PM paulista turbina projeto político-policial
Corporação abocanha parcela crescente dos orçamentos municipais, com milhões para “combater” camelôs. Aumentam a truculência e as bonificações por resultados — mas cai a elucidação de crimes. Com escolas cívico-militares, policiais invadem Educação e ganham mais que um professor
Publicado 20/08/2025 às 17:56

Por Almir Felitte, na Ponte Jornalismo
Na última semana, a Ponte revelou que a Operação Delegada custou R$ 324 milhões aos cofres da cidade de São Paulo. Firmado entre a Prefeitura da capital e o Governo estadual, o convênio é destinado a contratar 2.400 policiais militares em horários de folga para atuar em atividades da segurança municipal e foi turbinado com um reajuste de 20% no ano passado.
Segundo a Secretaria Municipal de Segurança Urbana, “o foco da atuação da Operação Delegada é combater o comércio de ambulantes irregulares nas ruas da capital”. A truculência na fiscalização de camelôs e da população de rua, porém, tem sido a marca dessa atuação, como na morte do senegalês Ngagne Mbaye. O assassinato da comerciante Edineide Aparecida Rodrigues, que depunha sobre esquema miliciano de extorsões no Brás, aumenta as suspeitas sobre essa atividade policial.
Seu valor não é irrisório: representa, por exemplo, cerca de 22% do R$ 1,45 bilhão destinado à Secretaria Municipal de Segurança Urbana da capital para 2025. Apesar das críticas, o expediente avança por todo o estado. Iniciada em 2009, a Operação Delegada atingia 40 municípios paulistas em 2014. O número saltou para 211 parcerias firmadas em 200 cidades no início de 2022. Ao fim de 2023, o governo estadual já informava 450 convênios do tipo.
Casos como o da cidade de Sorocaba, que firmou o convênio em 2021 estipulando um gasto anual de mais de R$ 1,5 milhão. Ou da pequena cidade de Paraibuna que, no mesmo ano, acertou a parceria dispendendo cerca de R$ 120 mil anuais. Ou ainda da metropolitana Santo André, que, em 2023, decidiu destinar R$ 2,5 milhões por ano para a contratação.
Maior parte dos PMs da Baixada recebe recursos
Mais emblemática ainda é a situação no Guarujá, onde a administração municipal investe cerca de R$ 4,4 milhões por ano em apoio às polícias estaduais. A cidade foi uma das mais marcadas pelas chacinas das Operações Escudo e Verão, realizadas entre 2023 e 2024, deixando um rastro de mortos pela Baixada Santista. Ao fim de 2024, 600 dos mais de mil policiais em atuação na região recebiam recursos do Município através da Operação Delegada.
Mas não é apenas sobre os orçamentos municipais que a PM avança. No âmbito estadual, sob a dobradinha de Tarcísio e Derrite, vê-se o mesmo movimento.
Segundo o Metrópoles, o gasto do governo paulista com a previdência de policiais militares cresceu 53% ao longo da gestão de Tarcísio. O aporte do Tesouro para cobrir o déficit previdenciário subiu de R$ 9,8 bi em 2022 para R$ 15 bi no ano passado. Chama a atenção que, no caso militar, a ajuda tenha sido maior do que o próprio rombo, ao contrário da previdência dos servidores civis, em que o aporte extraordinário não superou o déficit.
O privilégio às polícias militares também foi observado no pagamento de bonificações por Tarcísio. Conforme investigou a Ponte, até o meio do ano, o governo paulista já havia distribuído R$ 827 milhões em bonificações aos quadros da Polícia Militar, de um total de R$ 2,71 bi. Ou seja, mesmo representando 15,8% do funcionalismo estadual, a PM abocanhou 30,5% das bonificações, em razão claramente desproporcional.
Soma-se a esta polêmica o fato de que os critérios para a distribuição destes prêmios aos militares têm sido estabelecidos somente depois do período que deveriam ter sido cumpridos, facilitando a sua manipulação.
Na pasta da segurança pública, os problemas se repetem internamente. É sabido que a chefia de Derrite, ex-capitão da ROTA, acirrou os conflitos entre a PM e a Polícia Civil. Projetos e ações visando transferir competências civis para os militares são recorrentes na atual gestão, como a lavratura de termos circunstanciados pela PM, a realização de operações de investigação e inteligência excluindo a PC e o cumprimento de mandados de busca e apreensão diretamente pelos militares, sem intermediação civil.
