Pandemia: merendeiras no alvo de governos e empresas

Demissões em massa, suspensão de direitos e atraso nos salários. O descaso enfrentado por mais de 700 cozinheiras da rede municipal de ensino de SP, sob gestão de empresa privada contratada pela prefeitura. Pesadelo se repete país afora

Foto: Reprodução do site da Prefeitura de SP
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Por Manuela Rached Pereira, especial para O Joio e O Trigo

“A gente tá lá, queima o braço, queima a mão fazendo comida e não tem dinheiro pra comprar nossas coisas. Como que trabalha sem receber?! No Natal, nem sei se vai dar pra comprar um frango…Quanto tá custando um frango? A gente tá sem noção de nada”. 

O desabafo de uma merendeira escolar durante uma manifestação no Centro Educacional Unificado (CEU) Heliópolis, no último dia 8, retrata a atual situação de mais de 700 cozinheiras de 260 escolas municipais em São Paulo, contratadas por uma empresa prestadora de “serviços de nutrição e alimentação escolar” à prefeitura da capital.

Atrasos ou suspensão do pagamento de salários e garantias trabalhistas, horas e funções extras não remuneradas, trabalho com equipe reduzida e falta de alimentos nas escolas compõem a lista dos motivos que levaram dezenas de merendeiras da rede municipal de ensino a paralisarem, na primeira semana do mês, em protesto contra as condições de trabalho oferecidas pela terceirizada Singular Gestão de Serviços LTDA.

“A gente tá com salário atrasado, com três vales alimentação em atraso e não tem a condução [transporte] depositada no valor certo também, vem sempre picado, às vezes, é 10 reais, às vezes só 5”, relatou durante o ato outra cozinheira de um Centro Educacional Infantil (CEI) na região do Ipiranga, sob a condição de anonimato. “A situação tá difícil, a gente não sabe se vão mandar a gente embora, se vão pagar”, completou.

Vencedora de pregões da Prefeitura de São Paulo desde 2016, a Singular possui um histórico como ré em mais de mil processos trabalhistas pelo país, segundo o portal JusBrasil. Além disso, no ano passado, teve os sócios denunciados pelo Ministério Público Federal por corrupção envolvendo lavagem de dinheiro e pagamento de propina em contratos com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (Seap). À época, a empresa ainda atendia por “Denjud Refeições Coletivas Administração e Serviços Ltda”. 

Em agosto de 2020, já havia problemas com a Singular e outras terceirizadas responsáveis pela gestão de merendas em escolas públicas estaduais e municipais de São Paulo. Naquele primeiro ano da pandemia, as empresas – até então responsáveis pela contratação de cerca de 9 mil trabalhadores no estado –  demitiram mais de 4 mil merendeiras escolares, segundo o SindiRefeições SP, sindicato da categoria.

A demissão em massa ocorreu após o governo federal aprovar uma lei, em julho do ano passado, que autoriza a suspensão de contratos de trabalho por meio de “acordo entre empregador e empregado”, durante a pandemia. Em muitos casos, no entanto, não houve cumprimento dos contratos rescisórios pelas terceirizadas.

“A Singular, inclusive, deixou de pagar as verbas [rescisórias] de trabalhadoras que foram dispensadas. Então, nós, já naquela época, entramos com uma ação na Justiça tentando inibir esse procedimento e cobrando os direitos trabalhistas delas. Nós ganhamos em primeiro grau, mas a ação ainda está em trâmite”, informa o assessor jurídico do sindicato paulista, Cesar Augusto de Mello.

A dificuldade de receber salários em dia e as demissões coletivas sem o cumprimento de garantias rescisórias pela Singular não são casos isolados entre as merendeiras de São Paulo. Em março deste ano, uma reportagem do G1 reuniu depoimentos de ex-funcionárias e trabalhadoras da empresa no Rio de Janeiro, em que alegavam o não recebimento de salários, o atraso de verbas rescisórias e até a suspensão do auxílio-alimentação de cozinheiras contratadas pela terceirizada.

Além das ações trabalhistas que correm contra a Singular em municípios da região Sudeste, constam do portal JusBrasil diversos processos trabalhistas ativos contra a gestora (de acesso restrito ao público), que tramitam em Tribunais Regionais do Trabalho de municípios em Santa Catarina e no Paraná. 

