Os riscos de um “mar de lama” na Amazônia

Segundo investigação, quase metade das barragens minerarias em seis estados estão sob risco de rompimento – e só 17% foram vistoriadas em 2024. No Pará, quilombos fazem fronteira com 11 mineradoras e lutam no tribunal para denunciar o descarte irregular de rejeitos

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Por Jullie Pereira, na InfoAmazonia

Uma parte da população amazônica vive próxima a barragens de mineração que apresentam problemas estruturais e de risco potencial à vida humana e à floresta. Uma análise exclusiva da InfoAmazonia revela que, dos 371 empreendimentos minerários na região, 46% (171) estão em estado de emergência — com falhas físicas, como corrosão, erosão ou desgaste de materiais —, ou classificados como risco médio ou alto de atingir comunidades e causar danos em caso de rompimento. Os dados são da Agência Nacional de Mineração (ANM).

A atividade das mineradoras gera rejeitos, como lama, líquidos e resíduos tóxicos, que são armazenados em barragens. Em caso de rompimento, esses materiais podem se espalhar por uma área de 590 km² na Amazônia, — o equivalente a mais que o dobro da cidade de Porto Alegre (RS) — atingindo pontos próximos a florestas, cidades e quilombos, segundo os dados da ANM. 

Durante a instalação e o registro oficial pela ANM, as barragens passam por uma avaliação sobre os possíveis riscos de acidentes, como rompimentos e outras falhas na estrutura, e os danos causados por eles, ambos classificados como alto, médio ou baixo. A categoria de risco verifica o estado de conservação, a altura da barragem, a capacidade para o volume de rejeitos e o histórico de manutenção e monitoramento pelos órgãos responsáveis. Já o dano potencial analisa a possibilidade de perdas humanas e os impactos socioambientais e econômicos.

Para entender até onde a lama chegaria em caso de um rompimento, as empresas calculam a distância de alcance do rejeito de acordo com o volume, o tipo, a altura e a geometria da estrutura da barragem. Seis estados da Amazônia seriam afetados em caso de acidente: Pará, Maranhão, Mato Grosso, Amapá, Rondônia e Amazonas. 

O Pará seria o mais prejudicado, com 409,48 km² impactados, área equivalente a 40% da capital Belém. Os rejeitos atingiriam cidades como Barcarena (PA), Almeirim (PA), Parauapebas (PA) e Pedra Branca do Amapari (AP), além de 345 km² de floresta e três comunidades quilombolas, onde vivem mais de 400 famílias.

Nos outros estados, o impacto seria menor: em Mato Grosso, 64,99 km² seriam atingidos; Maranhão, 51 km²; Amapá, 24,58 km²; Rondônia, 21,94 km²; e Amazonas, 18,51 km². No entanto, o histórico de rompimentos no Brasil mostra que os cálculos preditivos de área em caso de acidente não são precisos: “As informações das barragens são enviadas pelas próprias empresas, não são produzidas pelo Estado. Isso prejudica a eficácia desses dados”, explica Francisco Kelvin da Silva, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens, organização que atua no tema desde 1970.

Segundo Silva, oficialmente, o Brasil tem cerca de 30 mil barragens para diferentes usos: contenção de sedimentos, hidrelétricas, geração de energia, irrigação, navegação, espalhadas por todo o território nacional: “Entretanto, os pesquisadores indicam que o número pode ser ainda maior, especialmente em regiões do interior do país que ainda não estejam cadastradas pelo governo”.

Além disso, no caso das barragens de mineração, há um déficit nos registros, pois existem áreas não cadastradas, como aquelas que indicam a presença de garimpo ilegal. Foi esse o caso do rompimento ocorrido em fevereiro, no Amapá, quando os rios Cupixi e Araguari foram manchados com lama, areia e argila, resíduos da extração de ouro, nos municípios de Pedra Branca do Amapari e Porto Grande.

“No caso da Amazônia, uma quantidade muito grande de barragens ligadas à atividade do garimpo só está sendo identificada nos últimos relatórios, em virtude dos problemas de segurança que apresentam. Ou seja, são verificadas quando já estão causando algum dano”, diz Silva.

