Para entender o patriotismo de vassalagem
As contradições dos verde-amarelos que se ajoelham ao império americano. Conceito psicanalítico de identificação ajuda a entender melhor: mesmo como vassalos, eles cultivam o sonho de integrar o império americano – um “clube” do qual gostariam de pertencer
Publicado 26/02/2025 às 19:34 - Atualizado 26/02/2025 às 19:35

Por Moysés Pinto Neto, na Piauí
Em geral, atos como o bater continência de Jair Bolsonaro diante da bandeira americana ou parlamentares de extrema direita vestirem o boné Make America Great Again têm provocado um juízo de perplexidade da esfera pública tradicional brasileira. Embora reivindiquem para si o status de patriotas, os militantes da extrema direita submetem-se a uma improvável condição absolutamente idólatra de um país estrangeiro, os Estados Unidos, e não raro sacrificam a ideia de soberania nacional – estandarte máximo do patriotismo clássico – em prol da submissão ao movimento internacional coordenado por Steve Bannon e afins. O juízo de perplexidade deriva da contradição escancarada, seguindo-se, portanto, a ironia e o deboche sobre as ações dos nossos amantes do Tio Sam expatriados em Miami e nos protestantes de Copacabana, da Avenida Paulista ou do Parcão. Meu ponto aqui será provar que esse diagnóstico é superficial e pode ser melhor explicado em outros termos; mas, antes, exploremos um pouco as contradições do movimento.
Primeiro, vimos durante 2023 e 2024 uma concentração de ataques da extrema direita à política econômica do governo Lula a partir da taxação de bens importados por Haddad, em uma manobra mais ou menos desastrada – sobretudo em termos de comunicação – na qual as “blusinhas” acabaram sofrendo tarifas e encarecendo ao consumidor popular o acesso a importações em geral chinesas. Haddad, por isso, é ironizado em memes como “Taxad”, e parte do episódio do Pix se deve, fundamentalmente, ao lastro anterior produzido ao seu redor pela propaganda da extrema direita. Se Haddad foi capaz de taxar mercadorias importadas de baixo valor, contra a própria promessa do governo, então por que isso não ocorreria com o Pix, promovendo a partir da sua vistoria a cobrança de impostos sobre atividades na zona cinzenta da legalidade que servem de base da renda dos trabalhadores precarizados? O raciocínio popular, que levou à queda da aprovação do governo e do próprio mandatário, tem lá sua lógica, mais uma vez fazendo perder os defensores da “verdade”, promovida pelos esclarecidos do jornalismo e da “técnica”, contra os promotores de notícias falsas.
Mas e quanto a Trump, então? O presidente americano promove agora a taxa como sua principal política. Ele chegou a dizer que tariff é a quarta palavra mais bonita do dicionário, depois de God, love e religion. Como funcionam as tarifas de Trump? Para promover uma reindustrialização e reaquecimento do mercado americano, ele deseja “trazer de volta” os negócios que migraram para o Leste Asiático, barateando os custos de produção no famoso processo que nos últimos quarenta anos vem sendo chamado de “globalização”. As tarifas, portanto, são proteções do mercado interno. Exatamente como no caso de Haddad, que, entre outras razões, induziu, com apoio implícito da própria extrema direita, a taxação com o intuito de respeitar a competitividade do varejo interno. Alguém viu Luciano Hang criticando Haddad por tarifar blusinhas? O mesmo se passa com Trump: o valor adicionado, que ameaça chegar a 25%, é arcado pelo consumidor final, por isso mesmo se fala, inclusive, dos potenciais efeitos inflacionários. Onde estão os memes e as críticas dos economistas defensores do mercado aberto aqui no Brasil?
A segunda contradição ainda se conecta com a primeira. Sabe-se que a esquerda dita “desenvolvimentista” – o governo Dilma, sobretudo, é tido como seu representante – aposta que somente promovendo uma reindustrialização o Brasil poderia sair da cilada exportadora e extrativista baseada em matérias-primas, hoje dominadas pelo agronegócio e pela mineração, em que se meteu. A reindustrialização resultaria em melhores empregos, organização da classe trabalhadora e valorização dos bens produzidos no Brasil, com mais “complexidade econômica”. Em compensação, a direita – embora apoiada, em massa, pelos próprios industriais, como vimos com a Fiesp durante o período do impeachment – considera a pauta econômica da esquerda ultrapassada, reduzindo a competitividade da indústria nacional e baseando-se em pressupostos da superioridade de um tipo de produção que dizem não se confirmar nos dados. Portanto, tanto faz a matriz produtiva do país, desde que alicerçada em instituições firmes capazes de garantir a estabilidade dos negócios e, com isso, fortalecer a confiança do setor privado para investimento.