Rescisão de contrato 

De volta a São Paulo, após paralisações e denúncias feitas desde abril por merendeiras de escolas e centros de educação infantil e adulta das Zonas Leste e Sul da capital, a prefeitura rescindiu o contrato com a Singular, na última terça-feira (14). 

Questionada por e-mail sobre as irregularidades trabalhistas, a empresa não retornou os contatos até a publicação desta reportagem. A terceirizada, que atualmente possui um “site em construção” sem dados para contato, também foi procurada diversas vezes por telefone, mas as linhas – disponibilizadas em sites e documentos de cadastro nacional de pessoa jurídica – encontravam-se todas indisponíveis.

De acordo com o representante jurídico do SindiRefeições, a Singular alegava falta de pagamento por parte da prefeitura pela prestação dos serviços nos últimos meses. De outro lado, a Assessoria de Comunicação Social do município informou que a empresa “foi paga corretamente, como prescrito na lei”. 

“A partir de setembro, [a Singular] teve o pagamento retido por não apresentar a documentação previdenciária e outras, como consta definido da Lei 8666 e Portaria SF nº 170. A organização será substituída. O processo de rescisão contratual está em andamento e todas as providências jurídicas e administrativas estão sendo tomadas, respeitando os prazos definidos na legislação. A empresa foi multada por não cumprir as cláusulas contratuais e está sujeita a ficar impedida de participar de novas licitações”, informa uma nota da ASCOM, enviada à reportagem. 

Ameaças, falta de alimento e “trocas no cardápio”

Todas as merendeiras ouvidas por esta reportagem pediram para não serem identificadas, por medo de ficarem desempregadas, após represálias por parte de funcionárias da Singular. 

“As nutricionistas da empresa ficam oprimindo a gente, dizendo que quem fizesse paralisação não receberia recomendação para ser contratada pela próxima empresa que viesse e que ficaríamos sem emprego”, conta uma das trabalhadoras presentes na manifestação do início do mês.

Além do atraso de pagamentos pela Singular, ao menos cinco cozinheiras que compareceram ao ato em Heliópolis relataram falta de alimentos, trabalhos com equipes reduzidas, além de funções e horas extras de trabalho sem remuneração, em escolas e centros educacionais na região do Ipiranga, na zona leste de São Paulo.

Uma delas afirma: “Sempre tem troca de cardápio. O dia que é de macarrão, por exemplo, não tem como fazer, porque não tem molho. Tá sempre faltando alguma coisa pra preparação do dia. Desde sempre.” Outra diz: Toda hora tá faltando coisa, sempre tirando de uma escola pra repor na outra, quando a gente vai fazer arroz e feijão e não tem carne, tem que colocar PPR [produto de proteína de soja]. 

No CEI Inocoop Ipiranga, afirmam que “às vezes, só tem dois melões pra dividir entre 70, 80 crianças”. Já em uma creche da mesma região, onde uma delas trabalha, “só tem melancia e até as professoras estão reclamando”. Segundo as trabalhadoras, a merenda deveria incluir três variações de frutas diariamente, conforme consta no plano nutricional da Singular.

“A gente desenrola”

Perguntadas sobre as providências tomadas em relação à falta de alimentos nas escolas da região, as merendeiras afirmam que, muitas vezes, são as próprias cozinheiras que resolvem a situação. “É assim que a gente vai fazendo, tratando como se fossem os nossos filhos”, diz uma delas.

“Eles [responsáveis pela Singular] apresentam um cardápio pra prefeitura, mas, na prática, é a gente que desenrola. A gente sai pra buscar [o alimento que falta] em outra escola. Isso, quando a gente não sai pra comprar alguma coisa com o nosso próprio dinheiro ou traz o feijão, a cebola, ou um alho de casa”, conta outra trabalhadora.

Em relação às condições de trabalho nas escolas com alimentação gerida pela empresa, algumas cozinheiras reclamam de horas extras, serviços que extrapolam funções e de equipes reduzidas, sem qualquer compensação ou adicional sobre os salários.

“Os serviços que são pras nutricionistas da empresa fazerem, que é contagem de estoque, de utensílios, saída de uma escola pra outra pra buscar alimento que falta, carregar peso, tudo isso, elas fazem a gente fazer. E se acontecer alguma coisa fora do serviço, a responsabilidade é nossa, porque a empresa diz que a gente não pode sair [do local de trabalho]”, relatou uma das trabalhadoras durante a manifestação.

