O que a pandemia nos mostrou sobre Estado e amor

Socióloga que refletiu sobre o nexo entre a produção capitalista e os afetos sustenta: exigência da Saúde, e do Público, desmoralizou discurso liberal; e confinamento expõe como a intimidade é ao mesmo tempo necessária e insuportável…

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Eva Illouz, em entrevista ao Página/12, traduzida pelo IHU Online

Nesta modernidade, ninguém havia pensado em que medida o contrato que nos liga ao Estado, e que liga o Estado com a economia liberal, está baseado na saúde. Somente no século XX o filósofo francês Michel Foucault teorizou a forma como, a partir do século XVII, “a vida se tornou um objeto de poder”. E a vida é a saúde. Esse “pacto sanitário” exposto pela pensadora franco-israelense Eva Illouz, nesta entrevista, nunca esteve tão evidente como hoje, ainda mais porque a sobrevivência de um sistema liberal que abusa do Estado, como também o questiona, depende de sua eficácia.

Illouz é a socióloga e pensadora que mais refletiu e escreveu sobre o capitalismo visto pelo ângulo da subjetividade, ou seja, do ponto de vista do amor e suas (nossas) relações com o sistema liberal. Seus ensaios são o testemunho de um pensamento baseado na ideia de que a modernidade pode ser compreendida através do amor. Não se trata tanto, em sua obra, do amor propriamente “sentimental”, mas, muito mais, da maneira como o capitalismo alterou os códigos emocionais e a estratégia com a qual a chamada economia moral das relações sociais institui intercâmbios econômicos, por meio das emoções (Capitalismo, consumo y autenticidad, Katz, Argentina, 2019).

Seus livros anteriores ou posteriores exploram com uma originalidade inquestionável toda a esfera dessa relação contaminante entre amor e capitalismo: Intimidades congeladas (Katz Editores, 2007), El consumo de la utopía romántica. El amor y las contradicciones culturales del capitalismo (Katz, 2009), La salvación del alma moderna. Terapia, emociones y la cultura de la autoayuda (Katz, 2010), Erotismo de autoayuda. Cincuenta sombras de Grey y el nuevo orden romántico (Katz, 2014), Por qué duele el amor. Una explicación sociológica (Katz, 2012), Futuro del Alma. La creación de estándares emocionales (Katz e Six Barral, 2014), Happycracia. Cómo la ciencia y la industria de la felicidad controlan nuestras vidas, junto com Edgar Cabanas (Paidós, 2019).

Seu último livro em francês, La Fin de l’amour. Enquête sur un désarroi contemporain (“O fim do amor. Pesquisa sobre uma desordem contemporânea”) adentra as formas mais modernas das relações amorosas, atravessadas pela liberdade de não se comprometer. Foi, paradoxalmente, uma das etapas mais dolorosas da pandemia: para proteger o outro, tivemos amor sem compromisso, ou seja, sem presença.

A pertinência de seu pensamento aparece nesta entrevista, cujo fio condutor é o Estado e seu novo protagonismo total, a hipocrisia e o desmascaramento do liberalismo, o amor e a centralidade do pacto sanitário com os cidadãos. O debate entre um Estado que confina, cidadãos que obedecem e setores que o contestam circulou em todas as partes do mundo. Jamais com a grosseria, a mentira e a violência sinistra perpetrada pela direita das cavernas na Argentina. No entanto, Eva Illouz destaca que, no mundo, foi a social-democracia quem melhor assumiu a gestão da pandemia.

Eis a entrevista:

De repente, com a pandemia, em um piscar de olhos, a relação entre o Estado e a sociedade se transformou: o discurso liberal da liberdade, do estímulo à autonomia, a se realizar como um indivíduo emancipado, ficou neutralizado pela reentronização do Estado. Não somos mais responsáveis por nosso destino. O Estado assumiu todas as prerrogativas e se tornou o rei contra o discurso liberal da emancipação.

