Papa Leão e o legado de Francisco ainda vivo

Dilexi te, primeira exortação apostólica do papa, reforça que não se pode separar a fé da luta contra mecanismos de produção da miséria. Sua referência aos muros não é acidental. E ecoa seu antecessor na posição por mudanças sociais concretas

Foto: EPA
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Por Thiago Gama, no GGN

Um documento como a Exortação Apostólica Dilexi Te do Papa Leão XIV, outorgada desde Roma, sede da Sé Apostólica em 4 de outubro de 2025, portanto recentemente, não tem o peso de uma Carta Encíclica, mesmo assim, constitui o primeiro grande passo para uma comunicação direta do Papa Leão XIV com o mundo.

Por apresentar um caráter tímido e não expansivo diante das multidões que o cercam na Praça São Pedro, o mundo ansiava por uma palavra enérgica do pontífice no mundo convulso em que vivemos nesta quadra histórica, principalmente pelo fato de seu predecessor ter conseguido juntar com brilhantismo duas faces – a do Pastor (com cheiro de ovelha), e a do hábil político. O peso do Papa Francisco, portanto, ainda pairava com enorme peso sob o pontificado leonino.

Eis que surge uma bela surpresa: o documento Dilexi Te, que conheceu a luz há poucos dias, mas fará um enorme barulho nas estruturas de poder que rondam o Vaticano, este documento pastoral não surge num vácuo teológico. Ele é, antes de tudo, a culminação de um processo histórico dentro da Igreja Católica que encontrou no pontificado do Papa Francisco sua expressão mais vigorosa e, por vezes, desconcertante.

A fim de compreendê-lo, é preciso situá-lo na Tradição da Doutrina Social da Igreja (DSI) e, em particular, na recepção inovadora e inaciana que Francisco fez deste corpus doutrinário. Leão XIV, insere o seu documento em um projeto herdado de seu predecessor, não se limita a repetir fórmulas – ele as radicaliza, aprofunda e as projeta como um desafio incontornável para uma Igreja que se quer “em saída”, segundo o espírito que animou o pontificado do Papa Francisco.

O ponto de partida, tanto teológico quanto político, da Dilexi Te é a constatação de que o amor de Deus não é uma abstração, mas uma força histórica que se manifesta de forma preferencial pelos que “têm pouca força”. Leão XIV abre seu texto com o versículo “Eu te amei” (Ap 3,9), dirigido a uma comunidade sem relevância, este não é um acaso literário, mas uma declaração de princípios, uma escolha deliberada e intencional. Ele estabelece, desde o prólogo, que o núcleo da Revelação está intrinsecamente ligado ao reconhecimento de Deus na periferia existencial do mundo. Esta ideia ecoa diretamente o projeto central do Papa Francisco, que na Carta Encíclica Evangelii Gaudium que definiu a prioridade pastoral da Igreja como uma “Igreja em saída”, que não se cansa de “ir às periferias” onde não apenas há sofrimento material, mas também “o mistério do encontro com Cristo” (Evangelii Gaudium, 20 – Link para o Vaticano).

A análise sociológica é necessária – ao fazer esta opção teológica, ambos os pontífices deslocam o eixo de uma Igreja percebida como aliada dos poderosos – ou, no mínimo, confortavelmente instalada no centro – para uma comunidade que encontra sua identidade mais profunda na fragilidade. A “Igreja pobre e para os pobres”, sonhada pelo Papa Francisco desde os primeiros dias de seu pontificado, deixa de ser uma aspiração para se tornar, em Leão XIV, um princípio hermenêutico para ler toda a história da salvação e, consequentemente, para atuar na história do tempo presente.

O Papa afirma: a meritocracia é uma falácia anticristã

A crítica social contida na Dilexi Te – à “falsa meritocracia”, à “cultura do descarte”, aos “sistemas político-econômicos injustos” – não é, portanto, um adendo sociológico à fé, mas uma consequência lógica de se crer num Deus que, em Jesus Cristo, “se esvaziou a si mesmo” (Fl 2,7). A pobreza, nesta chave, não é um tema, mas a chave para entender o método de Deus. Neste ponto vai, nos escritos do Papa, o self made man, a uberização do trabalho, e a precarização da vida do trabalho.