Outra merendeira acrescentou: “Têm meninas trabalhando mais de 12 horas na cozinha e não pagam hora extra. Em escolas que deveriam estar trabalhando de três a quatro funcionárias, ficamos meses trabalhando em duas”. Ao lado dela, uma colega relata: “Eu abria e fechava sozinha a cozinha todo dia. No começo era assim, almoço, janta, café, tudo sozinha”. 

Sem se identificar, as mulheres ouvidas  durante o protesto disponibilizaram apenas a informação de que trabalham em centros educacionais na região do Ipiranga. 

“Escola pública é extensão da casa do aluno”

Alguns pais de alunos da rede pública acompanhavam as merendeiras no ato em frente ao CEU de Heliópolis. Entre eles, Marcos Monteiro, pai de duas crianças matriculadas na rede municipal, uma de 9 e outra de 11 anos. 

“Não é justo meus filhos terem uma comida digna na escola, feita por elas, e elas não terem o que comer em casa com seus filhos”, defende Monteiro. Para ele, é preciso “zelar” pelas merendeiras. “A escola pública é extensão da casa do aluno, já que muitas crianças têm uma refeição melhor na escola do que em casa, com pais desempregados e com a pandemia”.

Também presente na manifestação, Rita Lusenilde, bombeira civil e mãe de dois adolescentes, estudantes das escolas estaduais Carlos Estevam Martins e Professor Ataliba de Oliveira, localizadas no mesmo bairro da Zona Sul de São Paulo, diz: “Se fosse por nós, a gente dava um pouco pra cada uma [das merendeiras], mas a gente não pode né, infelizmente”.

“Os grandão se preocupa mais com eles, que já têm bastante dinheiro, e a gente que precisa dar um alimento saudável pras crianças, uma coisa muito bonita pra elas, uma mesa com uma fartura no Natal. E aí?!”, questiona Rita.

Rita Lusenilde, bombeira civil e mãe de dois alunos de escolas em Heliópolis, ao lado de uma das merendeiras em protesto.

“Sem impedimento legal”

Questionada se estava ciente da contratação de uma empresa com um histórico extenso de ações judiciais e denúncias trabalhistas, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Educação (SME), apenas reiterou as informações da primeira nota enviada à reportagem e informou que “a contratação da empresa Singular foi realizada dentro da lei, seguindo todos os trâmites necessários e sem nenhum impedimento legal”.

A reportagem voltou a tentar contato com a empresa Singular diversas vezes, até a data de rescisão do contrato pela Prefeitura, mas, como informado anteriormente, segue sem um retorno.

Publicada no diário oficial de terça-feira (14), a decisão da prefeitura de rescindir o contrato com a Singular, por meio da Coordenadoria de Alimentação Escolar da SME, é acompanhada da contratação de duas novas prestadoras de serviços para as Diretorias Regionais de Educação do Ipiranga e de São Miguel: A P.R.M Serviços e Mão de Obra Especializada Eireli e a S.H.A Comércio de Alimentos LTDA, respectivamente. Ambas empresas também respondem por centenas de ações trabalhistas cadastradas no JusBrasil. 

Os novos contratos nas duas regiões da capital encerram no final de julho de 2022, pelo valor médio de quase R$38 milhões e máximo de mais de R$56 milhões, para unidades educacionais no Ipiranga. Já a verba média destinada às escolas do distrito de São Miguel somam cerca de R$58 milhões e, a máxima, mais de R$86 milhões.

Entre governos, terceirizadas e trabalhadores

Em uma rápida pesquisa pela internet, é possível encontrar, para além dos casos da Singular (ou Denjud) apresentados nesta apuração, dezenas de notícias recentes com denúncias de má gestão por parte de outras empresas contratadas por governos estaduais e municipais para a prestação de serviços de alimentação escolar. 

Entre as manchetes divulgadas em veículos de grande circulação nacional pelas cinco regiões do Brasil, desde 2020, estão: “Foto flagra falta de higiene no transporte das carnes de merenda escolar em Paragominas”[Pará]; “Merendeiras contratadas por empresa terceirizada reclamam da falta de pagamentos após demissão”[Bahia]; “Prefeitura de Taquarituba encerra contrato com empresa de merenda após intoxicação de alunos[São Paulo]; “Prefeitura rescinde contrato com empresa após atraso no pagamento de salário de merendeiras em Caxias do Sul[Rio Grande do Sul]; “Terceirização ameaça emprego de 2 mil merendeiras do Distrito Federal” [DF].

