recentemente.

Quando conseguem fazer a travessia, os trabalhadores dos campos do sul são forçados a acampar em fábricas abandonadas, sem dinheiro e com uma boa dose de violência diária por parte dos proprietários de terra que lucram com seu suor. As condições de trabalho beiram ao medieval.

Apesar de o gueto ser ilegal e a polícia ter consciência de sua existência, ela geralmente não interfere. A lógica é tipicamente italiana: se você não fizer escândalo, vou fingir que nada aconteceu. E os habitantes continuam discretamente seguindo seu cotidiano de semiescravos.

O governo regional de Apúlia começou a fornecer água potável na área alguns anos atrás, depois que algumas associações fizeram lobby sobre a questão. No passado, como informa a Frontiere News, a falta d’água causou a morte de muitos imigrantes que “se afogavam em tanques de irrigação, tentando se lavar ou conseguir um pouco de água para consumo”. O mesmo vale para os banheiros, que foram instalados em 2011: antes disso, como a Nigrizia relembra, “adolescentes, crianças e adultos urinavam e defecavam em campo aberto, transformando a vila toda num grande banheiro a céu aberto”. Em novembro de 2012, um incêndio começou por causa de uma vela e 30 barracos foram destruídos, felizmente, sem nenhuma vítima fatal.

A loja de Madi.

Assim que cheguei, conheci Madi, um cara de Burkina Faso que faz às vezes de açougueiro “não oficial” do gueto. Ele encontrou um lugar para eu dormir e ofereceu meu primeiro jantar no acampamento: churrasco de pequenos pedaços de carne de carneiro defumada. Com o estômago cheio, fui dar uma olhada em volta: tudo estava absorvido pela escuridão, exceto por alguns poucos geradores ligados a néons azuis e vermelhos.

Fui me aproximando de um dos barracos e fui abordado por duas garotas que começaram a acariciar meu queixo. A ficha caiu quando elas me convidaram para entrar no que percebi ser o bordel local. Recusei o convite e fui até o bar tomar uma cerveja. Sou servido pela primeira pessoa branca que vejo desde que cheguei. É evidente que ele não está muito a fim de conversa. Pago a cerveja e saio do bar, caminhando ao lado da estrada principal. As pessoas estão ocupadas andando para algum lugar. Algumas jogam pebolim.

Volto para o açougue de Madi e ele me mostra seu quarto, que é basicamente um colchão no chão perto de um néon escrito “bar”. Fora do barraco, conheço Ba, um jovem da Guiné que me conta que, no momento, não está fazendo nada: “Não há mais trabalho aqui”. Ba passa os dias esperando o momento certo para se mudar para Rosarno, uma pequena cidade de Reggio Calabria que ficou conhecida pelas condições de trabalho quase escravas dos imigrantes catadores de laranja. Em 2010, Rosarno testemunhou uma revolta maciça de imigrantes depois que alguns locais atiraram nos trabalhadores com um rifle de ar comprimido.

Quando a manhã chega, começo a entender o formato do lugar: é basicamente uma longa fila de barracos de plásticos, metal e papelão no meio do nada. Os próprios imigrantes construíram seus barracos. Ninguém paga aluguel. Quando alguém sai do gueto, seu barraco é passado a um amigo ou parente. Como o fluxo de imigrantes africanos aumentou nos últimos anos, o gueto está se expandindo continuamente para o “deserto” de Apúlia.

Uma loja.

Há de tudo no gueto: açougueiros, lojinhas e “restaurantes” onde ficam as poucas mulheres do gueto. No final de uma das estradas principais, noto uma mecânica a céu aberto com quatro ou cinco pessoas trabalhando. Esses caras ficam visivelmente incomodados com a minha presença e dizem que não querem ser fotografados. Sou “convidado” a ir embora. Sigo o conselho deles e me limito a andar discretamente pelo gueto, conversando com alguns residentes. Paro para comer feijão com vísceras (não tenho certeza de que animal) no barraco de uma mulher que olha para mim e sorri um pouco confusa.