Empresas atuam na região com a extração de bauxita, ferro, manganês, cobre, níquel e outros minérios. Esses materiais podem causar problemas de saúde, tanto pela ingestão direta, como no consumo de água contaminada, ou indireta, quando animais contaminados são usados para alimentação. 

Alguns materiais, como cobre e chumbo, podem causar irritações na pele quando a pessoa entra em contato com a poeira dos rejeitos. Em geral, as doenças associadas são infecciosas, como a dengue, que se prolifera em focos de água parada. Também há risco de doenças renais, câncer, hipertensão e problemas psiquiátricos, como depressão, ansiedade, insônia e estresse.

Para Silva, o Estado não consegue estimar os danos reais dos empreendimentos. Ele explica que, antes mesmo de uma barragem começar a funcionar, as comunidades e os municípios sofrem impactos nos serviços públicos e no crescimento desordenado dos territórios.

“Você tem um impacto cumulativo dessa operação que é muito grande, que tem a ver não só com o impacto ambiental, mas com a capacidade do Estado de atender diante dessa nova realidade. A gente tem um crescimento muito grande da especulação imobiliária, do preço da terra, o que agrava os conflitos urbanos — com casos de violência contra mulheres crescendo — e também no ambiente rural, com brigas por moradia”, relata.

Comunidade Boa Vista tem mais de 50 famílias quilombolas que temem o rompimento de barragem Foto: Carlos Penteado/ Arquivo CPI-SP

Pará: o estado sob maior risco

As populações do estado do Pará disputam o espaço com grandes mineradoras que operam na região. Neste ano, por exemplo, o Tribunal da Holanda vai julgar a empresa norueguesa Hydro-Alunorte, acusada de despejar minérios em rios que margeiam comunidades ribeirinhas nos municípios de Barcarena e Abaetetuba. 

A Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama) afirma que o impacto ambiental nos rios está causando perda de memória, câncer e problemas neurológicos nos moradores das comunidades Sítio São João, São Sebastião do Burajuba e Sítio Cupuaçu, localizadas em Barcarena. A empresa atua no município desde 1995. No ano passado, a Justiça Federal condenou a Hydro-Alunorte a pagar R$ 100 milhões pelo impacto causado nas comunidades.

“Nós queremos a nossa vida como era antigamente. Queremos a nossa saúde. Somos tradicionais, somos povo da floresta. Queremos tomar banho no rio, andar a pé, nas nossas praias. Queremos voltar a pescar e comer os nossos peixes, vender. Queremos a nossa saúde de volta”, diz Maria do Socorro Costa Silva, presidente da Cainquiama.

De acordo com o VI Relatório Anual de Segurança de Barragens de Mineração, da Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão responsável pelo cadastro e monitoramento dos empreendimentos, das 371 barragens existentes na Amazônia, apenas 17% (66) foram vistoriadas em 2024.

As vistorias são feitas para que o órgão verifique se a empresa está cumprindo os requisitos legais dos Planos de Segurança de Barragem — documento que descreve ações de redução de impactos — e para avaliar a conservação das estruturas físicas das barragens.

A líder quilombola Sandra Amorim é coordenadora da Associação de Moradores da Comunidade Quilombola Sítio São João, território que está próximo de duas barragens da empresa Imerys Rio Capim, em Barcarena. A empresa extrai dali o minério caulim

Este minério é uma rocha fina composta por silicato de alumínio. Ela é usada para confecção de papel, cerâmicas, tintas, borrachas, dentre outros.. As duas barragens apresentam risco alto e baixo para rompimento, e ambas têm dano potencial alto às comunidades.

Sandra é uma das ativistas que lutam contra a mineração no Pará. “Afetou sim, porque não tem mais como a gente usar o rio. Eles chamam de acidentes, a gente chama de crime ambiental mesmo. A água pura é contaminada pelos rejeitos, por lixo”, afirma.

Quilombos atingidos

Em Oriximiná, noroeste do Pará, os quilombos Boa Vista e Alto Trombetas ficam próximos de 11 barragens de mineração da empresa Mineração Rio do Norte (MRN), que explora bauxita na região do Vale do Trombetas.