Mas… e Trump? Toda lógica do protecionismo “desglobalizador” dele se baseia na renovação industrial dos Estados Unidos, colocando sua aliança com as big techs como ponto primordial, com a possibilidade do desenvolvimento de produtos de tecnologia de ponta. Além disso, Trump – com seu “drill, baby, drill” – pretende explorar ao extremo a matriz energética “suja” que nos conduziu à crise climática, aguçando seus efeitos (que são negados, também com muitas contradições, mas isso é tema para outro texto). Onde estão os adeptos do liberalismo econômico hard, por exemplo, o próprio ex-ministro Paulo Guedes, para criticar o neonacionalismo desenvolvimentista de Trump? Trump, inclusive, faz exatamente a mesma coisa pela qual Lula apanhou inclementemente da imprensa e do mercado financeiro ao longo dos últimos dois anos: ataca e constrange, constantemente, o Banco Central, a fim de promover a baixa dos juros. A diferença é que Lula via no dirigente do Bacen um inimigo na trincheira, promotor de crises artificiais com o fito de minar as políticas governamentais, forçando a desconfiança econômica e a subida dos juros, enquanto com Trump ocorre o inverso: ele vê o Banco Central americano como muito técnico, por isso mesmo impedimento à realização das suas metas políticas que envolvem uma forte intervenção na institucionalidade econômica. O que é mais grave? Se observarmos nossos liberais “convictos”, como os representantes do Partido Novo, aparentemente não estão achando nada de errado com as medidas de Trump.
Terceira e última contradição, para efeitos deste texto, pois não se esgotam nisso: a posição em relação à Ucrânia. Sabemos que o Brasil, logo que estourou a guerra da Ucrânia, viveu uma polarização surreal entre a direita – que passou a idolatrar Zelensky – e parte da esquerda, que via em Putin uma continuidade do projeto soviético. Enfim, mais fogo foi acrescentado quando Lula assumiu e resolveu ocupar o lugar de pacificador, tentando travar algum diálogo com Putin. Rapidamente, a parcela mais liberal – tanto da esquerda como da direita – passou ao ataque, considerando uma capitulação desumana, e nossa mídia ecoou os “desencontros” entre Zelensky e Lula que ocorriam nos foros internacionais. Mas e agora? Trump ligou para Putin e Zelensky para dizer que quer dar fim à guerra, e a chancelaria americana reconhece que é impossível à Ucrânia voltar ao status quo anterior. Uma posição não tão diferente daquela sustentada por Lula, tão repudiada. E, no entanto, quem está protestando contra a entrega de parte do território da Ucrânia à Rússia, sem falar da possibilidade de cobrança – com pagamento de anexação territorial – do custeio da ajuda militar dos Estados Unidos durante a guerra, levantado pelo próprio Trump?
As contradições parecem muitas, mas esse diagnóstico é apenas superficial. Na realidade, não há contradição alguma. Essa ideia pressupõe que o processo de constituição de uma identidade – no caso, o “patriota” – se dá a partir de uma correspondência entre uma condição “real” e uma identidade objetivamente dada. Por exemplo, como se discute frequentemente na esquerda, um trabalhador – que, mesmo sem carteira assinada, tem relação de subordinação e dependência – deveria se ver como trabalhador; afinal, é o que ele é. Se não se vê dessa forma, é porque está enfeitiçado (os conceitos de ideologia e alienação estão aí para tapar esses buracos). Mas não é assim que acontece. Primeiro, porque esse é está longe da objetividade total que um marxismo dogmático gostaria de sustentar. E isso por uma segunda razão: a identidade, constituída a partir da identificação, é resultado de processos imaginários. O que é um brasileiro é algo que está, constantemente, sendo disputado no imaginário, não basta apenas o passaporte ou o CPF para resolver o problema. Na identificação, como explorou Freud no seu texto sobre a psicologia das massas, é comum que haja uma identificação virtual, isto é, que ela ocorra pelo desejo, sem que haja uma correspondência com a minha condição atual. Assim, nem sempre me identifico com o que sou, mas muitas vezes com o que quero ser.