O Estado sempre atuou no cenário de fundo de nossa vida, mas nunca antes tínhamos sido testemunhas da potência fenomenal do Estado como agora, nem da uniformidade com a qual obedecemos às ordens do Estado. Houve, no entanto, exceções muito assombrosas. Penso, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a concepção de Estado é muito diferente. Vimos o Estado forte tanto nas democracias sociais, na Europa entre outros, como nos Estados autoritários. Mas o Estado federal estadunidense fracassou.

Existe algo de paradoxal nesta situação, caso observemos também o que aconteceu na Alemanha. Foram mais pessoas da extrema direita que desobedeceram ao Estado que da extrema esquerda. De alguma forma, fomos prisioneiros do Estado. No entanto, também compreendemos que o contrato que nos liga ao Estado é um contrato sanitário. O Estado tem todos os poderes quando assume a defesa de nossa segurança, tanto militar como sanitária.

É a primeira vez que, por razões sanitárias e não militares, o Estado conta com tantos poderes. Havia contado antes, mas por razões militares e, no caso das ditaduras, por causas políticas. Privou-se o indivíduo de seus direitos. Nunca antes havia ocorrido por razões sanitárias e menos ainda em escala planetária.

Quando se trata de escolher entre segurança, sobrevivência e liberdade, os cidadãos sempre escolherão a segurança. No contrato social da teoria liberal, sempre se prefere a segurança à liberdade. A segurança sempre será mais forte que a liberdade. O Estado atuou aí.

Também aconteceu uma espécie de convergência entre os Estados no mundo, diante da pandemia.

Houve uma homogeneidade na gestão da crise e foi a China que deu o exemplo, que mostrou o caminho sobre como administrar a crise. Com algumas exceções, todos os Estados imitaram a China e acabaram se imitando entre eles. A uniformização da gestão da pandemia também foi algo novo.

Você acredita que o Estado restaurou sua pertinência frente a um neoliberalismo que sempre buscou retirar poderes dele? As crises mundiais provaram o papel preponderante do Estado: a crise de 1919, a crise petroleira dos anos 1970, a bancária de 2008 e, agora, em 2020, a pandemia. O Estado foi, todas as vezes, o bombeiro do sistema.

O capitalismo foi periodicamente salvo pelos Estados. Penso que o neoliberalismo sempre teve uma relação ambígua com o Estado. O neoliberalismo impõe ao Estado a lógica do capitalismo e, ao mesmo tempo, o utiliza porque precisa dele. O mercado não pode sobreviver sem o Estado. Os lucros do sistema capitalista neoliberal são possíveis porque o Estado instala estruturas que beneficiam o capitalismo. O Estado constrói as infraestruturas, os trens, as estradas, os aeroportos e a eletricidade.

O Estado também assume a educação. Sem tudo isto as companhias não existiriam. O Estado se encarrega da capacitação, da educação. O mais irônico de tudo isto é que o Estado também financia a saúde, sem a qual, igualmente, as companhias não sobreviveriam. Há uma enorme má fé nesta situação porque, sem o Estado, o capitalismo não poderia existir.

Tudo o que o Estado financia e administra é essencial para a manutenção da mão de obra. Um Estado social forte é quase necessário para o capitalismo. Mas esta necessidade se vê muitas vezes negada pelos neoliberais. A crise da Covid-19 foi a evidente e inevitável prova de que o capitalismo precisa de um sistema de saúde muito forte. Quando esse sistema de saúde balançou, tudo parou. De alguma forma, isto foi como a hipótese oculta de todo o sistema.

Justamente, uma das dimensões escondidas desta tragédia está em que a saúde é uma das variáveis essenciais da governabilidade. Em uma escala social muito ampla, não se notava que a saúde regulava tudo.

O Estado moderno está ligado a seus cidadãos por meio de um pacto sanitário. Isto é muito interessante porque, por exemplo, nos Estados Unidos ficou demonstrado que sem esse pacto nada funcionava. As grandes manifestações de Black Lives Matter se desencadearam pela horrível morte de Geoge Floyd, mas também porque entre as populações negras e latinas ocorreram duas vezes mais mortes pela Covid do que entre as atendidas pelo sistema de saúde. Muito vastamente, esta população estava doente e sem atendimento médico.