Neste ponto, um paralelo orgânico com a Teologia da Libertação se torna inevitável. A opção preferencial pelos pobres, cunhada nas Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979), é absorvida pelo Magistério Universal e, em Dilexi Te, é reafirmada não como uma moda latino-americana, mas como a tradição mais antiga e genuína da Igreja, Leão XIV faz o que os teólogos da libertação fizeram em seu tempo: ele vai às fontes bíblicas e patrísticas para resgatar um fio condutor que havia sido ofuscado. A “fraqueza de Deus” de que fala o Papa é um conceito que ressoa com a “Igreja dos Pobres” do Concelho Vaticano II (1962 – 1965) e com a centralidade do “pobre como sacramento de Cristo” na obra de Gustavo Gutiérrez (1928 – 2024).

Não se trata de uma apropriação doutrinária, mas de uma convergência a partir das mesmas fontes: um Deus que se revela na história concreta, tomando o partido dos oprimidos. A fraqueza de Deus pode ser assim compreendida por um amor tal e profundo que o leva descer a Terra e estender as mãos aos homens e mulheres de boa-vontade, numa Província perdida do Império Romano, a Judeia. E aqui reside a uma ironia de oprimir o coração daqueles que sabem o que acontece com a “Judeia” de nossos tempos – ora conhecida como Palestina.

A Crítica Estrutural ao neoliberalismo por Leão XIV

O primeiro movimento de Leão XIV foi estabelecer o fundamento teológico da opção pelos pobres, o segundo – e mais politicamente significativo – é desdobrar essa opção numa crítica contundente às estruturas econômicas que perpetuam a injustiça. A Dilexi Te não se contenta em denunciar a pobreza como um fenômeno aleatório ou fruto do azar. Ela identifica mecanismos precisos de produção da miséria, herdando e radicalizando a análise do Papa Francisco sobre as “estruturas de pecado” que configuram o que ambos os pontífices não hesitam em chamar de uma “cultura do descarte”.

A ponte com a Laudato Si’ é inevitável e profundamente esclarecedora, na sua encíclica ecológica, Francisco já havia estabelecido a ligação orgânica entre a degradação ambiental e a degradação humana, afirmando que “não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma única e complexa crise socioambiental” (Laudato Si’, 139 – Link para o Vaticano). Leão XIV aplica esta mesma lógica de interconexão ao campo estritamente social e econômico. A “ditadura de uma economia que mata”, expressão cunhada por Francisco na Evangelii Gaudium (EG 53), é desmontada na Dilexi Te como um sistema que não é apenas injusto, mas intrinsecamente anticristão.

A crítica à “falsa meritocracia” é um dos pilares desta análise. Leão XIV argumenta, com a força de quem conhece a realidade dos descartados, que é “cegueira e crueldade” afirmar que os pobres são os únicos responsáveis pela sua situação. Ele descreve com realismo sóbrio a figura daquele que “trabalha de manhã à noite, recolhendo papelão”, sabendo que esse esforço “servirá apenas para sobreviver”. Esta descrição é um golpe preciso no coração da ideologia neoliberal, que tende a culpar a vítima e a santificar o sucesso econômico como sinal de eleição. É uma posição que bebe diretamente da Fratelli Tutti, onde Francisco alerta que “a mão que dá é sempre superior à que recebe? (…) Não seria esta uma forma sutil de afirmar a própria superioridade e de fomentar o próprio amor-próprio, em vez de exprimir uma ajuda concreta para levantar alguém?” (Fratelli Tutti, 139 – Link para o Vaticano).

