O que Marx diria sobre o ChatGPT?
Ela “fala” porque bilhões falaram antes dela. Ao se deparar com IA, filósofo veria, por trás da “inteligência autônoma”, o trabalho social expropriado. Mas, crítico do ludismo, talvez não a rejeitasse. Toda tecnologia está em disputa permanente – e pode ser apropriada pelo Comum
Publicado 17/10/2025 às 18:34 - Atualizado 17/10/2025 às 18:42

Por Gabriel Teles, no Blog da Boitempo
Podemos imaginá-lo numa sala apertada, abarrotada de livros, papéis e manuscritos. Marx, o velho filósofo com olhar cansado e barba desgrenhada, ajeita-se diante de uma escrivaninha. Ao seu lado, um camarada técnico de informática, curioso e paciente, lhe apresenta uma máquina que não existia no século XIX: um notebook. Marx franze o cenho, inclina-se, e com um misto de desconfiança e ironia digita as primeiras palavras no campo luminoso da tela: “O que é o capitalismo?” Em segundos, a máquina responde, articulada e segura, como se fosse capaz de resumir em poucas linhas aquilo a que ele dedicou a vida inteira. Marx sorri, mas não com espanto: com o riso de quem reconhece, por trás do espetáculo novo, um truque antigo.
Esse sorriso seria, antes de tudo, o sorriso diante do fetiche. O ChatGPT talvez apareça para nós como um oráculo do Vale do Silício, mas para Marx não passaria de mais uma mercadoria travestida de maravilha. O que impressiona a muitos — a velocidade, a fluidez, a capacidade de emular estilos — seria para ele apenas aparência. A questão decisiva não estaria na resposta em si, mas no que ela encobre: quem controla essa máquina? de onde vem sua força? a quem serve?
Ao ler as respostas da IA, Marx não veria inteligência autônoma, mas trabalho social expropriado. A máquina fala porque milhões falaram antes dela. Cada frase que brota da tela condensa séculos de escrita coletiva: de jornalistas, professores, poetas, cientistas, artistas. Um gigantesco arquivo humano, capturado sem crédito, reorganizado em estatísticas, reapresentado como novidade. O ChatGPT não pensa: apenas devolve, de modo probabilístico, o que já foi dito. É um coro de vozes arrancadas de seu contexto, mascaradas pelo brilho da mercadoria digital.
E como toda mercadoria, a IA esconde sua história. O texto limpo, pronto e rápido apaga a cadeia de exploração que o sustenta: a energia devorada por data centers, os minerais extraídos em condições brutais, os trabalhadores precarizados que rotulam dados e moderam conteúdos. O milagre da máquina repousa, como sempre, sobre suor e cicatrizes. Marx chamaria isso, quem sabe, de fetichismo da linguagem: a transformação do trabalho vivo em um código que aparece como coisa dotada de vida própria.
Se alguém lhe dissesse que o ChatGPT é “inteligente”, Marx seria implacável. Consciência não é simples encadeamento de frases, mas relação histórica, produto das condições materiais e das contradições sociais. A IA pode escrever sobre alienação, mas não participa do processo social que a gera; pode explicar a luta de classes, mas não se insere no conflito real entre capital e trabalho; pode citar o Manifesto, mas não age politicamente para transformar a realidade. Sua linguagem é superfície sem carne, um reflexo sem corpo. Se a mercadoria já era, para Marx, a forma mais mística do mundo moderno, o ChatGPT seria o fetiche elevado à potência máxima; uma simulação de pensamento que encobre as condições materiais de sua produção.
Mas ele não veria apenas a máscara. Veria também a fissura. O fato de que essa tecnologia só existe porque acumula e processa a inteligência social confirma sua tese mais profunda: o conhecimento é sempre coletivo. Nenhuma criação é solitária. Toda ideia nasce de redes, gerações, tradições e conflitos. O capital pode privatizar essa inteligência, vendê-la como mercadoria, mas nunca poderá apagar sua origem comum. O ChatGPT, sem querer, testemunha a verdade de Marx: o saber é social por essência.