Os Estados Unidos nos mostram que sem esse pacto sanitário não é possível governar os cidadãos. A Alemanha, por exemplo, foi o exemplo mais expressivo de uma social-democracia e da maneira como o Estado respeitava o pacto sanitário que o liga a seus cidadãos.

Foi dito em quase todas as partes que o mais arcaico, ou seja, um vírus, veio demolir a hipermodernidade tecnológica. No entanto, com um enfoque mais sutil, você sugere outra interpretação.

Foi justamente o contrário. Não acredito que o vírus tenha provocado um curto-circuito na modernidade, mas, ao contrário, penso que nos impulsionou para frente. O mundo distópico que nos aguarda é o mundo onde tudo se faz em casa: trabalhamos em casa, fazemos compras de casa, nos relacionamos com os outros de casa, buscamos relações sexuais de casa. É um mundo no qual as grandes empresas tecnológicas que o controlam e desenvolvem a tecnologia nos permitem navegar de nossa casa. O vírus, em apenas três meses, nos levou a adotar processos que necessitariam de 15 anos.

A expansão das máscaras como um antídoto contra a propagação do vírus é outro episódio globalizado e simbólico. Todos nós usamos máscaras ao mesmo tempo, conforme você afirmou, a crise sanitária desmascarou a impostura do liberalismo.

A impostura consistiu em dizer que o mercado pode se autorregular e que o mercado é o mecanismo mais poderoso e, por conseguinte, é ele quem pode regular a vida social. Também está presente essa ideia darwiniana que tudo aquilo que sobrevive, que funciona, está muito bem, e que tudo o que é ineficiente desaparecerá. Mas, como vimos com a saúde, o sistema sanitário não é um sistema capaz de funcionar com lógicas de rentabilidade. A impostura consistiu também em difundir a ilusão de que em primeiro lugar está o mercado e que o Estado é algo velho, desatualizado, que sua forma de refletir o bem comum não é eficaz e que sua lógica leva a gastar muito sem necessidade.

Vimos, agora, que sem um sistema de saúde forte e sem um Estado que possa exigir que sua população acredite em seus especialistas, a crise da pandemia não poderia ser administrada. Para mim, esta crise marca o triunfo do modelo social-democrata. Os países que melhor administraram a crise foram os países social-democratas. Os Estados Unidos, que não são uma social-democracia, equivocaram-se por completo. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, os dois países onde a ideologia liberal é a mais forte, são os países que pior administraram a crise.

Frente ao futuro que se projeta, você ressaltou a ética da responsabilidade. Como se interpreta essa necessidade?

Os campos da responsabilidade mudam amplamente. Comparemos isto com a crise da AIDS. A AIDS era transmitida por via sexual ou por transmissão sanguínea. Rapidamente, compreendeu-se que com um preservativo era possível limitar consideravelmente a difusão da AIDS. A Covid-19 coloca novas interrogações porque diz respeito a toda sociabilidade, vai muito além das relações sexuais.

A pergunta: “o que você me deve, o que devo a você e quais são os termos do nosso encontro?”, no momento, não conta com roteiro. Disto segue essa lógica da responsabilidade porque, a partir de agora, precisaremos contar com os outros para que não nos coloquem em perigo. Deparamo-nos confrontados com o amor por meio da negatividade.

Para proteger as pessoas que amamos, tivemos que deixá-las sozinhas. Costumamos pensar na ética a partir do ponto de vista da solidariedade, da ação, de ser solidários, tocar. Faltou-nos imaginação para pensar na responsabilidade em modo negativo, em um modo de distanciamento e de ausência de ação.

Aqui, entramos plenamente em sua obra, particularmente nesse extraordinário livro O Fim do amor. A pergunta é: por acaso esta crise pode restaurar a crença no amor, após o desencanto que você descreveu tão bem em seu ensaio?

Penso que a crise é mais difícil para as pessoas que estão acostumadas a ter várias relações ao mesmo tempo. Mas o que torna difícil a condição do amor é certa forma de individualismo, o fato de que a família se tornou opressora, o fato de que temos muitos discursos igualitários, mas nada de igualdade no casal, o fato de que a mudança, a realização de si mesmo é estimulada e, por conseguinte, as pessoas mudam muito frequentemente de gostos e de pontos de referência. São todas forças exteriores.