Com ainda menos abertura à ampla defesa e ao contraditório, relatórios de inteligência da PM também vêm ocupando cada vez mais espaço nos noticiários ao lado dos inquéritos policiais dirigidos pelos delegados de polícia.
Mais repressão, menos elucidação de crimes
Em abril de 2024, em meio à Operação Escudo, Tarcísio chegou a realocar para a PM um valor de R$ 22 milhões que estavam destinados à inteligência da Polícia Civil. Junto a ele, mais um montante de R$ 18 milhões que seriam gastos entre o Corpo de Bombeiros e o uso de câmeras corporais.
Até aquele momento, o governo paulista já havia turbinado o orçamento anual da PM de R$ 20,7 mi para R$ 70,5 mi com remanejamentos. Na Polícia Civil, o aumento foi de R$ 16,3 mi para R$ 24 mi. A liberação da verba também foi muito mais acelerada na PM, cerca de 30% até aquele mês, contra apenas 2,6% para a Civil no mesmo período.
Ainda que o efetivo da PM seja maior, é importante frisar que o orçamento policial vai bem além dos gastos com pessoal. O trabalho da Polícia Civil e da Científica, por suas características investigativas e judiciárias, exige insumos, equipamentos e formação técnica diversos. Todo gasto policial pode ser questionado de alguma forma, mas o que se percebe é uma clara escolha de direcionar o financiamento público paulista para uma polícia de confronto, baseada em fuzis e blindados, ao invés de direcionar o orçamento para a elucidação de crimes.
Uma escolha que, não por coincidência, vem acompanhada da presença cada vez maior de policiais militares em espaços tradicionais do poder civil. Presença bem simbolizada pela eleição de números recordes de militares alçados a cargos eletivos, mas que, com eles, puxam outros companheiros de farda para ocuparem a máquina da administração pública.
Salários de R$ 30 mil mensais
A própria Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) é um exemplo disso: quando a assumiu, Derrite aumentou em um terço o número de PMs exercendo funções de assessoria, remuneradas com bonificações de até R$ 7 mil. No total, 943 policiais militares passaram a exercer cargos semelhantes na administração estadual sob o governo Tarcísio. O próprio Derrite, aliás, passou a acumular cargos e salários em Conselhos de estatais.
Outro exemplo é o atual vice-Prefeito de São Paulo, o Coronel Mello Araújo, que, pouco depois de afirmar não ser um político, alçou voo na vida pública ao ganhar de Bolsonaro uma nomeação para presidir a CEAGESP. Em sua gestão, dos 26 cargos comissionados a que tinha direito, entregou 22 a companheiros de Polícia Militar com salários que podiam chegar a R$ 30.530 mensais.
Vemos então um cenário no qual a chegada de grupos de policiais militares à política tradicional tem possibilitado a ocupação de um espaço cada vez maior pela Polícia Militar enquanto instituição na administração pública paulista. A PM tem cada vez mais voz na definição dos rumos das políticas públicas em São Paulo, e isso parece não se limitar apenas à área da segurança pública.
Exemplo mais absurdo disso é o recente debate sobre a implantação das escolas cívico-militares. O projeto aprovado por Tarcísio prevê que os 100 colégios estaduais participantes poderão contratar policiais militares da reserva para atuarem como monitores e desenvolvedores de atividades extracurriculares “de natureza cívico-militar”. Esta semana, a Justiça de São Paulo revogou a liminar que impedia tais contratações.
Segundo o Governo Tarcísio, o gasto anual com os militares será de R$ 7,2 milhões. Isto porque estes policiais poderão receber cerca de R$ 1.000 reais a mais do que o salário de um professor comum da rede estadual de ensino. O absurdo fica ainda maior quando vemos que o orçamento destinado para o pagamento dos policiais militares sairá da pasta da Educação, e não da Segurança Pública.
Em 1982, Darcy Ribeiro disse que se os governantes não construíssem escolas, em 20 anos faltaria dinheiro para construir presídios. Talvez nem o antropólogo mineiro pudesse prever esta distopia paulista, onde o orçamento público agora escorre para o encanamento de um projeto político-policial que conquista cada dia mais espaços de poder.
Almir Felitte, advogado, mestre em direito pela FDRP-USP e doutorando em ciências sociais pela Unifesp, é autor do livro “História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?” (Autonomia Literária, 2023).
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