A política, como Francisco exortou, com “P” maiúsculo

Este não é um economicismo disfarçado de pregação, constitui, antes, uma consequência direta do princípio da destinação universal dos bens, pedra angular da Doutrina Social da Igreja. Neste ponto, o diálogo com a Teologia da Libertação torna-se mais uma vez orgânico. O conceito de “pecado estrutural”, desenvolvido por estes teólogos para descrever como o mal se cristaliza em instituições e sistemas, é plenamente assumido por Leão XIV. Ele não usa apenas a linguagem do pecado pessoal, mas fala de “estruturas de injustiça” que devem ser “reconhecidas e destruídas”. Esta visão implica uma mudança de paradigma na ação pastoral: não basta tratar os sintomas da pobreza com obras assistenciais, é imperativo “resolver as causas estruturais da pobreza”, como já pedia Francisco na Evangelii Gaudium (EG 202). A caridade, assim, exige a transformação política.

Migração e a Política do Encontro: O enfrentamento velado a Donald Trump

A arquitetura teológica de Dilexi Te, amplia os decibéis da política social quando trata da questão premente do nosso tempo: a migração. Leão XIV realiza uma operação teológica peculiar, transforma a questão migratória de um problema de gestão de fronteiras num sacramento do encontro com Cristo. Esta não é uma posição abstrata – o documento enraíza-se em críticas concretas que ecoam os embates mais agudos do pontificado e das lutas e combates do Papa Francisco.

Desta forma, quando o Papa Leão XIV defende que “onde o mundo vê ameaça, ela [a Igreja] vê filhos, onde se erguem muros, ela constrói pontes”, estamos perante a uma clara resposta teológica aos nacionalismos emergentes (a história sabe bem onde qualquer tipo de nacionalismo nos levou). A referência aos muros não é acidental – é um comentário direto às políticas de fronteira de figuras como Donald Trump, cujo governo foi explicitamente criticado por Francisco. Na Fratelli Tutti, o Papa já havia alertado que “quem levanta muros acaba por ficar prisioneiro dentro deles” (Fratelli Tutti, 27 – Link para o Vaticano). Leão XIV leva esta intuição ao seu extremo: o muro não é apenas uma estrutura física, mas uma heresia eclesiológica, uma negação prática da catolicidade da Igreja.

As Guerras e a Economia da Morte: Uma Denúncia Profética

 Dilexi Te, aborda o tema da guerra não como um mal fluido e etéreo, mas como uma máquina concreta de produção de pobreza e exclusão. Sua denúncia do “uso iníquo da fome como arma de guerra” representa um dos momentos de maior coragem profética do documento, estabelecendo uma ligação direta entre a teologia da encarnação e os conflitos contemporâneos.

Embora não nomeada diretamente, fica explícito no documento que Leão XIV está fazendo uma referência à Gaza – a Igreja não pode calar-se quando testemunha o “agravamento da insegurança alimentar em zonas de conflito”. Esta posição ecoa dramaticamente o apelo de Francisco na Fratelli Tutti por uma “política diferente, que não esteja ao serviço da eficácia econômica, mas da administração da casa comum” (Fratelli Tutti, 154 – Link para o Vaticano). Leão XIV vai além, descrevendo com realismo as táticas de guerra que incluem “queimar terras, roubar gado e, crucialmente, bloquear ajuda humanitária”. Como diria o versículo bíblico, embora não tenha nomeado Gaza ipsis litteris, “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Mateus 11:15.

A análise adquire contornos de denúncia profética. Quando o Papa descreve a fome como uma arma “muito barata” de fazer guerra, ele está desmascarando a lógica perversa que transforma o sofrimento civil em estratégia militar. Esta crítica não é ingênua – reconhece que enquanto “civis definham na miséria, os líderes políticos enriquecem com os lucros do conflito”. A conexão entre economia de guerra e aumento da pobreza torna-se explícita, numa clara continuidade com a denúncia que Francisco fez na Laudato Si’ sobre a “conversão ecológica” que exige “deixar de investir em atividades que destroem o planeta para investir naqueles que o preservam” (Laudato Si’, 171).

A indústria bélica

A radicalidade da posição de Leão XIV manifesta-se especialmente na sua crítica à indústria bélica. Ao argumentar que “a fabricação de armas desvia recursos financeiros e tecnológicos que deveriam ser usados para erradicar a pobreza e a fome”, ele está a questionar as prioridades civilizacionais do mundo contemporâneo. Esta não é uma posição pacifista, mas uma aplicação consequente do princípio do destino universal dos bens: os recursos que poderiam alimentar os famintos estão a ser usados para fabricar instrumentos de morte. Algo que o próprio Presidente Lula fala em seus discursos.