Segundo o SindiRefeições de São Paulo, apenas entre as ações trabalhistas do sindicato local, há cerca de 450 processos judiciais ativos contra terceirizadas que prestam serviços de merenda escolar ao estado, “entre ações coletivas que representam milhares de trabalhadores, ações individuais e mesas redondas no Ministério do Trabalho”.

Apesar dessas centenas de ações, o assessor jurídico do sindicato acredita que as merendeiras contratadas por empresas terceirizadas são parte de “uma categoria pulverizada, de gente que está fragilizada pra poder [conseguir] fazer greve”. Segundo ele, “a trabalhadora de cozinha escolar, às vezes, trabalha cinco horas numa escola, cinco em outra, e não quer paralisar, porque sabe que a comida das crianças depende dela”.

Ainda segundo Cesar Augusto de Mello, depois da reforma trabalhista, aprovada em 2017 pelo governo do ex-presidente, Michel Temer (MDB), e com o desemprego e subemprego em alta, as trabalhadoras da categoria também têm receio de procurar o sindicato. “Não querem que seus nomes sejam expostos nas ações trabalhistas, porque morrem de medo de ficar sem emprego”, explica.

De acordo com a presidente da Associação Independente de Trabalhadoras e Trabalhadores Terceirizados (AIT), Biana Politto, são recorrentes os casos de não pagamento de salários e garantias trabalhistas a funcionárias terceirizadas no setor de alimentação escolar, especialmente quando o contrato da empresa está no fim. 

“No fim do contrato, geralmente, é que deixam de pagar o salário, os vales. Simplesmente ignoram [as empresas terceirizadas] as obrigações, porque sabem que o contrato vai acabar, que a trabalhadora vai ser demitida e não vai ter força pra se organizar. Muitas vezes, porque sabem que são grandes as chances da próxima empresa que entrar recontratar a merendeira que estava trabalhando antes”, afirma Politto.

Merendeiras com cartazes em protesto contra a empresa Singular, em frente ao CEU Heliópolis, Zona Sul de São Paulo.

Gestão terceirizada x comunitária

Além de denúncias, relatos e processos judiciais envolvendo empresas do setor alimentício, durante a apuração desta reportagem, foram encontradas propostas e ações práticas recentes que buscam alternativas à terceirização dos serviços de merenda escolar pelos governos. Um deles é um projeto de lei que proíbe a terceirização da merenda escolar no Paraná, protocolado em novembro pela deputada estadual Luciana Rafagin (PT).

Conforme divulgado no portal da Assembleia Legislativa do Estado paranaense, por meio dessa iniciativa, a parlamentar sai em defesa “da segurança alimentar e nutricional nas escolas, do trabalho das merendeiras, da cultura de uma alimentação saudável e, ao mesmo tempo, da valorização da agricultura familiar, responsável, inclusive, pelo incremento da renda nos pequenos municípios do interior”.

Para a autora da proposta, em um contexto de empobrecimento, de fome, desnutrição, de desemprego e inflação alta, “adotar a terceirização da gestão e da administração da merenda escolar no Paraná vai acirrar o quadro de insegurança alimentar e nutricional”.

Já entre as iniciativas práticas em curso, estão escolas da rede municipal de ensino de Teresópolis, no Rio de Janeiro, que voltaram a assumir a gestão da merenda escolar em outubro. De acordo com o site da prefeitura, desde o retorno das aulas para a modalidade semipresencial, em agosto, “cada unidade escolar da cidade passou a gerir a preparação dos alimentos na própria cozinha, que antes era gerenciada por uma empresa contratada por meio de licitação”. 

Após a decisão municipal, aproximadamente 400 cozinheiras, moradoras do mesmo bairro da escola, foram contratadas e capacitadas via Programa Operação Trabalho (POT) para o preparo das merendas.

Para a secretária de Educação do município, Satiele Santos, essa foi uma decisão acertada do governo municipal. “A gente costuma dizer que cozinhar é uma ato de amor e hoje podemos contar com essa prática dentro das escolas. A maioria dessas mulheres já conhece os alunos do próprio bairro, outras têm filhos na escola onde agora cozinham, então, trazer essas mulheres das comunidades para dentro das unidades escolares foi uma atitude acertada.  Hoje, temos uma comida feita com mais carinho e qualidade”, afirmou Satiele ao portal da prefeitura. E conclui: “Outra vantagem é, sem dúvida, o vínculo que essas mulheres têm com os alunos por serem da própria localidade”.

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