Manuel Edilson Santos, líder quilombola conhecido como “Munduca”, diz que vive há 46 anos com medo de um acidente. Ele mora na comunidade Boa Vista, localizada a 10 minutos de distância da barragem da MRN.

Este foi o primeiro quilombo a receber titulação no Brasil, em 1995, e lá vivem 50 famílias. Porém, a mineradora chegou antes que o Estado cumprisse seu papel, em 1979, de titular os territórios quilombolas. Desde então, as comunidades tiveram diversas modificações no espaço: primeiro, com a criação da vila de Porto Trombetas — feita para receber os funcionários da mineradora —, depois com práticas de despejo e criação de tubulações para derramamento em lagos. Parte desses impactos só começou a ser corrigida após 1981, com a criação da Política Nacional de Meio Ambiente, que instituiu o licenciamento ambiental e planos de segurança.

Munduca segura documentos de titulação da comunidade Boa Vista, titulada em 1995. Foto: Lucas Andrade/ Arquivo CPI-SP

“A gente fica a 100 metros de uma barragem dessas. Mora gente ao lado da barragem e na frente dela. Então, não tem como dizer que lá não há risco. Você não sabe a hora nem o momento em que ela pode estourar, entendeu? Já são muitos anos jogando lama nos igarapés”, explica Munduca.

A MRN promove diversas atividades de reconhecimento das comunidades quilombolas, como projetos educacionais, seminários e apoio às práticas extrativistas. Apesar disso, Munduca conta que os danos às famílias são constantes, pelo medo de usar as águas dos rios, pela perda do território e pelo receio de que um rompimento ocorra.

“Eu sou muito revoltado com o que acontece aqui. Imagina, eles fizeram um estudo de componente quilombola com 600 páginas de documento. Você acredita que, dentro do território, os comunitários — que são em sua maioria semi-analfabetos — vão ter condições de entender a importância disso? É uma humilhação. É muito covarde, sabe?”, diz Munduca.

No caso das duas barragens da MRN que ameaçam a vida dos quilombolas da Comunidade Boa Vista, ambas têm dano potencial considerado médio. Isso significa que, em caso de rompimento, há possibilidade de perdas de vidas humanas, impactos ambientais e estruturais, segundo a ANM. 

“Ela [a empresa] está tirando minério sem nenhuma preocupação. Para a mineração, tudo aqui está sendo feito com 100% de qualidade, com tudo em segurança, sem dano ao meio ambiente, mas isso não é real. Os nossos rios estão sujos”, diz Munduca.

A InfoAmazonia procurou a MRN e perguntou sobre os seus protocolos de segurança. Em resposta, a empresa informou que faz monitoramento das barragens 24h por dia e possui o Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG), estrutura que “garante a segurança dos reservatórios e barragens, com instrumentos automatizados que fornecem leituras diárias analisadas por toda a equipe do CMG e barragens”.

A mineradora informou, também, que todas as barragens foram vistoriadas por auditores externos, em 2024 e 2025, e que estão seguras: “A empresa também promove ações de conscientização, como seminários informativos e simulados, que mantêm comunidades próximas ao empreendimento e empregados informados e preparados para qualquer tipo de incidente, atuando preventivamente com a ampliação do conhecimento sobre o tema”, explicou. 

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Mineradoras com barragens

Dez empresas concentram 77 barragens na Amazônia. São elas: Mineração Rio do Norte S.A. (24), Cooperativa Mineradora dos Garimpeiros de Ariquemes (9), Vale S.A. (9), Alcoa World Alumina Brasil Ltda. (7), Mineração Taboca (6), Salobo Metais S.A. (6), Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Pontes e Lacerda (4), Cooperativa dos Garimpeiros do Vale do Vila Nova (4), Mineração Apoena S.A. (4) e Salinas Gold Mineração (4).

Dessas, a Vale S.A., Mineração Taboca, Salobo Metais, Alcoa World Alumina Brasil têm casos de investigações de irregularidades no Brasil sob análise – processos judiciais ou denúncias feitas por comunidades ao MPF – ou rompimentos de barragens já ocorridos e denunciados à imprensa.

O Ministério Público Federal (MPF) recomendou, em 2021, a suspensão das atividades da barragem da Mineração Taboca S.A., após identificar vazamento de rejeitos no território do povo Waimiri Atroari.