Uma crise como esta pode contribuir para uma reflexão diferente sobre o amor…? Tudo dependerá do que se coloca em questão globalmente. Muitas pessoas descobriram que a melhor forma de enfrentar tal crise era estar a dois, em um relacionamento sólido. Agora, por acaso, isso é o amor? Não sei. Talvez se trate apenas de uma relação de afetos, mas não realmente de amor.

Na China, os divórcios aumentaram após a crise. As pessoas descobriram que quando estavam o tempo todo juntas, era um inferno. A família e a casa moderna, ou seja, os apartamentos pequenos, repousavam sobre a hipótese de que as crianças permaneciam fora, durante o dia, e que os homens e as mulheres não se encontravam ao longo do dia. Esta crise forçou as famílias a entrar em um estado de implosão interior. A tendência inversa também é possível.

Você teorizou pela primeira vez o que chamou de “capitalismo sentimental” (também “capitalismo afetivo”). Ou seja, essa esfera onde os seres humanos eram absorvidos para produzir mais. Esse sistema tem futuro após a pandemia?

Não acredito que tenha uma incidência. O capitalismo sentimental faz com que as emoções sejam manipuladas, utilizadas, sublimadas dentro da esfera de trabalho capitalista para transformar o trabalhador e o lugar de trabalho em uma unidade onde se pode produzir mais. O que talvez mude é que o lugar de trabalho enfrentará mais ansiedade e medo. A pergunta é quem administrará todo este medo e ansiedade, ou seja, o não funcionamento.

O amor é, para você, uma forma de compreender a modernidade. Qual é a forma de nossa modernidade neste momento-amor preciso?

Podemos falar, em primeiro lugar, do individualismo afetivo. É um elemento central na história do indivíduo. O individualismo é a afirmação de que o indivíduo tem direitos novos contra os pais, as comunidades e o Estado. O amor desempenhou um papel central nessa afirmação moral do individualismo. Romeu e Julieta, por exemplo. Depois, vem a ideia da liberdade, a ideia de que o indivíduo tem direitos inalienáveis.

Isto foi elaborado na esfera política e, em seguida, foi projetado na esfera individual. É a ideia hegeliana de pensar na família e o matrimônio em função dos novos direitos e de um contrato que unirá a duas individualidades livres. Todo o modelo moderno das relações pressupõe a liberdade de cada um para entrar e sair. É uma ideia predominante no amor. No catolicismo, não é permitido se divorciar porque o matrimônio é uma instituição santa e, como tal, é mais forte que a vontade e o desejo dos indivíduos.

O amor coloca em jogo toda a questão do desejo. E o desejo se tornou o motor central da economia e da cultura de consumo. Esta cultura legitimou o desejo. Trata-se de um encontro, de uma convergência histórica, entre o desejo do objeto e o desejo sexual e romântico. Sendo assim, não se pode esquecer da revolução sexual, que foi muito importante. Sexual! Esta revolução diz respeito à vida privada, a sexualidade.

A revolução sexual colocou tudo em questão e foi um dos acontecimentos mais importantes do século XX, que mudou a estrutura. Sexualidade, desejo e a forma como as mulheres vão se compreender dentro de uma relação ocuparam um lugar determinante. É possível ler no amor processos econômicos, morais, políticos, jurídicos e sociais.

A tensão entre o desejo de liberdade e os fantasmas da submissão, entre a atração e a irritação, a autonomia e a independência. Com ou sem pandemia, o amor é uma dualidade difícil de conciliar.

Sim, absolutamente. Gosto da percepção de Freud de que o amor é essencialmente ambivalente, está atravessado por uma ambivalência estrutural. Durante o confinamento, a famosa frase de Jean-Paul Sartre, “o inferno é o outro”, resultou muito pertinente. Penso, também, que é dentro do amor que a frase de Sartre se plasma, nessa presença constante do outro, nessa intimidade permanente com ele.

O amor moderno se tornou algo parecido: uma espécie de veleidade de intimidade, de transparência, de simbioses e de fusão que faz com que a proximidade do outro seja simultaneamente mais imperiosa e mais insuportável.

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