E é aqui que a dialética se impõe. Enquanto a máquina se limita a repetir padrões, a dialética avança pela contradição. O algoritmo busca coerência; Marx busca a fissura. O ChatGPT reforça o já-dito; a dialética produz o novo, cria categorias que não existiam antes. Por isso, a IA é incapaz de reproduzir a obra de Marx: ela carece da negatividade, do movimento de negação e superação que constitui o núcleo do pensamento dialético.
Na tela, a máquina pode alinhar palavras sobre “mais-valor” e “fetichismo”, mas não pode produzir os conceitos como Marx os produziu — a partir da análise das lutas de seu tempo, da observação das fábricas, da vivência da revolução e da derrota. O ChatGPT pode falar de barricadas, mas não sabe o que é estar em uma. Pode repetir a palavra “práxis”, mas não pode unir teoria e ação.
Marx talvez se inclinasse para frente, fecharia o notebook e, com ironia, diria: “Esta máquina pode até falar sobre mim, mas nunca será como eu.” Porque Marx não é estilo nem frase. Marx é movimento, é contradição viva, é crítica enraizada na práxis. Sua obra não se encontra nas palavras cristalizadas, mas no incêndio que elas provocam quando encontram sujeitos históricos dispostos a lutar.
O ChatGPT é espelho sem carne, eco sem fogo, discurso sem luta. Mas é também prova do poder coletivo do saber humano, poder que o capital tenta, mais uma vez, capturar. A pergunta que fica, então, não é se a máquina pode pensar como Marx, mas se nós ainda queremos pensar com Marx.
Pensar com Marx significa recusar o fascínio dos simulacros, mergulhar nas contradições de nosso tempo, atravessar as ilusões e ir ao encontro do real. Significa transformar o pensamento em prática, a teoria em ação, a crítica em luta. A IA pode organizar dados, mas não pode atravessar a história. Pode recombinar frases, mas não pode criar futuro.
No fim, Marx diria que o perigo não está no ChatGPT em si, mas em nossa disposição de acreditar nele como substituto do pensamento vivo. A máquina pode ser útil como ferramenta, mas não pode assumir a tarefa da crítica. Essa cabe a nós, sujeitos históricos, que vivemos as contradições na carne e que podemos transformá-las.
A cena termina com Marx afastando o notebook, como quem fecha não apenas uma máquina, mas um espelho deformado de nossa época. Ele encosta a tampa com calma, solta um suspiro e volta-se aos seus papéis amarelados, cobertos de anotações apressadas, rabiscos de fórmulas e trechos de citações. A sala está abarrotada: livros empilhados até quase o teto, jornais espalhados pelo chão, o cheiro de tinta e poeira impregnando o ar. A luz tênue da lamparina se mistura ao brilho residual da tela que se apaga, como se dois tempos diferentes se tocassem apenas por um instante — o século XIX e o XXI.
Não há desprezo em seu gesto, mas clareza. Marx não teme a técnica; admira, inclusive, a inventividade humana que a produz. O que o incomoda não é o chatgpt, mas a ilusão que o acompanha — a promessa de que uma máquina possa pensar em nosso lugar. Ele sabe que a história não se escreve em algoritmos, mas em corpos que lutam, em sujeitos que se erguem contra a exploração. Nenhuma inteligência artificial pode substituir a crítica viva que nasce da contradição.
Por um momento, Marx acaricia a borda de um volume aberto de O capital, como se reafirmasse silenciosamente que é ali, nas páginas forjadas entre teoria e realidade, que o pensamento encontra sua força. O contraste é quase poético: de um lado, a máquina que fala sem viver; do outro, a obra que vive porque se enraíza na história. Ele se volta novamente aos papéis, mergulhando em notas sobre crises financeiras, greves operárias, estatísticas de produção, como quem retorna ao terreno sólido do real depois de atravessar uma miragem.
O notebook permanece fechado sobre a mesa, não como rejeição, mas como lembrança. Lembrança de que toda técnica pode ser apropriada, distorcida, mercantilizada. Lembrança de que cabe aos homens e mulheres de seu tempo — e do nosso — decidir o que fazer com ela. O que importa, pensa Marx, não é o que o ChatGPT pode dizer sobre ele, mas o que nós podemos fazer com ele, com sua obra, diante de um mundo que ainda clama por transformação.
Gabriel Teles é doutor em Sociologia pela USP e professor e pós-doutorando na UnB.
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