A mesquita do gueto.

A população do Gueto Rignano é dividida em duas categorias principais: aqueles que querem conversar sobre sua situação e aqueles que mal olham na minha cara antes de mudar de direção. Conheço um grupo do Mali que explica como funciona o trabalho dos catadores de frutas e vegetais aqui: se você é contratado num campo de tomate, que é o trabalho mais comum durante o verão, você recebe de 2,50 a 3,50 euros (algo entre R$7,70 e R$10,80) por hora, a menos que o “chefe branco” prefira te pagar por tomates. O salário médio por dia para esses trabalhadores é de R$78, e o custo para chegar até Foggia é de R$31 por dia. Outros locais me contaram que em Rosarno você ganha R$3 por caixa de tangerina e R$1,60 por caixa de laranja.

O bar da Fatima.

Volto para minhas acomodações. Do lado de fora conheço Fatima, a dona do bar. Ela vive na área há 13 anos e dá a impressão de ser a porta-voz do gueto. Ela me diz que as pessoas estão cansadas de jornalistas vindo aqui filmar e entrevistar: “Todo mundo diz que veio ajudar, mas então eles vão embora e fica por isso”. Um homem de 50 anos sentado perto da gente diz que já se viu na televisão e que não ficou nada feliz com isso.

Um barraco usado para armazenar animais abatidos.

O pôr do sol é a hora das compras. Todo dia, carros e vans do acampamento cigano próximo vêm até o gueto vender roupas, sapatos e outras coisas baratas. Há também um homem italiano que vende sapatos e parece um cowboy, sempre com um cigarro pendurado na boca. À noite, luzes de néon e música são ligadas enquanto as prostitutas se preparam para seu turno. Começo a sentir fome, então, volto para o acampamento para comer o churrasco de carneiro defumado do Madi. Os sortudos do acampamento podem pagar por fígado grelhado com banha de porco para o jantar.

Na manhã seguinte, uma cerração estranha cobre o gueto. A atmosfera está fria e úmida, e as ruas estão quase desertas. Alguém sai de um barraco para se espreguiçar. Bebo um café aguado e dou uma volta pelos becos menores. Lá conheço Ibrahim, um homem de 30 anos que me convida para conhecer sua casa. Ibrahim mora com mais outras oito pessoas e está ansioso para me contar sobre sua situação: “Não há muito o que fazer aqui. Em uma ou duas semanas estaremos colhendo azeitonas, mas isso não dura mais de dez dias. Ganhamos 1 euro (pouco mais de R$3) por caixa de azeitona”.

Depois de alguns minutos, Ibrahim muda de assunto e me pede uma carona até Foggia, onde ele diz que vai jogar futebol. No caminho, fica claro que na verdade ele quer apostar. Eu o levo até os primeiros agenciadores que encontramos, onde ele para rapidamente e ganha cerca de 60 euros. Vamos até outra loja de apostas e ele demora um pouco. Ele joga cartas, apostando 20 euros dos 60 que tinha ganho antes. Depois de tudo, ele me diz com um sorriso envergonhado: “Não vou jantar hoje, gastei muito dinheiro apostando”. Quando voltamos para o gueto, ele me conta seu sonho: “Ganhar muito dinheiro apostando e me casar”.

As únicas atividades disponíveis para matar o tempo e o tédio são pebolim, xadrez, cigarros e partidas de futebol de cinco contra cinco. Eles também têm a “Radio Guetto”, mas não há ninguém no prédio. A rádio só funciona durante o verão, quando o gueto está lotado. A rádio é a única maneira de se comunicar com o mundo exterior e dizer aos outros o que está acontecendo nos campos.

Ibrahim, o cara do Mali, me conta o que acontece num campo de abóboras a alguns quilômetros do gueto: “o ‘chefe branco’ anda pelo campo com uma vara de madeira. Se você levanta para acender um cigarro, ele faz você se curvar de novo, te batendo com a vara”. Esses homens são contratados pelos fazendeiros para garantir que tudo corra bem nos campos. Para isso, eles não hesitam em bater ou mesmo matar os trabalhadores, como muitos relatórios destacam.