Já a Vale S.A. foi responsável por dois grandes rompimentos de barragens no Brasil: os de Brumadinho e de Mariana, ambos no estado de Minas Gerais. A empresa também é dona da Salobo Metais S.A, que tem barragens na região. Em 2022, o Ministério Público do Trabalho do Pará pediu que a Justiça determinasse a retirada de 1.400 trabalhadores da área de risco, onde atuavam na barragem Mirim, no município de Marabá (PA).

Em 2019, a Justiça Federal determinou a proibição da entrada da Alcoa World Alumina Brasil no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, em Santarém (PA), sem a realização da consulta prévia, livre e informada às comunidades. A norma foi um pedido do MPF. O órgão afirmou em ação ajuizada que estavam ocorrendo assédios às comunidades, sem seguir o trâmite da consulta. 

Todas as empresas citadas – Mineração Rio do Norte S.A., Cooperativa Mineradora dos Garimpeiros de Ariquemes, Vale S.A., Alcoa World Alumina Brasil Ltda, Mineração Taboca, Salobo Metais S.A, Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Pontes e Lacerda, Cooperativa dos Garimpeiros do Vale do Vila Nova, Mineração Apoena S.A. e Salinas Gold Mineração – foram questionadas pela InfoAmazonia sobre as vistorias realizadas no último ano, sobre os protocolos de segurança e a estrutura das barragens que possuem nos estados da Amazônia.

A Vale informou que todas as barragens possuem declaração de estabilidade positiva e são vistoriadas periodicamente e que as estruturas passam por inspeções rotineiras de campo, auditorias externas e são monitoradas permanentemente também pelo Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG), 24 horas por dia, durante todos os dias da semana. 

“As barragens da Vale no Pará possuem declaração de estabilidade positiva e são vistoriadas periodicamente, de acordo com a legislação. A empresa não possui nenhuma barragem em nível de emergência no estado. As estruturas passam por inspeções rotineiras de campo, auditorias externas e são monitoradas permanentemente também pelo Centro de Monitoramento Geotécnico (CMG). O CMG funciona por meio de sistema integrado com instrumentos, câmeras e acompanhamento de equipe técnica, que monitora as estruturas geotécnicas (barragens) da Vale, 24 horas por dia, durante todos os dias da semana.

Todas as barragens da Vale no Pará possuem Plano de Segurança de barragens, conforme previsto em lei. A empresa periodicamente, realiza conjunto de ações educativas de promoção da cultura de segurança sobre barragens. Entre elas, testes de sirenes e simulados de emergência, visitas às operações e seminários orientativos, cujo objetivo é aprofundar o conhecimento das pessoas sobre medidas de segurança de barragens e as ações de prevenção. Por fim, a Vale reitera o seu compromisso com a proteção das comunidades, do meio ambiente e com a segurança de suas estruturas”, disse a empresa. 

A Mineração Apoena, da companhia Aura Minerals, explicou, via assessoria de imprensa, que todas as barragens passam por auditorias três vezes ao ano e inspeções regulares quinzenalmente . “Todas as nossas barragens estão regulares, todas atestadas dentro da regularidade. Além das auditorias externas exigidas por lei, a AURA cumpre com legislação e faz inspeções internas, regulares, com seu próprio time de especialistas, periodicamente, de forma regular”, disseram. 

As outras empresas não responderam até a publicação da matéria.

COMO ANALISAMOS AS BARRAGENS DE MINERAÇÃO NA AMAZÔNIA?

. Nesta reportagem, analisamos as informações sobre as barragens de mineração disponibilizadas pela Agência Nacional de Mineração. Foram consideradas os dados de barragens em operação, listadas no Sistema Integrado de Gestão de Barragens de Mineração (SIGBM), coletados em abril de 2025, nos nove estados da Amazônia Legal: Pará, Amapá, Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão.

. Além das características das barragens, como planos de segurança, níveis de risco e danos possíveis, verificamos a sobreposição das áreas de inundação com a localização de comunidades quilombolas e localidades quilombolas, disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pelo Censo 2022 (IBGE).

. Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.

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