A força do pertencimento aos movimentos de extrema direita, que reúne pessoas para cantar o Hino Nacional para um pneu, não é apenas um pertencimento como qualquer outro. Às vezes, a crença na fungibilidade do pertencimento – do tipo, se é assim, vamos trocar por outro (por exemplo, ao Estado, à sociedade, à comunidade local, ao partido) – por vezes não vai suficientemente longe na análise das características singulares daquela identificação. E o que faz o pertencimento dos patriotas? Ele consegue preencher um vazio que antes existia para dizer: sim, você é mesmo um patriota, mesmo idolatrando a América mais que o Brasil. A identidade é constituída no processo de identificação por uma imagem idealizada do que quero ser, mas isso não ocorre apenas no plano individual: um Napoleão de hospício não se torna Napoleão apenas porque quer. É porque os outros confirmam que uma identificação pode colar. E essa é, efetivamente, a dimensão coletiva do movimento de extrema direita.
Assim, por que a análise da contradição é apenas superficial? Porque não há contradição. Os “patriotas” efetivamente se veem como patriotas, mas para eles ser patriota é outra coisa. E é essa “outra coisa” que eles miram quando se reúnem para vangloriar Trump diante dos seus “acertos” que beneficiam apenas os Estados Unidos, e ninguém mais, além de por vezes prejudicar até mesmo o Brasil. Mas o que é essa “outra coisa”?
Aqui temos uma questão interessante: tanto a extrema direita quanto a esquerda radical veem os Estados Unidos de forma semelhante, ou seja, como um império. A imagem dos EUA como uma democracia aberta, tolerante, com instituições sólidas e de uma ordem internacional fundada no direito é própria do centrismo. Apenas os liberais enxergam os EUA como esse país específico, com uma sociedade tocquevilliana, separando fortemente o externo (a política internacional) do interno (a democracia constitucional). Esquerda radical e extrema direita, ao contrário, veem como as duas camadas estão diretamente entrelaçadas. O que os EUA fazem para o mundo, da Guerra da Coreia ao apoio a Israel em Gaza, é assunto que define os EUA. Não há diferença entre a sociedade interna e o império. Claro, a coincidência acaba por aí: para a esquerda radical, trata-se de se opor; para a extrema direita, de se integrar o império. O sonho dos Bolsonaro seria receber aquele convite dirigido ao Canadá para que o Brasil se tornasse um Estado da federação americana. Então, o “patriotismo” estaria consumado na maior de todas as conquistas: a integração completa, como parte dos dominadores, na condição imperial. Naturalmente, sabemos que a crise política atual é, mais que tudo, uma crise do centro político: este foi hegemônico nos últimos quarenta anos, do pretenso “fim da história”, até que tudo se mostrasse uma farsa desde a crise de 2008.
Mas, ainda dentro da “outra coisa”, alguém poderia perguntar: e não é uma contradição alguém se ver como parte de um império não o integrando de fato? Aqui, mais uma vez, surge a identificação: quando o patriota olha para os Estados Unidos como sua pátria, ele efetivamente projeta sua identidade como parte desse coletivo imperial. É claro que o Brasil não integra os Estados Unidos, mas, como país vassalo, ele pode sim integrar o império americano. E, portanto, o que esses patriotas veem sobre si mesmos é a condição de “cidadãos do Império americano”. Por isso, Make America Great Again os contempla.
Permitam-me mais uma última comparação para explicar. Um dos elementos cruciais do trumpismo é o supremacismo branco. Mas sabemos, por estudos brasileiros e internacionais, que a branquitude é uma condição relativa. Um branco no Brasil torna-se “latino” nos Estados Unidos. Um branco nascido na Bahia torna-se “nordestino” em São Paulo. O mesmo pode ocorrer com a identidade negra em alguns casos. Em geral, basta a autodeclaração, mas, por exemplo, quando se trata da disputa de cotas, é possível haver comissões de “heteroidentificação” em que a identificação é avalizada pelo feedback do outro. Em outros termos, a identidade não é uma relação de eu com o meu eu-factual, mas do meu eu produzido por meio de uma série de relações imaginárias com o meio e os outros, finalmente resultando em uma posição. Não existe identidade absoluta. Isso significa que o brasileiro patriota pode, sim, ver-se como branco americano, mesmo que, de um ponto de vista de muitos outros, ele possa ser caracterizado como “pardo” ou “latino”. Não importa.
O viés de confirmação é obtido por meio da chancela grupal: sim, se você é bolsonarista, você faz parte do clube dos brancos que compõem uma região vassala do Império. A vassalagem é uma relação bilateral, não apenas a submissão unilateral. É dessa troca assimétrica que os patriotas se vangloriam. Portanto, se o significante patriota pode comportar muitos sentidos, um deles passou a ser esse: ser patriota, amar a sua pátria, é se submeter aos Estados Unidos, ou seja, ao império do qual sua pátria é vassala.