Não há só o “chefe branco”, há também um “chefe negro”, basicamente, um imigrante que recruta outros imigrantes. O problema é o seguinte — como um africano de 50 anos me contou — “se o chefe branco paga quatro euros por hora, o chefe negro diz que são três, então ele ganha um euro de cada um de nós por hora”. Pergunto a ele como alguém se torna um “chefe negro”, mas ele não sabe me dizer.

Um banheiro no acampamento.

O trabalho não declarado só foi reconhecido como um problema pelo governo em 2011 e é considerado pela polícia uma prova da presença da máfia na zona rural. O setor tem um faturamento anual de 12 a 17 bilhões de euros, cerca de 5 a 10% de toda a economia da máfia. Yvan Sagnet — um representante do Cgil que se envolveu em uma das revoltas agrícolas de 2011 em Nardò, Lecce — escreveu que a agricultura na província do gueto “é altamente influenciada pela Camorra. Durante a colheita, centenas de caminhoneiros viajam da Campânia até Foggia para alugar os campos ilegalmente para os fazendeiros e levar os bens para outros negócios em Salerno”.

Não é só o trabalho praticamente escravo que mantém as pessoas do gueto aqui: quatro caras me disseram que todo dia abordavam o chefe para receber o salário, mas que o homem os enrolava e não pagava — alguns trabalhadores esperavam há duas semanas. Alguns estão ansiosos para mudar para outra cidade ou uma favela melhor, mas sem dinheiro não é possível chegar a Rosarno. No verão passado, um dos imigrantes juntou coragem para denunciar os recrutadores que vinham explorando seu trabalho sem pagar nada. Graças ao apoio de um advogado ele conseguiu receber seu salário, mas agora os “chefe brancos” não querem mais dar trabalho a ele.

Um restaurante.

A noite se aproxima. Como mais carneiro defumado e decido dar uma olhada no bordel que visitei na noite anterior. O lugar está vazio, apenas dois clientes italianos que saem com as prostitutas. Depois de recusar algumas ofertas, começo a conversar com uma das moças, Zahra, que me conta sua história: “Em 2010, tive que deixar o Marrocos porque meu marido morreu e eu não tinha onde conseguir dinheiro para alimentar minha filha. Então vim para a Itália fazer este trabalho”. Durante o inverno, Zahra trabalha em Foggia; no verão, ela trabalha no gueto. Ela explica que o bordel é propriedade de “um homem branco chamado Nicola. Ele cobra 20 euros (R$62 reais) pelo quarto onde trabalhamos”. Cinco garotas dormem e trabalham naquele quarto. Os preços são 25 euros para os brancos e 15 euros para os outros.

Amanhecer no gueto. Alguém queima o lixo do dia anterior.

Na manhã seguinte, acordo me sentindo horrível: com náuseas e dor de garganta. Deduzo que provavelmente estou sentindo os efeitos da cozinha local. Os animais que Madi mata são desmembrados, limpos e distribuídos no gueto. O problema é que ele trabalha em condições bastante anti-higiênicas, cercado por moscas que adoram defecar na carne. Passo um dia de cama, tentando combater a febre e me sentindo doente. Então, tomo um paracetamol e me surpreendo ao perceber que é o suficiente para acabar com os sintomas. No dia seguinte, alguém me diz que Fatima, a mulher que está me hospedando, tinha rezado por mim.

Estou pronto para partir ao amanhecer. Não há ninguém nas ruas do gueto e é quase possível respirar a desolação. Depois de passar quatro dias nesse mundo, tenho uma coisa clara em mente: o Gueto Rignano não fica realmente em Apúlia, nem na Europa. É um posto avançado do mundo subdesenvolvido explorado e transportado para um lugar onde ninguém pensou que poderia existir em 2013, e que ninguém dá a mínima para isso.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *