Para resistir ao avanço (pseudo) moralista

Psicanalista dá pistas de como atravessar o momento de perseguição conservadora, buscando compreender como agem os que a promovem; e como refinar a indignação dos que resistem

Charge de Angeli
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Por Marcos Donizetti de Almeida, em LeMonde Diplomatique

Vivemos uma crise política e social, uma crise que é também e principalmente dos afetos e das relações. Há um sofrer individualizado, vivido de maneira ímpar pelos sujeitos e presente em seus relatos de medo, frustração e ameaças constantes. E há um sofrer generalizado, marcado pelo enfraquecimento dos laços, pela desesperança e pelo ódio sempre presente, antes adormecido e hoje orgulhosamente sustentado e atuado. É um ódio performático, que se pretende manifesto em defesa de uma velha teia de privilégios e ao mesmo tempo contra um outro que foi eleito o bode expiatório da vez, a ser combatido e eliminado pois imaginariamente culpado pelos males da nação e inimigo de uma pátria que só existe como fantasia. Nos consultórios, no convívio pessoal e nas redes sociais são palpáveis a ansiedade, o cansaço, a sensação paralisante de impotência e a angústia, o desamparo.

A angústia, porém, pode ser combustível da ação, e cabe o questionamento a respeito do que pode ser feito para lidar com esse estado de coisas tentando permanecer minimamente saudável.

O resultado desta inquietação minha é o que chamo de pequeno manual de conduta e resistência a essa estratégia de controle do discurso e da libido tão facilmente identificável nas ações de quem investe neste cenário de crise, insegurança e confronto generalizados.

Não raro vemos declarações de pessoas próximas ao presidente eleito falando em “guerra cultural”, e não surpreende que a gestão da comunicação do novo governo, desde a campanha, tenha elementos de estratégia militar, de “guerra híbrida”, o assim chamado firehosing. A atuação se dá em duas frentes: num primeiro nível, declarações cada vez mais estapafúrdias e revoltantes, sem nenhum compromisso com fatos ou lógica, com frequentes idas e vindas, com avanços aparentes e desistências. O objetivo aí é o controle da pauta. É uma maneira de controlar não só a imprensa, e essa tem sido a estratégia de Trump desde o início de seu mandato, como também os temas das conversas nas ruas, bares e condomínios.

O uso das postagens em massa impulsionadas no WhatsApp de maneira supostamente ilegal é o dado novo e até o momento um grande diferencial do firehosing à brasileira. Não sei por quanto tempo isso funcionará, mas é assim, controlando o discurso e confundindo a todos, que as medidas impopulares, essas sim calculadas e planejadas, do segundo nível serão postas em prática sem maior resistência. A declaração absurda toma de assalto as redes sociais enquanto uma emenda constitucional é votada, por exemplo.

O projeto da “escola sem partido”, cuja votação pode acontecer a qualquer momento, e as mudanças no texto da Lei Antiterrorismo são estratégias de controle do discurso também, óbvio, mas talvez eles nem esperem tanto essas aprovações. Mantê-los em pauta é ótimo para garantir a atenção e a tensão da oposição e da imprensa.

Além do controle do discurso e do diversionismo das pautas, há a atuação sobre a libido, o ânimo daqueles que são oposição. É um jogo de manipulação da indignação também. Acontece que a indignação é em algum grau catártica.

Para nosso “aparelho psíquico”, a indignação antecipada com algo tem quase o mesmo efeito de vivenciar de fato esse algo ou de agir contra ele. Quando eu compartilho uma fala do presidente dizendo “olha o absurdo que ele está falando”, minha indignação implica direcionamento de energia para esse fato, um consumo de libido, e consigo até mesmo algum gozo, uma satisfação secreta e mesmo inconsciente, na captura também da indignação do meu grupo, garantida pelo algoritmo no caso das redes sociais. Há uma sensação de pertencimento mesmo nos afetos negativos vivenciados coletivamente. 