Neste ponto, o diálogo com a Teologia da Libertação torna-se particularmente significativo. A opção preferencial pelos pobres, quando aplicada ao contexto bélico, transforma-se uma opção preferencial pelas vítimas dos conflitos. A frase de Leão XIV de que “a Igreja só será plenamente esposa do Senhor quando for também irmã dos pobres” – adquire uma ressonância especial quando lembramos que os principais afetados pelas guerras modernas são sempre os mais vulneráveis. Crianças, mulheres, idosos, doentes.

A Caridade Militante – Quando a Espiritualidade Encontra a Justiça

No arco final de Dilexi Te, Leão XIV realiza sua síntese algo ousada – a reabilitação da esmola como ato político e espiritual. Longe de ser um recuo para o assistencialismo, este movimento representa a consolidação de uma “caridade militante” que recusa tanto o espiritualismo desencarnado quanto o materialismo reducionista. É aqui que a contribuição do documento para a Doutrina Social da Igreja atinge seu ponto mais original.

O Papa Leão XIV afirma que “a esmola continua a ser um momento necessário de contato, encontro e identificação com a condição do outro”, ele está propondo uma verdadeira pedagogia do encontro. Esta visão ecoa profundamente a intuição de Francisco na Fratelli Tutti sobre a importância dos “gestos que restauram a dignidade” (Fratelli Tutti, 234 – Link para o Vaticano). Para ambos os pontífices, o gesto concreto – por menor que seja – tem um valor pedagógico insubstituível: ensina-nos a “tocar a carne sofredora de Cristo” e nos impede de cair na abstração quando falamos dos pobres.

A sofisticação da posição de Leão XIV manifesta-se no equilíbrio que mantém entre a exigência de justiça estrutural e o valor do gesto pessoal. Ele é claro ao afirmar que “a esmola não isenta as autoridades competentes das suas responsabilidades, nem elimina o empenho organizativo das instituições, muito menos substitui a legítima luta pela justiça”. Porém, insiste que “será sempre melhor fazer alguma coisa do que não fazer nada”. Esta não é uma contradição, mas uma compreensão madura da complexidade da mudança social: as transformações estruturais são necessárias, mas não podem servir de desculpa para a omissão no aqui e agora.

O legado de Dilexi Te

O legado mais profundo de Dilexi Te talvez seja esta capacidade de manter unidas dimensões que, no debate contemporâneo, aparecem frequentemente separadas: a mística e a política, a oração e a ação, a transformação pessoal e a mudança estrutural. O documento recusa tanto o espiritualismo que se desinteressa das injustiças concretas quanto o ativismo que esquece a dimensão contemplativa.

Neste sentido, Leão XIV oferece à Igreja do século XXI não apenas um programa de ação, mas um método espiritual; a “Igreja pobre e para os pobres” que ambos os papas sonham não é uma instituição que faz opções estratégicas, mas uma comunidade que redescobre sua identidade mais profunda no encontro com os últimos. Como diz o documento na sua conclusão, “uma Igreja que não coloca limites ao amor, que não conhece inimigos a combater, mas apenas homens e mulheres a amar, é a Igreja de que o mundo hoje precisa”.

O círculo se fecha: começando com o “Eu te amei”, a exortação termina com o amor como critério último e primeiro. Mas este amor não é um sentimento vago, mas uma força histórica que exige conversão pessoal, transformação social e, não menos importante, gestos concretos de solidariedade que nos salvam da hipocrisia e do autoengano.

Thiago Gama é doutorando da UFRJ, orientando da Professora Beatriz Bissio, na área de História Comparada da Igreja Católica.

Fontes


Bibliografia


GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas. 8. ed. São Paulo: Editora Loyola, 2022.

PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 2. ed. São Paulo: Edições CNBB, 2022.

PETRINI, Carlo (org.). A Economia de Francisco e Clara: um apelo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

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