Grosso modo, dado que libido é um recurso finito que apenas muda de um ponto de referência a outro, o que “gastei” em meu gozo catártico indignado falta em outras atividades. É uma estratégia de controle dos corpos comum, clássica, potencializada pelas redes sociais. Um exemplo é a hipersexualização das relações e do ambiente, via mídia e publicidade, por exemplo, que resulta em sujeitos com menos libido investida nos encontros sexuais. O fato é que a estratégia é gerar indignação para controlar a pauta e também garantir a paralisação dos sujeitos, que ficam meio que petrificados, sem forças para resistir. O resultado é o sofrimento psíquico potencializado e amplificado, com mais depressão, desamparo e sentimentos de falta de sentido. De quebra, a indignação e o medo gerado na oposição alimentam parte da base apoiadora de Bolsonaro. Esses jovens fazendo fotos pretensamente ameaçadoras com armas na mão que vimos após a eleição estão implorando pelo medo que vai alimentar uma fantasia fálica muito primitiva de poder neles. Eles se alimentam da indignação e do assombro que esperam causar no outro, e não oferecer o que pedem é confrontá-los com um dado de realidade.

Mas vamos ao manual propriamente dito: ninguém está dizendo que não podemos mais demonstrar indignação e medo ou se revoltar com o absurdo. É necessário, porém, sermos “seletivos” com nossa indignação. Ao perceber que o noticiário sobre o novo governo te faz espumar e compartilhar coisas o dia todo, pense em sair um pouco das redes sociais.

Vá ver um filme, ler um livro, ouvir a música que você ama ou um disco novo. Consuma e produza arte, que é uma maneira e tanto de elaborar angústias e mobilizar forças, de forma crítica, inclusive. A arte ajuda a seguir e a mostrar que a vida continua lá fora. Convide alguém, porque estar junto e compartilhar amor é uma forma de proteger os seus e de alimentar esperanças, conseguir força, redirecionar a libido.

É hora de usar o potencial mobilizador e de comunicação das redes em nosso favor: criando e fortalecendo laços, contatos que sem elas não seriam possíveis, articulando movimentos, coletivos, grupos de apoio mútuo etc. Que nossa ação não fique restrita ao virtual. A melhor resposta a quem quer nos capturar tanto pelo medo quanto pela indignação é seguir vivendo, sem se esquecer da empatia para com os que estão sofrendo, mas investindo naquilo que podemos efetivamente fazer para ajudar; estudando, ouvindo e lendo muito para aprender formas de ajudar mais. É preciso observar os movimentos “macro” do regime, saber onde eles estão efetivamente investindo.

Isso estará sempre nas entrelinhas das declarações e do que aparece no noticiário. Há medo e indignação, claro que há, mas, se nos deixamos capturar por essa dinâmica, fazemos o jogo deles. Então, enquanto investimos em formas de ajudar quem está precisando resistir, precisamos nos cuidar e não sucumbir à ansiedade e à confusão propositada dos discursos. Não podemos esquecer que é preciso mais do que nunca estar com as pessoas. Não é sem motivo que regimes totalitários em algum momento proíbam encontros e reuniões. O contato e a interação são revolucionários.

Consuma e produza arte, que é uma maneira e tanto de elaborar angústias e mobilizar forças, de forma crítica, inclusive. A arte ajuda a seguir e a mostrar que a vida continua lá fora. Convide alguém, porque estar junto e compartilhar amor é uma forma de proteger os seus e de alimentar esperanças, conseguir força, redirecionar a libido. É hora de usar o potencial mobilizador e de comunicação das redes em nosso favor: criando e fortalecendo laços, contatos que sem elas não seriam possíveis, articulando movimentos, coletivos, grupos de apoio mútuo etc. Que nossa ação não fique restrita ao virtual. A melhor resposta a quem quer nos capturar tanto pelo medo quanto pela indignação é seguir vivendo, sem se esquecer da empatia para com os que estão sofrendo, mas investindo naquilo que podemos efetivamente fazer para ajudar; estudando, ouvindo e lendo muito para aprender formas de ajudar mais.

É preciso observar os movimentos “macro” do regime, saber onde eles estão efetivamente investindo. Isso estará sempre nas entrelinhas das declarações e do que aparece no noticiário. Há medo e indignação, claro que há, mas, se nos deixamos capturar por essa dinâmica, fazemos o jogo deles. Então, enquanto investimos em formas de ajudar quem está precisando resistir, precisamos nos cuidar e não sucumbir à ansiedade e à confusão propositada dos discursos. Não podemos esquecer que é preciso mais do que nunca estar com as pessoas.

Não é sem motivo que regimes totalitários em algum momento proíbam encontros e reuniões. O contato e a interação são revolucionários.

*Marcos Donizetti de Almeida é psicanalista.

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